Numa altura em o oceano Atlântico só era cruzado num sentido, do Brasil para cá, por artistas que traziam a sua arte a Portugal, Eugénia Melo e Castro quis fazer o caminho oposto. Em 1981, atravessava o oceano pela primeira vez, menininha, para atravessar o desconhecido e, cheia de convicção, bater na porta de Walter Tiso, um dos maiores produtores musicais do Brasil. Era com ele que queria gravar o primeiro disco. E foi com ele que gravou o primeiro disco. Trinta e cinco anos depois, mantém o ar de menininha, mas, garante, é só o ar. De qualquer forma, foi com esse ar que nos abriu a porta de sua casa, em Lisboa, e, sobretudo, a porta da sua vida. Que não é a vida da menininha Geninha, Mas antes a vida da “guerreira” Eugénia. Mas sempre Melo e Castro.
Acabou de anunciar que está a reeditar toda a sua obra em versão digital. Porquê agora?
A verdade é que alguns dos álbuns já estavam adaptados. Tenho 18 discos originais, contando com coletâneas são 27, e sempre com edições brasileiras diferentes das portuguesas. Sou dona de muitos dos meus masters porque, ao longo dos meus 35 anos de carreira, entretive-me a comprá-los às editoras. E são esses que estou a lançar agora, digitalmente, através da Farol, com quem tinha lançado o meu último trabalho, “Um Gosto de Sol”, que saiu no ano passado. O que fiz foi ir ter com a Farol para lhe ceder estes masters porque é muito difícil para uma pessoa independente pôr os discos nestas plataformas digitais. Fi-lo agora porque não concebo, neste momento do mundo, não ter toda a minha discografia ao alcance de qualquer pessoa, através das plataformas digitais. Os livros, graças a deus, não acabaram, como se anunciou. Mas o disco físico acabou. Os músicos tiveram de se reinventar. O que, aliás, é algo que todos os artistas devem fazer, é essa a nossa angústia. Isso e podermos mostrar o que fazemos. Ninguém trabalha para si, trabalhamos para os outros. E, neste momento, partilhar é a palavra-chave.
Já tinha começado a trilhar este caminho ao disponibilizar alguns dos seus trabalhos, gratuitamente, no seu próprio blogue.
Não fui eu que comecei com isso. Alguém disponibilizou isso num site, deve ter sido um fã anónimo. Achei engraçado e partilhei no meu próprio blogue o que outra pessoa já tinha feito. Mas não sou a Madonna, isto não influencia o negócio. Agora vou ao Brasil justamente para, entre outras coisas, reunir com a editora Som Livre para ver se consigo colocar online o “Canta Vinicíus de Moraes” que é o único álbum que vai ficar a faltar nas plataformas digitais.
A sua vida continua a ser essa ponte entre Portugal e o Brasil?
Estou em Portugal desde o Natal. Mas vou para onde há trabalho. E ultimamente tem sido muito mais no Brasil. Desde 2007 que quase não faço nada aqui. Fiz agora dois concertos infantis, e há um ano fiz o lançamento do “Conversas com Verso” que também é um livro infantil.
Porque acha que tem trabalhado tão pouco em Portugal?
Não tenho empresário em Portugal. Já tentei várias pessoas, mas não me encaixo em nenhuma prateleira aqui em Portugal. E portanto é difícil trabalharem comigo. Achava que isto nunca iria acontecer, mas aconteceu: fiquei muito tempo ausente. Não foi ficar muito tempo ausente do país ou da música, mas foi a minha imagem ficar ausente. Continuo a trabalhar muito mas não tenho repercussão na televisão, nos jornais, nas revistas…
Sente que caiu no esquecimento?
Exatamente. As novas gerações não fazem sequer ideia de quem eu sou. E isto para mim foi uma surpresa porque nunca parei. Quando me perguntam porque parei de cantar, eu nunca parei! Ainda antes de vir para Portugal para o Natal fiz quatro meses seguidos de espetáculos – o “Sereia Portuguesa” – em teatros espalhados pelo Brasil, sempre com filas à porta. E agora ia fazer mais uma série de 30 ou 40 espetáculos lá, mas foram adiados por causa de tudo o que se está a passar no Brasil. Mas isto não tem visibilidade em Portugal.
E de quem é a culpa?
É minha, só pode ser minha. Não frequento as festas que tenho de frequentar, não tenho empresário, não sou chamada para cantar em festivais… Quando comecei a cantar havia uma rede mais pequena e eu dava conta do recado, resolvia tudo pessoalmente. Mas o mercado mudou imenso e se não houver alguém que tome conta disso tudo, e que conheça o meio, não há como vencer.
