Podíamos continuar a desfiar nomes linhas fora, dos que vieram da velha guarda da street art e para quem o Bairro Padre Cruz não é assim tão desconhecido (é aqui que fica um dos primeiros murais de graffiti de Lisboa, com assinaturas ainda dos anos 90, mais antigo só o das Amoreiras), como os ARM Collective (RAM e_MAR), a outros que estão na linha da frente da experimentação, como é o caso do francês Mathieu Tremblin, cujo contributo para as paredes do bairro serão uns gráficos de barras com os resultados das respostas a um questionário que vai fazer às pessoas. Ou outros ainda com um percurso mais ligado à ilustração, como Leonor Brilha ou Tamara Alves. Ao todo são 30 artistas que desde o último sábado até dia 15 vão andar a pintar 30 empenas, mais muro menos muro, que Pedro Soares Neves, do Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes e um dos curadores convidados, já nos avisou que pelo menos da sua parte haverá surpresas que não fazem parte da programação – que, já agora, inclui concertos, espetáculos, visitas guiadas, atividades temáticas, conferências, workshops em murais. Além do live painting, claro.
Porque muro a muro se constrói um bairro, podia dizer-se, porque é mais ou menos isto que se passa por estes dias no Bairro Padre Cruz que, com os seus 8 mil habitantes (números do presidente da junta, segundo os Censos de 2011 eram 5500) se diz ser o maior bairro municipal da Península Ibérica sem que por lá haja uma loja além do mercado ou um restaurante, um banco.
Para quem não conhece, ou conhece só de ter ouvido falar ou do cinema – é lá que decorre a ação de “Sangue do Meu Sangue” de João Canijo, é numa daquelas casinhas de alvenaria com jardim que se diz que um dia destes vão abaixo que assistimos às discussões à mesa de Márcia, Ivete e Cláudia Filipa (Rita Blanco, Anabela Moreira e Cleia Almeida) – não há problema. A ideia é mesmo passar a conhecer, explica Inês Machado, técnica da GAU que nos guia numa visita pelo bairro numa tarde que terá sido uma das mais quentes do ano, com os termómetros a marcarem perto dos 40 graus. “A ideia com o festival é abrirmos também um pouco o bairro ao exterior, trazer pessoas de fora para o bairro”, explica ela que nos últimos tempos se dedicou a estudar a história do bairro, que o bateu de ponta a ponta quando houve que explicar aos moradores o que era a arte urbana e o que ia ser o muro, e que pedir autorizações para entrar nos quintais para pintar empenas.
Mas não era num quintal que estávamos, era numa plataforma elevatória com Akacorleone, que nos próximos dias deverá começar uma residência artística na Underdogs Public Art Store + Montana, o novo espaço que junta o projeto de arte pública de Vhils e companhia com a loja de materiais de Miguel Negretti, que nisto da street art estamos sempre muito entre família. “Esta parede já faz parte da linguagem e da ideia que eu tenho para essa residência”, diz-nos a nem sabemos quantos metros do chão, o melhor é não sabermos mesmo, enquanto continua a trabalhar. Do lugar em que estamos chegamos ao topo desta torre que já foi amarela como as outras e que agora acolhe uma obra de Akacorleone, que já por aqui tinha andado no passado. “Tenho imensos amigos em Telheiras e a dada altura houve um que fez um graff numa escola aqui ao pé, é dessa altura que conheço isto.” Mas o Padre Cruz não era lugar óbvio de arte urbana até há poucas semanas. Havia apenas uma inscrição na entrada do bairro, na parede do Snack Bar dos Unidos, o clube de futebol do bairro, refeita para o festival: Bairro Padre Cruz, entra com respeito e serás respeitado. “E tens aquele mural dos anos 90”, lembra. É lá que vamos. Fica a caminho de outro lugar a que queremos ir, onde está RAM a pintar. Vamos para a “parte velha”, como se referem os moradores à outra parte do Padre Cruz.
Bairro velho, bairro novo
O Padre Cruz divide-se entre parte nova e parte velha. A parte nova são estas torres amarelo torrado, como todas as torres de todos os bairros municipais, a parte velha são casinhas de alvenaria cobertas a lusalite e quase sempre com um jardim ou uma horta. Ou um pátio, sempre pelo menos um pátio. Aí vivem sobretudo os mais velhos, o Padre Cruz é um bairro de mais velhos, onde são mais os idosos do que as crianças.
Um dia esta parte vai abaixo, é o que se diz, e um dia estas casinhas-presépio, é assim que as vemos ao longe, da estrada, antes de chegar ao bairro, vão mesmo todas abaixo. Não porque o bairro seja para acabar, “isso seria impensável para as pessoas daqui”, diz Fábio Sousa, o presidente da junta, um rapaz de 28 anos criado na parte nova do Padre Cruz, em que as ruas são com nomes de professores universitários – na velha deram-lhes nomes de rios, coisa que se percebe quando se vê que todas elas descem para o lado de Lisboa. Mas pela falta de condições. A cobertura das casas, mandadas construir pela câmara há 60, 70 anos, é em lusalite, um material que há anos deixou de ser usado por conter amianto, um agente cancerígeno. Os habitantes da parte antiga já começaram a ser realojados nas torres da parte nova e vão poder regressar um dia, assim o queiram depois da reconstrução da parte velha.
