Hierarquizar as qualidades literárias dos livros que compõem a Bíblia é um terreno de subjectividade pantanosa. Contudo, poucos contestarão que o Livro de Job é, no âmbito literário, de uma notável encorpadura ou, nas palavras de Thomas Carlyle, uma das melhores coisas alguma vez escritas.
A história começa com uma aposta entre Deus e o Diabo acerca da fidelidade de Job, o mais justo e temente a Deus entre os homens. Como teste à sua fé, Job perde a família, a riqueza e, até, a saúde, sem que nada pareça conseguir fulminar a sua fidelidade a Deus. Entretanto, Job é visitado por três amigos – Elifaz, Bildad e Sofar – que, tendo sabido acerca das desgraças que o cercam, resolvem visitá-lo para o poderem consolar. Ao fim de um longo silêncio, Job acaba por falar e amaldiçoar o dia em que nasceu. Face a isto, os três amigos procuram afiançar-lhe que se todas estas desgraças estão a acontecer é porque certamente pecou gravemente contra Deus. Contudo, nem as invectivas dos três supostos amigos são capazes de abalar os alicerces da fidelidade de Job. No final do longo diálogo, Deus intervém proferindo dois discursos, o primeiro maioritariamente sobre a grandeza da criação e o segundo sobre os poderes de Deus – onde vem incluída a arquicélebre citação que Thomas Hobbes escolheu para o frontispício da obra que arquitectou o Deus-mortal da época moderna, cujo poder, como o do Leviathan, não tem na terra qualquer comparação –. Já no epílogo, Deus restitui a fortuna e felicidade de Job, depois de este reconhecer a sua ignorância numa das mais memoráveis passagens de livro pleno delas: “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora vêem-te os meus próprios olhos”.
Provavelmente insatisfeito com a conclusão desta história, Voltaire – que se refere também ao Livro de Job no seu Dicionário Filosófico, numa passagem onde o anti-semitismo impera – procurou dar-lhe uma espécie de reescrita em Cândido ou O Optimismo, o herói homónimo da obra, um rapaz doce, inocente e de espírito simples, se mostra como um novo Job. Oriundo do idílico “castelo do senhor barão de Thunder-ten-tronckh”, cujo poderio se evidenciava no facto de ter “uma porta e janelas” – a ironia é permanente -, Cândido sofre de profundo optismo, infectado por via do seu mestre Pangloss, uma paródia total ao optimismo leibniziano, o qual ensinava “metafísico-teólogo-cosmolonigologia e “demonstrava com brilhantismo que não há efeito sem causa e que, neste melhor dos mundos possíveis, (…) tudo é feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim”.
Sem Deus ou Diabo para apostar a sorte de Cândido, são as desventuras do jovem que o vão levar de evento em evento, de desgraça em desgraça – incluindo o terrível terramoto de novembro de 1755 em Lisboa, cujos efeitos arrepiaram até os grandes pensadores da época, como Kant, que publicou três ensaios sobre ou tema, ou Rousseau, que relacionou os efeitos do terramoto com a concentração excessiva de população nas cidades, sintoma do abandono progressivo da natureza. Quase nos antípodas do optimismo inabalável de Job – a única acusação que, no seu ensaio acerca do Livro de Job, Carl Jung julga poder ser movida contra esta personagem bíblica – a fé de Cândido afasta-se cada vez mais do seu pater intelectual em direcção ao maniqueísta Martin, outra personagem-emblema de uma linha de pensamento, desta feita próxima do pessimismo de Pierre Bayle.
Cândido, que também dá corpo a uma poderosa crítica à hipocrisia que Voltaire identifica na religião e ao poder destruidor do dinheiro – numa crítica social próxima da que Montesquieu ensaiara nas suas Cartas Persas –, tem como força motora o ataque a Leibniz e à sua Theodicée enquanto resposta ao problema do mal, um tema que ocupara já toda uma estirpe de grandes pensadores mas que, no contexto histórico em que Cândido se move, num dos epicentros da Guerra dos Sete Anos ou no momento do Grande Terramoto de Lisboa, pouco recomendava ao optimismo do “melhor dos mundos possíveis”.
No final, e apesar de todas as desgraças que se abatem sobre Cândido e os seus companheiros de viagem, no coração mora ainda uma inocente confiança, nunca abandonando por completo o ponto de partida, muito embora seja manifesta a descrença relativamente a Pangloss. E assim, contra as palavras do antigo mestre, que tolamente se mantêm as mesmíssimas, Cândido responde agora com um significativo “tudo isso está certo (…), mas é preciso cultivar a nossa horta”. Tal como Job, Cândido regressa ao estado inicial depois de uma longa travessia do sofrimento. Mas, diferentemente de Job, sem aposta, Diabo ou, principalmente, Deus, o estado já não pode ser o mesmo, já só pode ser pior, mas não muito pior, apenas… pior.
Sobre esta edição da Relógio d’Água, o quinto número da sua colecção Clássicos para os Leitores de hoje, não contestando o sentido que Cândido faz nesta linhagem, podemos legitimamente contestar o porquê de reeditar um livro que se encontra disponível aos leitores portugueses em pelo menos três outras edições/traduções relativamente recentes, uma delas já deste ano e também num formato mais económico no custo e nas dimensões. Quando o próprio catálogo da editora dispõe de clássicos neste momento inacessíveis ao leitor, a não ser em mercado especializado, a opção não tem muito por onde se sustentar.