Os portugueses não encaram bem quando uma pessoa tem também uma vida noutro país, acham ingratidão. Sentiu isso na pele?
Quando comecei, sim. Mas hoje em dia isso é impossível porque os maiores artistas portugueses cantam um pouco por todo o mundo. E tem de ser assim porque o mercado em Portugal é muito pequeno. E é ainda mais pequeno depois da troika. Os palhacinhos são sempre os primeiros a levar cortes, nós artistas somos sempre muito mal tratados. E foi o que aconteceu com a entrada da troika. Mas agora é o Brasil que está a passar por apuros.
Como vê toda a situação no Brasil?
Não faço a mínima ideia. Aliás, nem sei o que pensar. Acho que nem os brasileiros sabem. É tanta corrupção, tanta ladroagem, tanta confusão. Os salvadores são tão corruptos como os outros. Nunca se viu nada tão aberrante. Cheguei ao Brasil em 1982 e ao longo de todos estes anos já assisti a muitas crises no país, mas esta está a fazer uma coisa que nunca tinha visto fazerem aos brasileiros.
E o que é?
Entristecê-los. Desistirem. Pela primeira vez estou a ver os brasileiros a desistirem. E, além disto, estão com um nível de agressividade enorme. Até no discurso. As pessoas estão fartas.
Isso significa que vai regressar ao Brasil mais apreensiva?
Sim. Mas mesmo quando vim de lá o país já estava a começar a ferver. Por exemplo, os meus shows previstos para março passaram para agora e entretanto foram novamente adiados para o final do ano ou início de 2017. Agora vou lá ver o que se passa, tratar das questões do disco do Vinicíus de Moraes e também ver um disco que estou a gravar em Belo Horizonte. Mas só devo ficar um mês. A não ser que surja trabalho. Nunca vivi no Brasil, nunca quis ir viver para o Brasil. Só fiquei mais tempo entre 1983 e 1985 porque tinha uma novela para fazer lá, que me sustentava. De resto vivi sempre em Portugal e ia muitas vezes para o Brasil, por vezes durante temporadas mais prolongadas.
Há pouco disse como era normal, hoje em dia, termos muitos artistas portugueses a cantarem em vários locais do mundo, e também no Brasil, país que durante anos foi algo fechado para os nossos cantores. Nesse aspeto, a Eugénia foi pioneira, deu os primeiros passos nesse abrir de caminho. Sente esse estatuto como um orgulho ou uma responsabilidade?
Não gosto muito de bandeiras. Nem fiz nada a pensar no estatuto que iria ter. Fiz o que me apetecia, o que era o meu sonho. A minha cabeça estava muito virada para o espírito musical que havia no Brasil, de toda a gente a cantar com toda a gente, de haver imensas parcerias. Isso, para mim, era fascinante. Fui para o Rio de Janeiro a primeira vez em 1982 e acompanhei os anos 1980 e 1990 todos, só mais tarde mudei o meu poiso para São Paulo. Mas fiz o que fiz porque era o meu percurso, era o que queria fazer, não foi a achar que estava a carregar uma bandeira. Embora, pelo caminho, me tenha apercebido que estava a lançar discos, a dar entrevistas e concertos e sentia que as pessoas tinham imensa curiosidade sobre Portugal. Durante todos estes anos estive sempre a tentar mostrar que Portugal era um país moderno e que já tinha passado da cepa torta em que os brasileiros achavam que estávamos. Mas foi um bocado abrir mato à catanada.
E sente que esse papel no encurtar do Atlântico é mais reconhecido do lado do Brasil do que do lado de Portugal?
Não sei. Acho que não se pode estar a vida inteira no topo. Para mim a vida é trabalho, e é o trabalho que fala de mim. Por isso estou mais interessada em fazer do que em dizer que faço. E esse talvez seja o meu maior problema. Estou sempre tão absorvida e preocupada com a criação que não penso no resto. Por isso precisava do tal empresário!
E sente-se irritada com tudo isso?
Irritada, não. Mas triste e sozinha. Adoraria que Portugal visse com mais frequência as coisas que faço. Havia uma pergunta que me faziam ntigamente que acho humorística e que era se gostava mais de Portugal ou do Brasil. Agora perguntam-me porque deixei de cantar. Isso sim deixa-me irritada. Até sai fumo!
Uma das coisas que fez recentemente e que Portugal não viu, nem soube, foi o primeiro samba de enredo luso-brasileiro.
