Gonçalo Waddington. ‘Nota-se que nunca parei muito tempo num sítio’

Teatro, televisão, cinema, teatro, lugar nem sempre certo mas o mais provável para encontrarmos o ator, encenador e guionista que agora se faz também realizador. Mas teatro, é ao teatro que vamos, mesmo que a pensar já na longa metragem que virá depois, a primeira, em 2018. Chama-se “Presente” a primeira parte da tetralogia “O…

A pergunta que está na cabeça de toda a gente é qual é então o nosso desporto preferido?

O que é mais evidente, quase desde o início da peça, é que o desporto preferido é o sexo, logo depois começamo-nos a aperceber também que tudo o que envolva competição, nomeadamente na linguagem, como por exemplo entre os dois personagens que entram num despique verbal – a Crista Alfaiate e o Tonan [Quito] – em que percebemos que a própria linguagem é um desporto preferido. A personagem do líder, o Pedro Gil, também está sempre a tentar forçar uma linguagem elevada e cuidada.

A história da métrica…

A métrica muitas vezes falhada. E os outros gozam com ele por estar a tentar ser tão elevado e tão rebuscado. Depois vamo-nos apercebendo que a escolha do desporto preferido tem também que ver com tudo o que servir para se desgastarem com as tensões acumuladas num grupo que está há tanto tempo a viver trancado numa espécie de laboratório em que as pessoas já se envolveram todas umas com as outras e já não têm paciência umas para as outras, às vezes é bom que haja algum escape. Neste caso não há festa a noite inteira nem álcool, há eles envolverem-se todos uns com os outros, andarem à pancada, e aquilo que é a ideia da peça que é a investigação para construir o ser humano do futuro, que está neste momento [”Presente”, a primeira parte desta tetralogia] na barriga de uma das personagens, à espera. Eles estão numa fase de espera, à espera de Godot, de ver se aquela experiência vai dar frutos, e enquanto esperam vão-se entretendo imaginando o que é que será a linguagem do futuro -e o que é que será o desporto do futuro, o desporto preferido numa civilização do tipo III, uma coisa muito mais avançada que será esse ser que estamos a criar. Talvez o badminton. Um desporto muito exigente fisicamente, cansativo, muito rápido, em que ao mesmo tempo o volante, mesmo com os smashes mais potentes e poderosos, é um sopro. Esse contraste entre agressão e leveza, elegância e poder físico é um bocadinho o desporto que resume a peça.

Antes de uma civilização tipo III, que civilização tipo I é esta para a qual transitamos no tempo desta primeira parte?

Uma civilização no futuro poderá eventualmente ser interplanetária e ter seres de toda a espécie e feitio. O que os cientistas dizem, neste caso um russo, [Nikolai] Kardashev, que foi quem cunhou isto das civilizações, é que uma civilização do tipo I é uma civilização que deixa de extrair energia dos combustíveis fósseis, é uma civilização que consegue prever e proteger-se de todos os fenómenos meteorológicos, uma civilização que tem uma única língua, apesar de continuarem a existir as línguas de todos os países.

Nós estamos na fase mais complicada de todas, que é a transição de uma civilização tipo zero para uma civilização tipo I. Nós nem I somos. Há indícios, mas vemos recuos. Esta história de quererem fazer perfurações petrolíferas no Algarve, por exemplo, quando tudo aponta para que deixemos de o fazer no futuro. Duvido que Portugal e os contribuintes portugueses ganhem alguma coisa com isso. Se repararmos o nosso planeta tem uma língua comum que é o inglês. Se virmos isto interplanetariamente, se alguém nos viesse visitar saberia: “Há uma língua comum que eles falam todos e depois há regionalismos”, que seriam o português e o chinês. No outro dia li um artigo muito interessante sobre qualquer dia termos em Lisboa só turistas a fotografar turistas e alguém com piada disse que vamos ter que arranjar figurantes para fazer de pessoas.

Porque já não há ninguém.

Exato. Mas isso faz parte desta multiculturalidade, desta multi-etnia, isso é o planeta com todas as ligações cibernéticas e de transportes, um gajo passa um dia a viajar e está no Japão, qualquer dia passas só seis horas para ir para o Japão, isso é que é fixe.

Esta é uma peça política nesse sentido? Como surgiu a ideia?

