Juan José Saer: O outro grande escritor argentino

Ao quarto livro publicado no nosso país, aquele que é invariavelmente apresentado como o maior escritor argentino depois de Borges ainda permanece um achado de poucos leitores.

Foi já há 27 anos que Juan José Saer foi pela primeira vez traduzido em Portugal, numa das mais admiráveis coleções literárias que o nosso meio editorial já construiu e de que, tristemente, hoje só resistem os despojos. Falamos de Uma Terra Sem Amos, da Editorial Caminho, outra das editoras que perderam identidade no processo de engorda que foi o da concentração editorial português, uma vez mais importando modelos estrangeiros. Naquela coleção foram publicados outros dois preciosos títulos do escritor argentino, As Nuvens (2001) e A Investigação (2002). Tratou-se de um arranque auspicioso, para um autor que, com uma escrita que um crítico definiu perfeitamente como «luminosamente ensimesmada», depois de ter passado quase toda a vida na penumbra, nas últimas décadas da sua vida conheceu um amplo reconhecimento nos países de expressão castelhana.

Saer morreu em 2005, aos 67 anos, deixando um legado de 12 romances, nove volumes de contos e ensaios, e um só livro de poemas. Um argentino que se desterrara em mais do que um sentido, vivia há muito num apartamento com vista sobre a estação de Montparnasse, em Paris, com a mulher francesa, Laurence. Escolheu fixar-se e viver até ao fim dos seus dias ali não apenas pela esplêndida vista, mas pela comodidade que lhe oferecia, apanhando regularmente «o comboio no rés-do-chão» para ir dar aulas de literatura na Universidade de Rennes, na Bretanha.
Foi em 1968 que recebeu o convite para estudar durante seis meses em França. É evidente pela sua obra que manteve o laço afetivo, em alguns aspetos traumático, com a sua terra natal, mas não lhe regressou.

Deslocado do eixo literário da capital, Saer nasceu em 1937, em Serodino, na província de Santa Fé, filho de um casal de sírio-libaneses. Na sua escrita, fortemente marcada pelas suas vivências e pela convulsão política que atravessava o país, não há qualquer vénia ao ambiente dos salões de tango de Buenos Aires, e as estravagâncias barrocas nada dizem à sua prosa. O realismo mágico, que se tornou o selo da literatura de origem latino-americana que vingou mundo fora, não teve nele um especial adepto, embora seja claro que leu e admirava à sua maneira a obra fundamental de Juan Rulfo – que composta por um único romance (Pedro Páramo) e um livro de contos (A Planície em Chamas) é tida como o momento seminal daquele movimento literário.

Saer rejeitou de forma veemente e bastante polémica a emergência de uma literatura latino-americana, deixando claras as suas suspeitas em relação ao ‘boom’ que elevou instantaneamente à glória um conjunto de autores – entre os quais se destacam García Márquez e Vargas Llosa –, como representantes de uma vaga estética comum, e que, segundo Saer, nunca foi mais que um fenómeno promovido pelo mercado. Para ele toda a obra literária pretende aspira a um caráter universal, e um autor só o consegue se for capaz de fundar a sua própria tradição.

A Portugal chegou agora Cicatrizes – através da editora Cavalo de Ferro –, aquele que é considerado o primeiro romance da maturidade literária de Saer (e para alguns será mesmo a sua obra-prima), um livro que espelha bem a convicção de Saer de que «a novidade de um relato não reside tanto na história que conta como na sua estrutura narrativa, que traduz o universo a partir do qual escreve um autor».

Este romance desafia a estrutura convencional do romance tendo como eixo um homício que vai cruzar e ao mesmo tempo será obliterado por quatro narrativas que se diferenciam umas das outras, respeitando a visões de quatro personagens, nas quais se entretece uma perspetiva disfórica de um período histórico identificado, e onde ganham relevo uma série de inquietações filosóficas que permearem toda a obra de Saer.