Por exemplo. Foi uma coisa absolutamente extraordinária, com a Mangueira – a minha escola do coração porque sempre foi a escola dos compositores – a ganhar. Fiz uma letra que diz que, tal como no fado se pede licença para cantar, também o samba pede licença. E gravei com o Alemão do Cavaco, que fez a música e é o top do samba. E eu nem sambo! Mas foi fantástico. É uma música sensacional, mas em Portugal nem souberam que fui eu. Mais ou menos nessa altura fui capa do “Estadão”, o jornal mais importante do Brasil. Não foi capa do suplemento cultural, foi mesmo capa do jornal! Não preciso de provar nada no Brasil, em Portugal é que preciso que me aceitem. E claro que sinto uma tristeza por ter conseguido mostrar, de forma mais evidente, o que faço no Brasil do que em Portugal.
Mas porque acha que, se tem sucesso no Brasil, continua sem encontrar solução para ter um empresário aqui em Portugal e procurar esse sucesso?
É, como disse, porque não me encaixo. Não sou fadista, não canto música brasileira nem canto com sotaque brasileiro, não sou do jazz… Não me encaixo em nada do que é preestabelecido. E também não vendo milhões. Se vendesse milhões já toda a gente queria trabalhar comigo. Por isso estou perdida. Como saio disto e como me reinvento aqui em Portugal? Não sei. Mas sei que ainda tenho tanta coisa para fazer. E sei que quero continuar a trabalhar e continuar a aprender. Por exemplo, toco piano, mas agora estou a reaprender a tocar guitarra, que no início da minha carreira tocava com o Júlio Pereira. Não quero estagnar nem achar que já sei tudo.
Nasceu a 6 de junho de 1958, mas em alguns documentos aparece que é natural da Covilhã e noutros de Lisboa.
Nasci em Lisboa, mas fui registada, 15 dias depois, na Covilhã. A minha mãe teve uma gravidez de risco e portanto passou muito tempo aqui em Lisboa, à espera que eu nascesse.
Disse que toca piano. O responsável por isso é justamente o seu avô da Covilhã?
Sim, o meu avô Ernesto. Ele era maestro e tocava violino e a minha avó tocava piano. Tínhamos sessões musicais em casa a toda a hora. Havia a música do jantar, a música do almoço, a música do lanche.
Não era uma seca aprender piano nessa altura em que os seus amigos iam era para a rua brincar?
Não porque eu levava aquilo um bocado na palhaçada. Ainda assim, lembro-me de ficar a martelar as teclas, literalmente, à procura de sons. Ainda hoje não sei como é que o meu avô aguentava aquele barulho todo! Acho que era porque ele queria muito que, tanto eu como a minha irmã, gostássemos de música. E acho que ele me via como alguém que podia ser uma concretização do que ele sonhou mas nunca foi profissionalmente. Lembro-me que tocava, tocava, tocava e só pensava que um dia alguém me ia ouvir e ia querer lançar-me. Ainda hoje sonho com a mesma coisa.
Ainda espera que a lancem?
Sim. O problema é que as pessoas acham que tenho este ar decidido e mandão e olham para mim e acham que não preciso de nada. Mas eu preciso tanto! Paga-se um preço alto para ser tão livre como eu fui sempre.
Em quase todas as suas entrevistas refere a sua mãe, a professora e escritora Maria Alberta Menéres, com grande carinho. Foi sempre uma figura central na sua vida?
Sim. Mas também o meu pai. Os meus pais são ambos escritores. O meu pai [E. M. De Melo e Castro], que neste momento mora em São Paulo, é precursor da poesia concreta e experimental, tem 84 anos e não para, nunca parou. Publica livros sem parar. Ainda hoje. É um intelectual de primeira água. E a minha mãe também. Por isso o meu mundo foram sempre os livros. Desde pequena.
Em sua casa não havia livros proibidos, os tais das prateleiras de cima?
Nada, nenhum livro era proibido para os meus pais. E tínhamos livros em toda a casa. Até nos nossos quartos, o meu e o da minha irmã, os meus pais guardavam livros. O meu pai comprava cinco a seis livros por dia. Se entrava numa livraria chegava a ficar lá dentro cinco ou seis horas e a família à espera. Era uma tortura para nós. E lia, lia, lia. Foi assim que nasceu a famosa lenda do parágrafo: cada vez que estávamos prontos para sair de casa, íamos dar com o meu pai sentado a ler. E ele dizia que era só terminar o parágrafo. Claro que não era. Ainda hoje o meu pai lê compulsivamente. A minha mãe, hoje em dia, já tem uma vida mais sossegada, sobretudo porque este ano partiu uma perna. Mas, ainda que mais em casa, continua a acompanhar tudo o que se passa na família. E passamos muito tempo todos juntos, somos um clã. Não tomamos decisões sem falarmos uns com os outros. Sempre assim foi.