É num dos quintais das casas da parte velha que pode ser vista uma das paredes pintadas por Miguel Caeiro (RAM), que terá também direito a outra empena numa das torres da parte nova. “Esta pintura vai ter a ver com a pintura de lá de baixo. é um portal que te leva para a de lá de baixo”, localizada mesmo em frente à de MAR, seu parceiro no ARM_Collective, explica o artista de 40 anos que deu os primeiros passos na street art ainda na década de 90, quando um festival de arte urbana não fazia sequer parte dos seus sonhos. Com epicentro no Bairro Padre Cruz, o Muro estende-se a outros pontos de Lisboa, com novas intervenções na Calçada da Glória, onde começou a GAU, há oito anos, o aeroporto, o Museu Nacional de Arte Antiga ou o edifício do jornal Público, em Alcântara.
“Para nós está a ser muito importante ter o festival aqui”, diz Fábio Sousa, eleito pela CDU e que nos parece sempre impossível de tratar com a informalidade devida a um representante do poder local. “Até porque isto não foi somente chegarem aqui no dia 30 um conjunto de artistas, invadirem o bairro e começarem a fazer pinturas. Claro que o bairro vai ficar muito mais bonito, mas houve todo um processo em que os moradores estiveram envolvidos: tiveram que dar as autorizações para que as intervenções fossem feitas e têm uma ligação já muito grande aos artistas. São eles que estão a contar-lhes a história do bairro, porque algumas das intervenções têm alusões àquele que foi o seu processo de transformação, e há pessoas já nos seus 80 ou 90 anos que vemos sair das suas casas para irem levar água aos artistas, porque tem estado muito sol.”
Como o Sr. Carlos, que passeia com o filho ao colo e vem ter connosco assim que nos vê conversar com RAM. “Eu bem gostava que pintassem a minha casa, estou a favor disto, de melhorarem o bairro, dar-lhe uma nova vista.” Fábio, que tem no Padre Cruz uma fatia muito significativa da população da freguesia que dirige, acredita que o festival vai não só valorizar o território como melhorar o sentimento dos habitantes em relação a ele, sobretudo na parte antiga, que “está muito degradada”. Prova disso é que, segundo conta, nas últimas semanas muitos dos moradores arranjaram os seus jardins para receber as pessoas que vinham para o festival. “No fim de semana foi brutal ver aqui estrangeiros. Franceses, chineses, quando o bairro tipicamente não recebe turistas.”
Haverá poucos sítios melhores do que os mercados para medir o pulso a um lugar. E no mercado do Bairro Padre Cruz, onde fica o mais próximo que haverá aqui de um restaurante, que é uma churrasqueira, e algumas lojas, poucas, porque já não se vende sequer peixe, ouvem-se adolescentes comentar, entre cigarros, o festival e o que ele vai mudar num bairro que se pudessem já tinham deixado há muito. “Sempre fica mais bonito do que tudo amarelo, vai ficar bonito”, diz uma delas. “Acho que o Padre Cruz vai mudar muito depois disto.” Por falar em Padre Cruz, lembra-nos Inês, é uma estátua de homenagem ao padre que deu nome ao bairro, o único elemento de arte pública nestes 37 hectares onde vivem milhares de pessoas.
Regressar às origens
“A questão do contexto onde as peças estão é inevitável”, começa por dizer Pedro Soares Neves, que assina um trabalhos no mural antigo de que toda a gente fala (numa das assinaturas vê-se uma referência a 1998), porque foi de lata em punho que começou este street artist tornado investigador – é ele que tem organizado anualmente as conferências internacionais Urban Creativity, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. “Isto não é uma coisa completamente nova, já foi usada noutros sítios como em Loures, por exemplo, e acho que é uma ferramenta que faz sentido, apesar de cá estarmos a dar passinhos de bebé ainda”, diz, acrescentando que festivais como este são “algo que já se faz há algum tempo noutros sítios, nomeadamente em Filadélfia”, onde se recorre à arte comunitária em estabelecimentos prisionais, por exemplo. “Isto para a minha investigação é muito importante porque há muito poucas pessoas a fazerem investigação com base num sítio específico, com uma análise contínua do que se vai passando nos sítios”, diz o investigador que se tem dedicado especificamente a esta área.
“Pode ser mais bem feito ou menos bem feito, estamos a experimentar.” Sobre a parte que lhe diz respeito, promete surpresas, uma delas ao que tudo indica bem grande. “Vou tentar que haja algumas surpresas, convidar autores para interagir no espaço que não estão no programa, até porque acho que é essa dimensão que se aproxima mais da génese da coisa. E algumas pessoas até me agradeceram por não as incluir.” E serão quem? “Não posso dizer quem é mas é uma das pessoas que estão no top nacional. Vai perceber-se no fim. Mesmo. Ele não vem autorizado mas vai interagir com o espaço.” Fazer mesmo coisas? “Ilegais”, sorri, “porque não é suposto estar aqui. É essa dimensão que me interessa explorar mais, acho que é aí que está o que faz a diferença em relação a outras formas de arte pública. E é também o apelo ao cidadão comum e aos seus alter-egos para que ele próprio possa ser também agente, não só espectador.”