E o sonho explodiu como se um sol iluminasse a noite de Paris. Chegado a Saint-Denis no ponto mais alto do sacrifício, Portugal soube ser imenso e conquistou pela primeira vez na sua história a Taça Henry Delaunay, que premeia a melhor seleção da Europa, à custa do seu verdugo de sempre, a França de todas as vaidades e de todas as arrogâncias.
Foi lindo! Lindo de ver! Eles podiam ter os Campos Elísios e a Torre Eiffel e a pobre da Joana d’Arc, mas Portugal tinha o segredo para lutar contra toda uma nação: ser mais do que 11, ser mais do que um país – ser um só!
Muito se poderia esperar deste Portugal-França – exatamente assim, como veio na ficha do encontro -, menos que Ronaldo fosse tão cirurgicamente assassinado ainda não estavam decorridos 20 minutos de jogo, ficando incapacitado, logo ele que tinha tudo para se tornar a grande figura da final do Campeonato da Europa de 2016. Voltámos dez anos no tempo àquela macabra tarde de Nuremberga, na qual um árbitro russo chamado Ivanov deixou que Cristiano fosse caçado a patadas como uma ratazana por um infame holandês chamado Boularouz. Aí, tal como ontem, o jogo passou a ser um desígnio de coragem. A partir do minuto em que um tal de Dimitri Payet, herói precoce da França neste Euro, nascido na Ilha da Reunião, nos confins do oceano Índico, atirou com o “capitão” português para o estaleiro, as coisas alteraram-se no equilíbrio já de si pobre das possibilidades de uns e outros.
Foi preciso que Portugal se enchesse de coragem para ignorar e ultrapassar o terrível rombo que a sua caravela sofrera, propondo-se encarar com a mesma vontade e a mesma dignidade um mar alteroso que trazia em si as maldições do antiquíssimo mostrengo. Fê-lo. Adornou, aqui e ali, viu-se empurrado para trás, sentiu a falta impossível de colmatar do seu timoneiro, do seu capitão. Aguentou firme enquanto pôde.
E pôde muito!
A sangue frio… Um calor terrível e apertado rodeou Paris como se fosse um presságio. Bom ou mau? Enigmático como todos os presságios…
Uma chuva de insetos tombou sobre o Estádio de França para felicidade das andorinhas e imitando uma praga do Egito.
Dia estranho, este.
Também fazia um calor grosso em Lisboa no dia 4 de julho de 2004. Lembro-me bem. Como poderia esquecer? Dia único, irrepetível. A meu lado, Paco Aguilar, veterano destas guerras, jornalista-mor do “Mundo Deportivo”, comentava: “Espero por este momento há 12 anos.” É difícil ser mais português do que ele, acreditem. Desde 1996, há portanto 20 anos, que calcorreia a Europa e o resto do universo atrás da seleção nacional. Que é um pouco dele, igualmente.
Esperava a vitória, como é óbvio, de um óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues. Espera a vitória como todos os portugueses esperavam lá no fundo da alma, ligeiramente acima do coração.
Nenhuma das equipas entrou em campo com qualquer surpresa no onze. Pela primeira vez, Fernando Santos manteve-se fiel à última escolha (com a entrada de Pepe para o lugar de Bruno Alves), enquanto Didier Deschamps confiou no conjunto que entrou em campo para bater os campeões do Mundo, os alemães, por 2-0, em Marselha.
Se havia dúvidas quanto ao peso que iria cair sobre os ombros dos lusitanos, elas desfizeram-se rápido. Mais de dois terços de azul para um pequeno canto vermelho e verde. Portugal contra uma nação, contra toda a França em bandeiras aos milhares. Um mar azul, branco e vermelho. Uma mar de gente a cantar “A Marselhesa” com um timbre de orgulho na voz e uma esperança difícil de contrariar. Esperança? Que digo eu? Tratava-se de uma certeza. Uma certeza absoluta na vitória.
“Levez les mains en air! Allez! Allez! Allez!”