O que leva uma jovem, que já tinha a música e os livros muito presentes na vida, a escolher estudar uma área que, pelo menos aparentemente, nada tinha a ver: design gráfico.
Adoro tudo o que tem a ver com estética. Queria ser arquiteta, cineasta, cantora… Quis ser muita coisa. E achava que podia ser tudo o que quisesse. Mas o design sempre me ajudou. Opino em tudo o que tem a ver com a imagem dos meus álbuns, dos meus livros. Sou uma chata.
No meio de todos esses desejos, estudou muita coisa. Menos canto.
Pois. Estudei arquitetura no liceu mas desisti por causa da geometria descritiva, depois estudei design gráfico, estudei cinema… Nunca estudei canto, mas tive aulas de voz, sobretudo para aprender a não destruir o meu aparelho vocal.
Foi muito nova para Londres, estudar. O que recorda desses anos?
Tiveram partes muito boas, outras menos boas…
Quais?
Não fui para Londres para estudar, fui para me curar. Tive um Linfoma de Hodgkin, uma leucemia linfática, foi isso que me levou para ondres. Fiquei um ano internada. No segundo ano tive alta hospitalar, podia sair mas tinha de ir fazer tratamentos todos os dias e dormir no hospital. Tinha 17 anos, estava a estudar artes gráficas, na António Arroio, e tive de interromper tudo quando descobriram que estava doente. Fui para o Royal Marsden Hospital, um centro especializado em linfomas.
Foi sozinha?
Foi toda a família, mas eu estava internada no isolamento, não podiam estar ao meu lado, portanto iam e vinham. Foi uma época chave na minha vida. Cheguei a Londres com um diagnóstico de 15 dias de vida, só o facto de conseguir lá chegar já foi um milagre. E o que me segurava todos os dias era a música. A minha irmã gravava-me cassetes do Chico [Buarque], do Caetano [Veloso], do Milton [Nascimento], que eu depois ouvia num daqueles leitores de cassetes antigos que tinha na mesinha de cabeceira. Nem televisão tinha. Passei um ano deitada, em isolamento. Fiz transplante de medula, que na altura era muito inédito ainda, tirei o baço, fiz quimioterapia, radioterapia. Fui uma cobaia. Ainda hoje, no hospital, se referem a mim como a Mary’s Case. Quando melhorei organizava corridas de cadeiras de rodas pelos corredores do hospital.
Nessa altura já gostava de música brasileira?
Sim, porque desde muito nova que o meu pai ia ao Brasil e quando vinha de lá trazia estes discos.
O que lhe passava pela cabeça durante o tempo em que esteve internada?
Era uma guerra constante. Todas as semanas me enviavam um padre de uma religião diferente para me darem os sacramentos, perguntavam-me várias vezes qual era a minha cor favorita que era para escolherem o cetim para forrarem o caixão e queriam saber de que flores gostava. Em Inglaterra era assim.
Porque nunca contou esta história?
Sempre temi imenso que as pessoas em Portugal soubessem que tinha estado doente. Sempre tive muito pudor. Tive várias recaídas ao longo dos anos, até em alturas em que já era cantora com discos lançados, e muitas vezes as pessoas achavam que eu estava no Brasil, na praia, de papo para o ar, e eu estava no hospital. Diziam-me que eu só queria saber dos brasileiros e eu a ser operada e a fazer mais tratamentos. Já era cantora quando, numa recaída, tive de ser operada à tiroide e fiquei um ano sem voz.
O que a levou a, ainda em Londres, ir estudar cinema?
Quando pude sair do hospital durante o dia fui inscrever-me em cinema que não só era algo de que gostava como a escola era muito perto do hospital. Só que percebi que seria muito complicado vingar no cinema. E ao mesmo tempo, no ano que passei na cama do hospital, a ouvir música brasileira, prometi a mim própria que, se saísse dali, ia gravar com todas essas pessoas que tinha passado aquele ano a ouvir.
E saiu do hospital.