Foi porque eu leio… a divulgação cientifica interessa-me. Interessa-me ler sobre Biologia, sobre Astrofísica, sobre Física e perceber onde é que nós estamos. É uma coisa que a mim me escapou em termos de estudos. Não estou a dizer que é impossível, mas é mais fácil e mais comum haver alguém que vem da ciência passar-se para as artes do que propriamente o contrário. Se agora quisesse estudar Astrofísica, que é uma coisa que acho mesmo estimulante, não tenho ferramentas para isso, mas a verdade é que há muito boa divulgação científica, publicações como a “Nature” e “Science”, que te permitem acompanhar estas evoluções todas. Quando estava a ler sobre esta questão das civilizações fui parar ao site do SETI, que reúne uma data de cientistas de todas as áreas que se dedicam à procura de vida extraterrestre e agora estão a decidir o que enviar numa mensagem num satélite, “mandamos música, mandamos o quê?” Uma das coisas incríveis sobre a impossibilidade e sobre a quimera é que perguntando a muitos cientistas – e eu perguntei – qual é a probabilidade de existir vida inteligente no Universo para além de nós, todos respondem que matematicamente é mais do que óbvio que há, que o que os números nos dizem é que é impossível que não haja, porque é tão grande e tão vasto, são tantas galáxias com milhões e milhões e milhões de sóis, com planetas a gravitarem em zonas em que não é muito quente nem muito frio… E qual é a probabilidade de encontrarmos vida inteligente? É quase nula. Porque andamos a mandar sinais para todo o lado mas os nossos sinais são muito pequeninos. Imagina que há outros que emitem sinais para aqui, que alguém mandou um sinal a 70 não sei quantos milhões de anos luz e que repente o sinal acerta na altura dos dinossauros. Os dinossauros veem uma cena… [risos] As distâncias do universo não são patavina, quantos sinais já não passaram… Isso é por exemplo a história do “2001: Uma Odisseia no Espaço” [de Stanley Kubrick, 1968]. Uma civilização do tipo III andou a pôr monólitos por todo o lado e tivemos que esperar porque os macacos que viram aquilo não tiveram capacidade para perceber o que era aquilo mas mais tarde encontraram a Lua.

E como chegou daí a esta peça?

Isso interessa-me, mas depois interessa-me entrar pela questão mais irónica e sarcástica de outra coisa que é a linguagem. O teatro é linguagem e a linguagem é a base de tudo. Sem linguagem não existíamos, a linguagem é a base do processo civilizacional. Eu e tu estamos aqui a dizer “olha esta app” da mesma forma que há milhares e milhares de anos um homem e uma mulher estariam a ensinar um ao outro como é que se esmagava um osso. O que me interessou foi como é que a partir de uma experiência científica que neste momento está numa espécie de pausa porque estamos à espera do resultado, estamos a falar da evolução da própria linguagem em si. Por isso é que há uma personagem que tenta falar tão rebuscadamente, mais tarde percebemos que a preocupação dele é que isso não se perca no futuro. Que não se perca a beleza da poesia, a elegância do discurso, quando ele próprio se deixa levar por aquelas outras pessoas que falam de coisas muito básicas como a vida sexual delas e gostam de dizer umas asneiras. E que quando quando de repente há alguém que propõe a abstinência sexual dizem “espera lá, o corpo é meu, é o meu último reduto de individualidade”.

Há um certo totalitarismo também.

Sim, um totalitarismo que todos eles, como é normal nos regimes totalitários, deixaram que acontecesse. Só que um totalitarismo um bocado idiota e parvo porque eles não lhe ligam nenhuma. A verdade é que eles estão fechados ali e eles são os únicos. A brincadeira disto é tentar perceber que aqueles gajos são a última amostra dos seres humanos e eles próprios apercebem-se: “Não somos em número suficiente para sobreviver. Mesmo que tenhamos filhos entre nós isso só vai servir para adiar uma coisa que é inevitável que é o nosso fim. Portanto o melhor é acabarmos já.”

E qual o papel da cadeira, que vemos em palco, a querer “deixar de ser uma metáfora”?

