Daniel Jonas: «O poeta é também um tradutor»

Uma entrevista realizada na primeira língua do poeta, a escrita, à volta do novo livro, Bisonte, onde a poesia portuguesa reavê um certo fulgor modernista. Falamos ainda da deriva da cultura contemporânea, interessada antes de mais em sacralizar o folclore e render-se ao entretenimento e à bolsa de valores mediática.

Daniel Jonas (1973) acaba de publicar o seu sexto volume de poemas, Bisonte (edição Assírio & Alvim), o primeiro após ter vencido o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes. Continua a traduzir obras especialmente exigentes (só este mês saíram Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada, de Eimear McBride, e Rumo ao Mar Branco, de Malcolm Lowry). Fora da aldeia e desinteressado das suas guerras dos tronos, a sua poesia desdenha fronteiras, molhando mais do que o pé em distintas tradições, línguas e geografias. Culta tanto como ousada, numa hora domina com gozo e requinte o soneto, noutra sai desembestada pela mais vasta e dispersa paisagem, sem vénias nem cuidadinhos. E para aqueles que tomam a poesia por um «negócio de rosas», ele faz gosto em contribui «providenciando os espinhos».

Quando começaste a ter um horizonte literário e levar a sério o que escrevias?
Não consigo datar com precisão a dedicação mais séria à prática da escrita, mas digamos que não minto se a situar num período coincidente com a maioridade. Essa questão, a do baptismo literário, prende-se com uma questão mais delicada, a desfaçatez de alguém um dia se presumir de valia a publicar. Creio que deverá ser um misto de arrogância do escritor aliada à validade que advém do editor, embora tenha a ideia que essa reserva natural se assemelha cada vez mais a toda a natureza. 

Tens heróis literários?
Em termos literários as minhas referências são razoavelmente vastas, vastas de mais para assinalar aqui alguns sem claro prejuízo de outros. Em português poderia lembrar-me de Pessoa, Pascoaes, Cinatti, Pessanha, Verde, Franco Alexandre, Belo, Bocage… O'Neil, Junqueiro. Isto só para falar de poetas. Depois há Eça, Camilo, Machado de Assis, e por aí fora… E uma constelação de outros poetas e escritores estrangeiros em nacionalidade e época que daria uma listagem demasiado aborrecida para estes propósitos. À cabeça, por exemplo, Milton, Wordsworth, Yeats… Penso em todo o caso lançar um conjunto de ensaios onde será possível visitar essa vasta galeria… 

Imaginas-te a participar em festivais literários, conferências, lançamentos, a fazer vida de escritor “profissional”?
A questão de fazer vida da escrita é possível para alguns, impossível para outros. Mas seria muito agradável passar o dia a ver musas e ninfas. Acho que seria até importante para a pátria. Sempre diversificava a exportação. 

De onde vem o domínio do inglês?
O apetite pelo inglês nasce antes de haver uma combinatória nos cursos de línguas e literaturas modernas entre português e inglês. Parece que antes as pessoas não poderiam fazer este tipo de sandes curricular. Quanto a mim, é um apelo natural. Em todo o caso, a minha única residência fora de Portugal aconteceu na Suécia. 

O que gostas de fazer para lá da literatura?
Se pudesse fazer uma vida de ócio sem ofício seria passada à volta de viagens, música, futebol e observação de animais não humanos. Apesar de a observação de animais humanos ser uma actividade bastante interessante e diversificada, por vezes agasta, o que não acontece com a observação de animais não humanos. Não nos passa pela cabeça criticarmos um periquito por cantar à pintassilgo, por exemplo. Nem nos passa pela cabeça processar um coiote. São um descanso a esse nível.

Na leitura de Bisonte tive a impressão de que parecias estar a reencaminhar o modernismo, a superar a ironia e a retomar confiadamente a experiência desse destemperado modo de dizer. Algo como um filho tardio de Álvaro Campos, que sentisse como se perderam décadas a jogar às caricas, ao berlinde, e tentasse sair do pequeno mundo, meter as botas como o gato e abrir o compasso das pernas avançando às léguas.