Saí, e voltei a Portugal. Logo de seguida, aos 20 anos, conheci o meu marido, casei e um ano depois tive a minha filha, a Mariana, numa gravidez de alto risco que os médicos desaconselharam sempre e que me obrigou a passar mais tempo em Londres. Ela nasceu, separei-me e passei a dedicar-me totalmente à música. Foi nesta altura que gravei um primeiro trabalho, uma demo, com o Júlio Pereira. Mas ainda antes gravei um programa de televisão juvenil, de palavras cruzadas, chamado “Quadrados e Quadradinhos”. E cada vez mais comecei a infiltrar-me em tudo o que era produção musical e concertos. Os meus pais já se tinham divorciado, a minha mãe até já tinha voltado a casar, e eu fiquei a viver sozinha numa casa com nove quartos na rua da Escola Politécnica, que depressa passou a ser um ponto de encontro de músicos, nacionais e estrangeiros. Depois de sair do hospital sentia que queria agarrar o mundo, era tudo para ontem, era tudo urgente.
Como é que uma miúda portuguesa, que ninguém conhecia, chega a Wagner Tiso, um dos maiores produtores musicais do Brasil?
Ganhei dinheiro a fazer coros e, em janeiro de 1981, fui para o Brasil pela primeira vez, sozinha. Fui atrás dele, era ele que queria porque era o arranjador dos discos do Milton Nascimento, e eu queria aquele som no meu primeiro disco. Fiquei três dias a tentar descobrir a morada dele e bati-lhe à porta com a minha demo na mão. Quando me abriu a porta, disse que era portuguesa e que queria gravar com ele. Disse-me que uma menininha, de cabelo ainda ralo, por causa do cancro, que entrava por casa dele, com uma cassete, a dizer que tinha vindo de Portugal de propósito para gravar com ele, merecia que ele aceitasse. Em maio estava em Portugal para gravar comigo. Ainda hoje trabalhamos juntos. Foram mais de dez álbuns. Mas fui para o Brasil com a certeza absoluta que ia conseguir. Não sou nada acomodada, adoro desafios.
Depois trabalhou com Ney Matogrosso, com Caetano Veloso, com Milton Nascimento… O que recorda dessas primeiras experiências com gigantes da música brasileira e mundial?
Senti sempre que era uma troca extraordinária. De repente o meu sonho tornou-se a minha realidade. E era uma realidade dura: tinha de tratar da minha filha, ganhar dinheiro, compor, isto sempre sozinha.
Estar sozinha, com uma filha pela mão, a tentar construir uma carreira fora do seu país, e ainda por cima ser uma mulher muito bonita, revelou-se uma dificuldade ou bem pelo contrário?
Fui-me transformando numa pessoa mais bonita. Nunca me produzi, nunca me maquilhei. Acho é que estava a fazer algo que marcava a diferença: era eu, sozinha, a tentar vencer. Mas nunca fui uma menina de porcelana. Bem pelo contrário.
Sente que a imagem que o público sempre teve de si não corresponde à realidade?
Sim, a imagem que as pessoas têm de mim é o oposto daquilo que sou! Não sou frágil, não sou fofinha, sou independente. Nada me caiu do céu, vou atrás daquilo que quero, faço acontecer, ajudo os outros, trabalho muito, se for preciso esfrego a casa toda de esfregona e balde. Nunca fiquei à espera que as coisas me caíssem do céu. As posses que a minha família pode ter tido ficaram lá atrás. De resto, os meus pais trabalharam a vida inteira. A minha irmã trabalha desde os 17 anos. E eu sempre fui uma guerreira. Ainda mais desde que saí da cama do hospital. E tenho os meus problemas, mas não os exteriorizo. Não gosto de pesar as pessoas com os meus problemas. Só gosto de ser o centro das atenções se for para contar uma piada.
Está prestes a completar 58 anos. Ainda a chamam muitas vezes de Geninha?
Nunca percebi isso. Em casa tratam-me por Ni. Nunca na vida alguém me tratou por Geninha em casa. Na Covilhã algumas pessoas tratavam-me por Geninha, sem acentuar o ‘e’, porque é um nome de família. Se fosse rapaz seria Manuel Orfeu. Manuel por causa do meu pai, que é Ernesto_Manuel, e Orfeu por causa do movimento. Era esse o nome que tinha pronto para mim porque era suposto eu ter nascido rapaz. Quando nasci, como tinha acabado de morrer uma tia que era Maria Eugénia, fiquei Maria Eugénia. Para mim sempre foi um nome de tia. O_Geninha foi uma invenção da imprensa que nem sei bem de onde veio. No início ainda me insurgi porque queria um nome mais adulto, mas hoje em dia acho muito carinhoso. No Brasil, só os mais próximos usam o Geninha. O_Caetano Veloso chama-me Geninha, por exemplo. Hoje em dia, tratem-me como quiserem. Podem tratar-me por Vóvó. Gosto muito de ser avó, como sempre gostei muito de ser mãe. A maternidade esteve sempre muito presente em mim. Talvez porque sempre vivi num matriarcado muito forte.