Farmacêuticos vão monitorizar doentes

Lei inédita vai consagrar o papel dos diferentes profissionais de saúde, ao fim de 20 anos a tentar-se definir o «ato médico». Segue-se a procura de consenso em torno da sustentabilidade do SNS.

Farmacêuticos a ajudar doentes a organizar a medicação e ouvir as suas queixas. Acontece todos os dias nas farmácias mas só agora será reconhecido formalmente. O governo e as sete ordens profissionais com intervenção nos cuidados de saúde (médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, farmacêuticos, dentistas e biólogos) estão a trabalhar num diploma que define, pela primeira vez e de forma articulada, as competências dos diferentes profissionais. Ainda não há consenso total, mas o reconhecimento do papel dos farmacêuticos na «administração e monitorização de medicamentos» é uma das novidades na última versão do diploma, a que o SOL acedeu.

Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, explicou ao SOL que se nas farmácias hospitalares este trabalho já é reconhecido, nas farmácias comunitárias a primeira grande concretização será o protocolo para dispensa de antirretrovirais. Até aqui os seropositivos levantam a medicação nos hospitais e poderão passar a fazê-lo nas farmácias se assim o entenderem, num acordo entre o governo e a Associação Nacional dos Farmácias que aguarda luz verde das Finanças. Ana Paula Martins adianta que fica aberto caminho para outros protocolos: «Há um reconhecimento da relação de proximidade entre farmacêutico e doente e uma maior articulação com os médicos assistentes. Atualmente existe essa relação mas a articulação com os médicos nem sempre é imediata».

A criação deste diploma tem passado despercebida mas as reuniões que sentam à mesma mesa os sete bastonários começaram em Março. Nos últimos 20 anos houve várias tentativas para legislar o «ato médico», algo que a Lei de Bases da Saúde prevê desde 1990. Em 1998, chegou a haver reuniões entre ordens e o parlamento aprovou, em 1999, um diploma que estabelecia o ato médico, dizendo que só tinham competência para tal licenciados em medicina inscritos na Ordem – na altura um diploma polémico por surgir no seio da luta dos médicos contra as terapias alternativas.

Nos trabalhos preliminares, o diploma reconhecia que outros profissionais de saúde legalmente habilitados podiam praticar ações técnicas integradas no conceito de ato médico mas a versão final deixou cair esse artigo. Jorge Sampaio acabou, porém, por vetar o diploma, invocando ausência de debate. No ano seguinte, o PSD apresentou um novo diploma que regulava apenas as competências médicas, considerando que não estava em causa definir o ato terapêutico nem outras intervenções autónomas. Este projeto também não avançou.

Desta feita, a iniciativa do governo foi criar uma legislação transversal, para valorizar a interação e o trabalho em equipa, bem como os conhecimentos e competências de cada profissão. Da lei do ato médico passou a falar-se de uma «lei do ato em saúde», num processo que, ao que o SOL apurou, tem sido acompanhado de perto por Marcelo Rebelo de Sousa, que já mais do que uma vez saudou os consensos na saúde e apelou a mais convergências.

Enfermeiros insatisfeitos

As maiores reservas foram tornadas públicas na última semana pela Ordem dos Enfermeiros. Uma segunda versão do documento, discutida esta semana numa reunião entre as diferentes ordens, surgia excluida algumas competências de enfermagem (como o diagnóstico e prescrição de atos de enfermagem). Os enfermeiros viram reconhecidas apenas as funções de avaliação e execução de terapêuticas, quando às restantes ordens são reconhecidas competências de intervenção.

Outro ponto de discórdia é o facto de outras profissões verem reconhecidas competências que vedam a ação dos enfermeiros, como administrar também medicamentos (por exemplo vacinas) ou dar conselhos nutricionais. Na descrição do ato de enfermagem surge ainda a legis artis, termo médico que a bastonária Ana Rita Cavaco considera ser uma provocação. Perante a contestação, o governo pediu novos contributos até à próxima semana.

Ontem, o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses juntou-se ao protesto da Ordem e considerou que a versão atual do diploma é um «retrocesso de 50 anos no reconhecimento das competências dos enfermeiros». O SEP inclui a revisão do documento nas reivindicações que levam à convocação de uma greve para o final do mês. A bastonária Ana Rita Cavaco adiantou, contudo, ao SOL ter a garantia da tutela de que o diploma só será fechado com acordo de todos.

Nesta procura de consensos inédita, há um documento mais amplo na forja. As ordens foram convidadas pelo governo para construir e assinar um ‘Compromisso para a Sustentabilidade do SNS’ – documento já mais próximo do pacto para a Saúde a que Marcelo tem apelado mas ainda sem passar por uma concertação entre partidos, os destinatários finais dos reptos do presidente.

Os principais eixos deste compromisso, a que o SOL teve acesso, incluem a ideia de multidisciplinaridade e passam pela promoção da saúde, redução das desigualdades, reforçar o poder do cidadão no SNS, expandir a rede de cuidados ou melhorar a gestão dos hospitais e de recursos humanos. No final, serão traduzidos em medidas concretas.

Por esta altura, os trabalhos estão mais demorados, até porque as medidas esboçadas não têm ainda indicadores precisos, o que alguns bastonários consideram essencial para assinarem o documento. «Mais do que uma data para encerrar qualquer um destes dois documentos, estamos interessados em que sejam documentos em que todos se revejam e constituam marcos em saúde para o futuro», disse fonte do ministério.