De facto descrevi algures Bisonte como uma poética de grande espectro, de tendência, dir-se-ia, panavision. Isto tinha que ver com uma certa disposição pessoal para tratar o poema longo, um lirismo de grande porte, tal como o bisonte, com vastos horizontes rítmicos e métricos, o que em si comporta uma ansiedade particular, e que tem que ver com a contenção, com o tempo musical. Isto deriva de uma espécie de ansiedade contínua com o verso livre, sintetizada por exemplo na auto-correcção de João Cabral de Melo Neto quando trinta e cinco anos depois reprime a sua alegria em relação ao nefasto verso livre como tendo sido afinal o responsável pela aparição de uma horda infindável de autoproclamados poetas. Queixava-se ele que desde a aparição do verso livre toda a gente tratava de descrever a sua dor de corno como se fosse poesia. A minha ansiedade com o verso livre e com um certo alvarodocampismo na minha poesia relaciona-se com esta ânsia pelo convite pernicioso que o verso livre apresenta, enquanto Satã mostrando um fruto apetecível ao formalismo edénico dos nus adâmicos. Na realidade, e para estender a metáfora, diria haver muita parra e pouca uva debaixo da grande maioria do versilibrismo, eu incluído. É esse o meu receio no que toca à minha poesia formada da costela de Álvaro de Campos. Como avançar léguas métricas sem perder o estilo? Como regressar seguindo em frente? O problema com o rol de coisas que se tem para dizer, com o fogo-de-santelmo interior que reclama ser cuspido, choca com o crivo editorial próprio. É mais fácil controlar uma bicicleta do que um zepelim. Aliás, Álvaro de Campos hoje estaria a escrever provavelmente sobre aviões e o seu cais de pedra seria um cais de ar. Para o espaço aéreo e etéreo tendeu também alguma da minha poesia reunida em Bisonte, curiosamente este uma imposição muito gravítica e telúrica.  

 

Num dos poemas mais longos do livro, ‘Deslocação das Nuvens’, tens este verso: "Estou tão arrependido dos dias que hão-de vir"… Julgas que isto se liga a uma condição deste tempo, a sensação de que nem o maior grau de certeza do desastre pode evitá-lo, e que a dor que nos resta é a de «não sentir nada e sentir todo o mundo», como dizes umas linhas à frente?

A reversão temporal e lógica desse verso vive antecipadamente a certeza da contrição, esta normalmente aplicada a uma decorrência de um tempo e de um acto. Neste caso o arrependimento é prévio ao futuro, como um anúncio de que o futuro repetirá o passado e uma apologia pelo mal que inevitavelmente trará. A deslocação das nuvens é a repetição de todas as coisas em que os padrões justapostos, apesar de provavelmente únicos, se ficam invariavelmente por uma indolente litania visual sem novidade. Esse verso trata também do tédio pela linguagem. Dizer "Estou tão arrependido dos poemas que hão-de vir" corresponderia ao mesmo, porque os poemas são em si arrependimento e uma ocupação insensata. Nada na experiência constante do nosso mundo avisa à ocupação do tempo com esta actividade. Quem são estes celerados que escrevem? É tudo vaidade e correr atrás do vento. Escrever poesia parece uma reificação maligna, um produto de sociedade anódino e inconsequente, um palhaço que pedala no arame e faz uns malabarismos ridículos com uns pinos de bowling, que serve de intermezzo entre as vítimas maiores do mundo e a corte oligarca. 

Na dupla condição de poeta e tradutor, que validade atribuis à língua quando dominada com algum virtuosismo? E, por outro lado, não te parece que a inabilidade para lidar com a própria língua gera uma forma de invalidez?