O que ela quer dizer no fundo é “eu aparento ser um ser, ter uma identidade, uma preferência sexual, só que eu ainda não sou, quero um corpo concreto. E para ter um corpo concreto se eu não o transmigrar para um corpo à séria, se não fizer download da minha personalidade para um corpo à séria, ao menos toca-me e possuiu-me como um corpo à séria. Ela declara-se a ele numa cena com alguma ironia e sarcasmo tipo Sharon Stone [em “Instinto Fatal”] e ele, que é muito totó, “estás muito perto de mim, estás a tocar-me?”, e aquilo torna-se uma cena de amor, uma coisa sexual com uma cadeira, que é também para percebermos que é assim que ele vive a sua excitação intelectual. Qual é a parte mais sexy ou mais sensual de uma pessoa? Há pessoas que respondem que é o cérebro. Aquele jogo todo com ela, que é quase um jogo imaginário de alguém que está a falar consigo próprio e essa metáfora é “eu quero ser real, quero ser uma pessoa, toma lá coragem e transforma-me numa mulher”. E provoca-o: “E se eu quisesse ser mulher num corpo de homem?” Porque ela não sabe se sair da cadeira o que é que vai querer ser: se uma mulher no corpo de uma mulher, se uma mulher no corpo de um homem… se calhar é melhor continuar cadeira.

Falávamos há pouco sobre como eles já quase enlouqueceram fechados num laboratório há tanto tempo, só eles. Do elenco desta peça faz parte a Carla Maciel. Têm trabalhado muito em conjunto ao longo dos anos, sobretudo em teatro. O que é que se ganha e o que se perde com isto de trabalhar com a pessoa com quem se tem uma vida?

O que se perde é tempo. Perdemos mesmo tempo. Tempo para outras coisas, porque ao trabalharmos e estarmos juntos há tanto tempo, às tantas as coisas misturam-se. De resto não se perde mais nada, só se ganha. É uma coisa que acontece com outras pessoas, eu trabalho sempre com as mesmas pessoas. O Romeu Runa, por exemplo, que entra nesta peça, quando o vi com o Tonan Quito [que também faz parte do elenco] no “Ricardo III”, percebi logo que ia funcionar porque era a mesma linguagem. Com a Carla o que acontece é que já nem precisamos de falar.

Já agora, ela está mesmo grávida?

Não [risos].

Porque parece.

Ainda bem, porque é uma barrigona que estava sempre a subir e tivemos, com alguns elásticos, que empurrar aquilo para não subir tanto e ficou mesmo bem. Mas não, não está grávida.

Li algures que nasceu na Venezuela, achei que tinha nascido em Lisboa.

Não. Nasci cá e fui viver para a Venezuela até aos sete, oito anos, portanto a infância foi vivida realmente na Venezuela. E foi intenso, porque aquilo era no meio do mato. Foi a construção de uma barragem que envolvia várias fases.

Pois, também li que a profissão dos seus pais era construir barragens.

Sim. A primeira fase foi para desbravar aquilo, não havia nada, a segunda foi construir os bairros onde os trabalhadores iriam viver, porque ninguém vivia ali a não ser umas tribos, e depois quando já estava isso tudo construído e tinham supermercados, clubes de ténis, de futebol, é que se começou a construção da barragem. Foi nessa altura que eles foram para lá e passados sete ou oito anos é que vieram embora. Ele já tinha estado na construção de outras barragens, depois essa do Guri, foram muitos anos em viagens em barragens, eu nasci só antes de irem para essa do Guri.

E o que há em si desse tempo?

Para além das recordações muito presentes daquele país tão quente… aquele país é muito diferente de Portugal em tudo e naquela altura então era ir passar férias à ilha Margarita que era uma coisa completamente selvagem e hoje é tipo Quarteira. Sei que é porque vejo fotografias. Em frente ao mar, onde há só hotéis, hotéis, hotéis, na altura havia um hotel e depois os índios que andavam lá na praia a vender umas frutas aos turistas.

Conviveu com índios na infância?

Sim, foi muito giro. Depois a malta ia passar férias numas ilhas fluviais no meio do rio Orinoco, e eram também uns índios que nuns barcos nos levavam até lá. Quando chegámos cá mudámos de casa outra vez e o facto de eu nunca ter parado muito tempo num sítio nota-se. Quer dizer, digo eu que poderá ser também o que caracteriza um bocadinho a minha maneira de estar no trabalho, sempre a mudar de focos de interesse.

Pois, ator, encenador, guionista, realizador, teatro, cinema, televisão…

É isso, é sempre estar à procura de estímulos diferentes.

Mas à procura do definitivo, daquilo que o realiza, ou porque precisa mesmo de estar sempre a mudar de sítio?

Acho que sim. Ao início, se calhar, era “estou à procura de qualquer coisa até encontrar”, mas a verdade é que na procura é que está o motor. O objetivo é estar sempre a procurar para mudar os focos de interesse. Eu acabo esta peça, vou estar três dias na Grécia num workshop para guionistas, mergulhar noutra coisa completamente diferente, depois volto a fazer uma peça e depois mergulho a fundo no filme, para preparar, filmar…

Para 2017?