Cabia a Portugal o lugar mais pequeno nesta final desigual. Cabia a Portugal lutar contra essa desigualdade tão intensa. A cada grito português levantava-se a resposta ensurdecedora de um “HUH” que os islandeses deixaram ficar após a sua partida. Por entre as exclamações e o voo desordenado das traças, um jogo de roucos, de desgraçar gargantas.
Um Jordão regressado do Tempo Cantaram-se os hinos e acabaram-se as tréguas.
Havia nervos e tensão. E uma seleção portuguesa, como de costume, mais na expectativa.
Sabia-se como é possante o meio-campo da França. Jogadores poderosos, plenos de vigor. Deschamps deixou-os impor a sua força. O árbitro também e Ronaldo não tardou a sofrer as consequências. Sofria Ronaldo e sofria Portugal, remetido ao seu papel secundário. Era preciso pegar na bola, tratá-la com jeitos epicuristas, roubá-la ao adversário excitado, inquieto, como um animal selvagem que sente o cheiro do sangue.
Cristiano Ronaldo coxeava. Temia-se o pior.
A diferença física entre uma e outra equipa era evidente, entrava pelos olhos dentro com a claridade de um raio de sol pela manhã. Era necessária uma resposta. Um ou outro movimento de rapidez, de surpresa, de insubmissão.
Mas o capitão da seleção nacional não aguenta. Sai em lágrimas, como em 2004, desta final que deveria ter sido a sua mas não deixaram.
A França vem agora em vagas. E a bola ronda lugubremente a baliza de Rui Patrício.
Nas bancadas, o povo acredita e grita. Não será por ele que a equipa cairá.
Tratava-se agora de aguentar ou correr o risco? Esperar por uma derrota anunciada e cantada pelos franceses aos ventos do Hexágono de há três dias para cá ou recusar a facada do destino dada pela mão de um inglês de nome Clattenburg?
Portugal escolheu o caminho da coragem. Quis jogar no campo todo e jogou. Lambeu a ferida purulenta de um golpe bruto e imerecido e foi à procura de ser feliz de uma forma como ainda não se vira durante a competição. E a França confundiu-se. Não era assim que as coisas tinham sido programadas. O Portugalzinho valente, de pelo na venta como o Raposão do Eça, não aceitava o sacrifício. Tinha agora 11 capitães ao leme e eram mais do que eles. Eram um povo inteiro a querer dobrar a dor azul de que falava Manuel Alegre.
O tempo passa. Mais depressa para os franceses. Griezmann falha um golo escancarado, já feito. Moutinho entra para o lugar de Adrien. O carniceiro das Mascarenhas sai sob os assobios agudos dos portugueses que desafiam o silêncio e não se calam. Giroud volta a ameaçar o golo.
Vamos a passos largos para o prolongamento. Mais um nesta via sacra da passagem de Portugal pelo Europeu de França.
Agora sim, Portugal só defende e está no ponto mais extremo da resistência. Fernando Santos acredita em Éder, João Mário passa para o meio e Quaresma cola-se à esquerda. De repente, assim tão de repente, há um momento. E outro. E outro ainda. Um jogo que acende outro jogo; novo jogo dentro de um que já caíra como o casulo da crisálida.
“Às armas sobre a terra e sobre o mar!!!” E o Estádio de França cala-se e ouve.
E a sorte respeita os portugueses, pondo-lhes um poste na frente do golo de Guignac.
Eles falam de um “sangue impuro” que não sabemos qual é. Chamam, por sua vez, às armas os seus cidadãos. Que de nada lhes servem quando o livre direto de Guerreiro explode na trave de Lloris.
E golpes finos de espadas aguçadas trocam-se sobre a relva de Saint-Denis.
E Éder, como um Jordão regressado do Tempo, dá a espadeirada fatal que rasga a França pelo meio da sua arrogante vaidade!
Nunca mais se esquece. Fica para sempre guardado na aldeia branca da nossa memória.