O poeta é simultaneamente um tradutor, no sentido em que traduz umas imprecisas alavancagens do espírito e as corrige por escrito, para a língua do arquivo. A poesia é (como, de resto, a fala) a tradução do espírito. Porventura a tradução da música do espírito. A melhor tradução do espírito ganha. Isto partindo do princípio que o arsenal conceptual disponível ao cidadão médio é genericamente limitado e que todos nós pensamos mais ou menos as mesmas coisas. Mesmo tendo em conta os espíritos excepcionais, as cabeças raras, que vão adubando a linguagem os seus intelectos. A diferença encontra-se justamente na linguagem. A poesia é toda ela linguagem, falei do fogo-de-santelmo interior, embora a menção a fogos de artifício linguísticos costume alimentar um receio de um virtuosismo sem substância. Mas a poesia é a forma mais encantatória de se dizer, não importa o quê, não se sabe na verdade muito bem o quê. Não creio que nos importemos nada de passar uma tarde com um falinhas mansas qualquer, ainda que no fim da tarde nos perguntemos "mas que disse ele, afinal?". O que disse não é importante, importa a forma como o disse, esse "o" que não sabemos o que é. A inabilidade referida na segunda parte da tua pergunta leva-me para a linguagem como grande factor de distinção social, para a vida palaciana, em que o mais articulado é o mais notável. A linguagem é o factor de hominização social por excelência. Um cúmulo disto é por exemplo olhar para textos de produtos financeiros tóxicos e ver o seu grau estelar de sofisticação, aliás a sua forma de subsistência. São labirintos linguísticos incríveis, uma forma de pôr a linguagem a esconder, a não dizer nada, último grau da fala, ainda que perversa.   

Há uns meses, quando venceste o prémio de poesia Teixeira de Pascoaes, confessaste um certo espanto por teres sido distinguido de entre um elenco em que se encontravam outros autores mais mediáticos. Consideras que o mediatismo impede que sejam reconhecidas as obras mais instigantes?

Decididamente. Basta abrir a revista da TAP. Há todo um circuito de baixa gama que se alimenta dos mesmos nomes, regra geral bastante lamechas, cuja escrita é uma compostagem de lugares comuns de melindre emocional. A sua cotação na bolsa de valores mediática refere-se ao número de leitores que naturalmente este estilo atrai. Um estilo que de resto tanto cala fundo nos leitores com acne na alma como nos emocionais sisudos à espera de um levantamento lúbrico. Refiro-me por exemplo ao carinho inusitado que as garotas de Ipanema suscitam. E daí a visibilidade difícil que advém no meio duma chuva de confetti atirada à passagem dos carros alegóricos mais sonantes. Desse ponto de vista o espanto é honesto. Que seja possível a sobrevivência dos quasimodos da escrita é em si mesmo um feito. Para além da fealdade em literatura, há ainda que se contar com o facto de haver mais escritores do que leitores. 

Para um leitor que tem, como é o teu caso, a possibilidade de explorar a literatura através de uma língua (o inglês) com um quadro de ligações muito mais vasto, como se sai o português e os teus contemporâneos no espaço de tempo que entregas à leitura? Tens desenvolvido camaradagem literária com o que te vai chegando de escritores que usam a mesma língua que tu?

Tento ser um fiel interessado pelos projectos (não é assim que se diz?) que vão aparecendo. E há literatura muito boa a fazer-se arrimada em fundações muito firmes das quais resultam  construções muito meritórias. Não teria problema em apontar para um vasto caudal de leituras portuguesas decisivas na minha constituição literária, a maioria malograda, como é normal, mas há também exemplos vivos, entre poetas, contistas, romancistas, muita gente a escrever denodadamente. Quanto à camaradagem literária, tendo a ser menos passeio ao Buçaco e mais nervoso, nesse sentido ir numa carreira enjoa-me. Mas logo que não me ponham numa camioneta literária está tudo bem. Cada um que vá na sua mota e depois lá nos encontramos para uma cerveja.

Com seis volumes editados, quando pensas a tua poesia, tens a sensação de que conseguiste criar uma primavera autónoma? Serias capaz de olhar criticamente para o que fizeste e de apontar elementos que se tornaram distintivos no teu percurso e outros que esperas ainda vir a desenvolver?
Esse distanciamento, ou a sua impossibilidade, está no cerne das minhas preocupações pois é dele que eu dependo para a aferição e a publicação do que escrevo. E como nem morto conseguiria ter o correcto distanciamento (suponhamos que eu morto conseguisse ter discernimento) uma vez que as avaliações das obras estão sempre em curso essa é uma manifesta impossibilidade e uma ânsia permanente. Quero com isto dizer que vivo a ansiedade contínua de escrever coisas sem importância e a minha preocupação central é separar o trigo do joio. Tento fazê-lo mas nem sempre é possível. Mas não nego que tenho um certo interesse em deixar uma marca autógrafa, essa primavera autónoma de que falas depois do inverno do meu descontentamento. Quanto à vinheta perspicaz, isso cabe a alguém perspicaz. Embora vinhetas e outras etiquetas estejam também elas dependentes de uma série de factores. Aconselho o passeio à entrada de Guerra Junqueiro na Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura. Curioso como o padre e crítico literário João Mendes se apossa desta vinheta para chamar repetidamente limitado intelectual ao seu biografado. As razões disto são óbvias. É a mesma coisa que pedir a um benfiquista para descrever um portista. Aliás, recomendo a consulta desta entrada no Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa. 