2018.

É o quê?

É um filme que vou fazer com a produtora Som e a Fúria, não posso dizer muito agora, ainda é muito cedo.

Uma longa-metragem?

Sim, com o João Leitão. A questão é que depois quando volto ao teatro, ou quando depois de estar no teatro volto ao cinema, venho com outro tipo de energia e com outra perspetiva. Não fico muito tempo no mesmo sítio.

Mas não há uma casa onde regressa no teatro?

A experiência que tenho em cinema é pouca, já fiz duas curtas metragens [“Nenhum Nome”, em 2010, e “Imaculado”, em 2013], fiz mais como ator e gosto muito, agora como realizador acho que isso ainda está a acontecer, a criar-se. Em televisão já fiz muita coisa, mas de interessante fiz pouca. Já há muito que não faço coisas que, à partida, sei que vão ser desinteressantes, porque não tenho tempo. Felizmente, tenho outras coisas para fazer. A verdade é que o teatro é o meu…

O seu chão?

É constante, sempre a fazer. Como ator, a escrever, a encenar. O teatro é mesmo o picadeiro e não largo o picadeiro.

E aquela ideia de pegar em Thomas Pynchon e James Joyce algures este ano?

O projeto do Pynchon é uma coisa que acabou por não ser um projeto mas uma grande influência aqui [em “O Nosso Desporto Preferido”]. Estava a ler o “Arco-Íris da Gravidade” [1973], um livro em que durante muito tempo tu não percebes bem onde é que está o Tyrone, o protagonista. Nunca percebes. Está num quartel, depois está num navio, depois há uns flashbacks e percebes que está num laboratório de guerra, depois anda ali pelos escombros à procura de não sei o quê, depois torna-se espião para não sei quem, depois há umas experiências pavlovianas com ele e com cães e animais e isso indiretamente está muito a influenciar esta peça. São cientistas, não percebes bem onde é que estão, o que é que se passa, há ali às tantas um tipo que tem uma vida dupla porque viveu como cão e viveu como polvo. Esse ambiente Pynchon está ali de alguma forma. O Joyce é um projeto que tenho daqueles que estão na gaveta, uma coisa que quero fazer mas que tenho que encontrar ainda a porta de entrada. Algo me diz que vou fazer qualquer coisa a partir do Joyce, só ainda não sei o quê. Tenho muito presente os “Dubliners”, O “Retrato de Um Artista Quando Jovem”, o “Ulisses” comecei a ler aos 20 e qualquer coisa e não consegui, vou tentar outra vez agora, quero ler a obra toda e depois perceber o que é que posso fazer. É um autor que acho fascinante e não sei se é possível sequer por em teatro alguma coisa daquilo.

Além do “Ulisses”, que livros quis ler e nunca conseguiu?

Tem que acontecer ler o “Guerra e Paz”, tem que acontecer ler bem a “Bíblia”, de onde li muito pouca coisa, muito esparsa, e é um livro que é impensável não se ler. Depois há muitas coisas que não li do Saramago, do Lobo Antunes, há muitos autores contemporâneos que eu não li, muitos clássicos que eu não li, o “Satíricon” não li, Ovídeo ainda não li, a lista é grande.

Como disse o Almada Negreiros sobre tudo o que uma pessoa não vai conseguir ler nunca: “Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido”.

Sim, sim. E aquela fase em que te apercebes: os livros que tenho neste momento já ultrapassam a minha capacidade de leitura.

Na vida?

Sim. E apesar de haver muitos livros que dou e que vendo ainda compro alguns. Felizmente poesia, onde há muitos clássicos que eu ainda não li, tenho conseguido nos últimos anos cobrir uma lacuna que sentia que claramente existia. E não é por forçar, é porque eu sei que há muitos clássicos de que vou gostar. Então no caso da poesia, e da poesia contemporânea, particularmente na poesia portuguesa, tenho conseguido acompanhar porque consigo facilmente fazer uma pausa num livro que estou a ler agora, por exemplo, ou entre acabar um livro, um romance, e começar outro leio dois ou três livros de poesia de coisas que saíram agora, como o Vasco Gato que publicou agora o “Lacre – Traduções e Versões de Poesia” [ed. Língua Morta], o António Poppe, a Raquel Nobre Guerra, malta que eu gosto de acompanhar. Aí acho que consigo manter mais viva a velocidade de tentar ler os livros à medida que eles saem.