Bem dizia o sábio Winston Churchill que a democracia era o pior de todos os sistemas, com exceção de todos os outros. Tem as suas avarias, mas, à falta de melhor, vai cumprindo. Não pode é ser muito esticado; o referendo já é um esticanço que lhe faz gripar o motor.
O problema não está só na clássica ignorância da plebe, sujeita aos ataques predadores de toda a espécie de caciquismos; a plebe nunca deixará de ser ignara, pela boa e simples razão de que todos temos mais que fazer do que saber o que é melhor para nós.
Um dos grandes confortos da democracia é o de delegarmos o conhecimento profundo da coisa pública em especialistas. Confiamos na competência e na honestidade dos políticos, do mesmo modo que confiamos em médicos para nos tratarem ou em advogados para nos defenderem. Se não cumprirem, corremos com eles: pelo menos, se falharem, não nos matarão nem nos mandarão para a prisão.
Em democracia, a incompetência política nunca é tão fatal como pode ser a de um médico.
Pelo que percebo, muitos ingleses choram já lágrimas de arrependimento; votaram contra a União Europeia só para lhe fazerem ver que estavam amuados com ela (quem não está?), sem pensarem que a birra poderia transformar-se numa coisa séria.
O mimo da democracia distrai-nos da vida real. E personagens fantasmagóricos como aquele alemão das Finanças não ajudam ao bom ambiente neste encantador Jardim das Delícias do Ocidente.
A Inglaterra sempre se achou especial, e ainda bem.
Foi assim que se fez primeiro mãe e depois filha dos Estados Unidos da América e se transformou na versão Disney da Roma Imperial contemporânea, deixando ao Novo Mundo a versão para adultos do Império.
Portugal e o Brasil representam o ramal B, exclamado e enrascado, deste protótipo de construção civilizacional – e não deixa de ser curioso que, neste instante, o pequeno Portugal e a sua criativa engenhoca política funcionem com maior limpeza do que o grande Brasil, inundado nas lamas torrenciais da operação Lava-Jato.
O abanão inglês pode servir de despertador a uma Europa que se desmazelou por excesso de confiança nos seus atrativos e falta de confiança nas suas capacidades; a Europa tem-se comportado como uma menina bonita, fútil e muitíssimo preguiçosa que se deixou deslumbrar pela mota potente e pelo ar negligé do capitalismo selvagem vindo das Ásias esclavagistas.
E deixou-se manipular, como sempre, pelo aroma Chanel da chantagem emocional: os tetravós colonizadores, oh, o peso culposo dos pergaminhos e do mal.
De modo que as suas decisões são sempre leves, lentas, insinuantes e sinuosas: exército europeu, nem pensar, que a Europa é uma rapariga pacífica; por isso lavou as mãozinhas dos massacres balcânicos, por isso se comove com o drama dos refugiados que se matam para tentarem ser europeus, pertencer a esse pequeno mundo de direitos e garantias, mas reage devagar, julgando que adiando a resolução o problema desaparecerá, devagar, e ela poderá continuar a sua vidinha protegida e sossegada.
Ironicamente, entre as potências europeias, é da Alemanha e não da França que se tem escutado uma voz em prol dos refugiados.
Têm faltado à Europa líderes lúcidos e corajosos – Angela Merkel e António Costa são neste momento, com as suas imensas diferenças, os únicos governantes europeus com esse estofo de liderança feito de firmeza, convicções e capacidade de diálogo.
A crise aberta pelo referendo inglês – a derradeira prova de estupidez política de David Cameron – pode abanar as águas. Não pode é tornar-se contagioso este vício referendário: o destino das nações não pode transformar-se num permanente jogo de sim ou não, com pequenas maiorias a comprometerem decisiva e levianamente o futuro de imensas minorias.
Democracia não é a ditadura da maioria, nem deve ser um produto de birras ocasionais; as decisões parlamentares pressupõem o conhecimento pormenorizado das matérias em causa, pelo que incorporam as zonas cinzentas, os interesses das diversas minorias, debates, acertos. Nas decisões referendárias não há contemplações: é o tudo ou nada – a leviandade absoluta.
A Europa é agora obrigada a definir-se – coisa contrária à sua maravilhosa e inspiradora natureza de liberdade vazia e à sua anquilosada cultura de luxuosa burocracia e conversa fiada. Não pode é continuar às voltas no seu aquário, ano após ano, como naquela velha canção em que os Pink Floyd perguntavam: sabes destrinçar o céu do inferno, os céus azuis da dor, um sorriso de um véu?