Daquilo que dizes sobre a tua poesia, parece-me que te interessa menos considerar o que escreves um grande projecto artístico com uma capacidade de abalar o espaço em volta e mais criar um grande divertimento. O que te irrita e parece mais vicioso nos discursos e na altivez que veste a poesia como uma capa de super-herói da sensibilidade?

Precisamente. Isso é uma boa descrição para a poesia em geral e para os meus efeitos, o de divertimento. A arte aliás é isso, mesmo aquela que convoca a alma para grandes saltos de apreciação e lapsos de água metafísicos. No entanto mentiria se dissesse que não gostaria de deixar um corpo de obra relevante e que isso não é uma preocupação, daí a ansiedade evocada a propósito do discernimento sobre o que pode ou não perdurar. Por perdurar aqui refiro-me a um valor estético que possa ser empolgante no futuro, assim como a descoberta de uma moeda romana é empolgante para qualquer numismata. A diferença é que todos os numismatas gostam de moedas romanas e já nem todos os apreciadores de literatura podem apreciar a minha moeda literária. Mas em todo o caso a noção de obra e o desprendimento que resulta de um certo pendor para o entretenimento não são mutuamente exclusivos. Aliás muito daquilo que faço é um entretém que se faz no meio das lágrimas metafísicas. Tento divertir-me profundamente com os meus arremedos nostálgicos. Ou como o Jarvis Cocker põe quero ser profundamente superficial. À poesia como super-herói da sensibilidade respondo no meu poema "O cansaço do canto". 

Preocupa-te a situação actual da poesia, a de um género literário que goza de fama mas sem especial proveito? E o desaparecimento das colecções ligadas a editoras de alguma dimensão?

Habituamo-nos a olhar para poetas como sendo mais altos, pelo menos desde os Trovante. No entanto, e algo a contrapelo, a condição de poeta tem vindo a ser socialmente esvaziada. Também entre os mesteirais da literatura parece haver uma distinção entre escritor e poeta, como se aquilo que o poeta faz fosse distinto daquilo que um escritor faz. Talvez aqui a diferença entre médico e cirurgião seja análoga a esta peculiaridade. No tempo de Keats, por exemplo, a profissão de cirurgião, ao contrário de medicina, não dependia de um grau universitário. Esta estranha separação existe hoje entre poeta e escritor, como que insinuando que a profissão de poeta corresponde a uma espécie de baixo bacharelato das letras. Isto deve-se, parece-me, a uma espécie de numerus apertus em vigor que, como sói dizer-se, descredibiliza o sector. É esse amontoado de vozes que ameaça esta actividade em particular. De repente é tudo perito e tudo praticante. Nesse sentido, muito daquilo que se faz em poesia é confundido com galo de Barcelos porque há uma espécie de feira em curso. Mas isso acontece um pouco por todo o lado e em todos ramos artísticos. Quanto mais praticantes tem uma arte mais corre o risco de derivar em artesanato. As editoras acabam por ser reféns dessa realidade e desse escrutínio democrático. Entretanto o escopo de atenção das pessoas está consideravelmente saturado por uma série de chamadas de atenção vinda de todos os lados, redes sociais e diários e cadernos digitais, por exemplo, que cilindram a reserva mental protegida necessária à apreciação da poesia, que é uma actividade que leva o seu tempo. Outro canal neste momento obstruído e que obsta à assimilação lenta da edição de poesia deve-se ao trânsito que se vê a nível da distribuição e dotamento de espaço para a poesia, à fúria livreira que não deixa sequer pousar os livros nos escaparates e que os reconduz imediatamente para fundos de catálogo. Há simultaneamente fenómenos de lenta deglutição que aparecem para tentar contrariar esta realidade, esta perda de território dos editores. Também as feiras e os mercados aparecem, curiosamente não para a exibição de artesanato mas tantas vezes como tentativa de escoamento da grande arte.

E a academia, a crítica nos jornais,  tem responsabilidades? Não há um desinteresse pelos que escrevem, uma falta de entusiasmo dos poetas quando chega a hora de eles próprios dedicarem algum tempo a escrever criticamente uns sobre os outros?

Parece-me que o que subjaz à pergunta é a admissibilidade de uma atribuição de várias tarefas aos mesmos agentes. Ora não tenho tanta certeza assim se deverão poetas ocupar-se de poetas no sentido também de suprir ou esclarecer ou ainda identificar famílias de modo mais útil, preparando o caminho no fundo àqueles que deveriam desempenhar esse papel. Não sei tampouco se há sequer poetas equipados com essa coragem intelectual, já para não falar simplesmente de intelecto. Certos poetas há também que execram a academia como alguém que não é da irmandade, um não iniciado incapaz de aceder à linguagem dos druidas. Por outro lado, a academia é sistematicamente pobre e complacente. Então com esta massa à bolonhesa em que se tornaram os cursos imagino o que não haverá de teses impertinentes sobre autores que só com muita benevolência aguentam o epíteto. Esse esvaziamento crítico, que se  estende aliás aos próprios jornais ou revistas da especialidade, contrasta surpreendentemente com um certo espevitamento que se faz sentir em maneiras inesperadas como a vitalidade inusitada de alguns projectos editoriais que vêm ocupar certas lacunas importantes deixadas por outras editoras e colecções notáveis. Diria enfim que a poesia continua, estranhamente, muito viçosa, em contraste com uma debilidade da crítica.

Tu não tens pudor em revelar uma visão fortemente marcada por grandes referências culturais. Parece existir um grande preconceito contra quem exibe um certo nível de erudição literária… Vivemos um tempo que, forçando a comunicação a um dinamismo democratizante, tem vindo a mundanizar o discurso e a procurar que o que é dito seja fácil de entender, e assim se está a levar o discurso, mesmo sobre temas problemáticos, a tornar-se banal, provocando que vivamos hoje imersos no ruído?
Diria que vivemos hoje numa era a que chamaria era Žižek. Também poderia chamar outros nomes. Há aliás filósofos de serviço, de menor ou maior coturno, que são normalmente requisitados e lidos como tratando-se da última pepsi-cola do deserto cujo discurso é chamado a qualquer fórum em que se discuta, por exemplo, a portugalidade ou a lusofonia, esse palavrão horroroso. E digo isto sem qualquer acrimónia por eventuais resultados produzidos por uma certa filosofia de massas. Quero com isto dizer que há neste momento um canal aberto para a produção instantânea de um tipo de sarja multicultural, para não lhe chamar pós-moderna, que vem ao encontro do seu interlocutor de um modo benévolo, no sentido em que este se sente co-participante dos saberes. Deste modo vivemos em contraponto num tempo de terrorismo exegético. Quando a interpretação da mensagem falha o seu ouvinte, este sente-se alienado e o seu contra-ataque é o apupo veemente, pois se reclama como vivendo num mundo que tem de compreender, em que os filósofos, para continuar a imagem, desceram do palco e são agora uns dos nossos. Não que os filósofos tenham de ser "uns dos deles", não é isso que eu quero dizer, mas há um levantamento latente por um certo tipo de pensamento não imediatista. Aliás, eu defendo precisamente e a contrario a existência de um pensamento que seja exactamente o inverso do imediatismo, no sentido em que defendo a impossibilidade de se interpretar uma obra de arte. De um certo modo tudo o que não seja consumível é um atentado deliberado contra a democracia e por isso o seu produtor só pode ser um terrorista, um rebelde. Há vários rebeldes, como se sabe, que se tornaram entretanto religiões oficiais. Se me perguntarem, por exemplo, se escrevo para ser lido, diria que sim, mas não necessariamente interpretado. A minha poesia seria grosso modo um tipo de Vida de Brian em que não importa o que diga tudo quererá dizer aquilo que as pessoas querem que se diga. Ou seja, os meus leitores já estão escolhidos. É um tipo de calvinismo, suponho.