Recep Tayyip Erdogan disse que o golpe falhado da noite de sexta se revelou afinal “um presente de Deus… porque irá servir para uma limpeza do nosso exército”. O todo-poderoso presidente turco, que domina a vida política do país há mais de uma década, tinha já avisado que o parlamento podia vir a ter diante de si uma proposta para restaurar a pena de morte, e com o número de pessoas detidas a ultrapassar as seis mil, a implacável purga nas instituições estatais do “vírus” que esteve por trás do golpe falhado ameaça tornar-se a primeira fase de um banho de sangue.
Perto de 300 pessoas morreram nos confrontos que resultaram das horas de tensão depois de uma fação dentro das forças militares ter posto em marcha um débil plano na tentativa de ocupar alguns pontos estratégicos de Ancara e de Istambul com o alegado objetivo de tirar do poder um regime que tem sufocado os direitos e liberdades individuais, ou seja, o cada vez mais autoritário aparelho do partido islâmico de Erdogan, o Partido da Justiça e Desenvolvimento – AKP. O golpe seria assim um esforço de devolver o país à tradição laica, valor essencial do moderno Estado turco, fundado após a dissolução do Império Otomano – na sequência da derrota frente aos aliados na Primeira Guerra Mundial – por Mustafa Kemal Atatürk, líder militar e primeiro presidente do país.
No funeral de uma das vítimas, Erdogan voltou ontem a apontar o dedo ao clérigo turco Fethullah Gülen, um ex-aliado seu que vive desde 1999 em reclusão na Pensilvânia, nos EUA.
Segundo a CNN turca o chefe militar que aconselhava Erdogan, Ali Yazici, estava entre os detidos. Além de altas patentes do exército, 2700 juízes estão entre as pessoas detidas na ação relâmpago do governo para se livrar de uma vez por todas do suposto “Estado paralelo”. Ou seja, um conjunto de figuras com posições influentes no aparelho estatal e que seguem os ensinamentos de Güllen. Este grupo que Erdogan classificou agora de vírus terá “arruinado” as forças armadas do país, e o líder turco foi garantindo nas suas diversas intervenções desde a noite de sexta que iria pagar “o preço mais alto” pela tentativa de golpe.
Não contente, Erdogan afirmou que a Turquia tudo fará para conseguir a extradição de Güllen junto das autoridades norte-americanas. O clérigo tinha já feito questão de condenar “nos termos mais fortes” a tentativa de golpe, numa declaração colocada no site do seu grupo nos EUA, Alliance for Shared Values. Na Turquia, o grupo designa-se Hizmet (serviço), e mantém uma importante rede de escolas, que se alargaram a outros países.
Os seguidores de Gülen enquadram uma vertente moderada e inclusiva do islão sunita, e nunca foram propriamente populares junto dos militares turcos, que permanecem fiéis à herança secular de Kemal Atatürk. De resto, a desconfiança que o exército nutre por este grupo não é diferente daquela que tem pelo AKP, encarando-os como vagas de fundo que buscam erodir os valores fundadores da República turca, ameaçada pelas leis islâmicas.
A desavença entre Gülen e Erdogan terá surgido de um choque entre o sistema judicial, pró-Gülen, e o AKP, que levou Erdogan a cortar o financiamento à rede de escolas do Hizmet,. ameaçando fechá-las. À medida que as tensões se agravavam, o governo passou a ser alvo de investigações por corrupção e vários membros chegaram a ser acusados, o que comprometeu o sucesso eleitoral do partido e assim começou uma guerra aberta entre os dois lados. Isto, por sua vez, exacerbou o desejo e a necessidade de Erdogan de tentar mudar a Constituição e ver defendidos legalmente os poderes executivos que continuou a exercer após ter passado de primeiro-ministro para presidente.
Entretanto, o clérigo, que no passado raramente se pronunciou sobre a contenda ou aceitou dar entrevistas, reagiu às acusações de Erdogan e abrir as portas da sua mansão a alguns jornalistas para negar qualquer papel na tentativa de golpe. Mais que isso Gülen falou na “possibilidade de isto ser um golpe encenado para se fazerem mais acusações [contra apoiantes seus]”.
A favor desta teoria está o facto de no auge da tentativa de derrubar o seu governo, os pilotos rebeldes de dois caças F-16 terem tido o avião onde Erdogan regressava das suas férias perto da estância de Maramaris na sua mira. Podiam tê-lo abatido ou interceptado mas não o fizeram. “Pelo menos dois F-16 se puderam no caminho do avião de Erdogan quando este seguia a sua rota em direcção a Istambul. Capturaram-no nos seus radares bem como a outros dois F-16 que o protegiam”, revelou à Reuters um antigo militar informado sobre os eventos da noite de sexta. “O motivo por que não dispararam é um mistério”, concluiu.
Este domingo e na troca de acusações entre os rivais, foram as relações diplomáticas entre EUA e Turquia a pagar o preço, depois de a acusação de Ancara quanto ao envolvimento de Gülen ter ido longe ao ponto de que Washington também poderia ter de algum modo sido cúmplice da tentativa de golpe. “Insinuações públicas ou afirmações relativas a um qualquer papel dos EUA no golpe falhado são absolutamente falsas e fragilizam as relações bilaterais”, alertou o Departamento de Estado norte-americano através de comunicado.
Da Europa também começam a chegar os avisos de que o governo turco não ganhou, com o golpe falhado, poderes extraordinários para perseguir os seus opositores. Primeiro foi Berlim, com a chanceler alemã, Angela Merkel, a lembrar Ancara que não pode atropelar “as regras do Estado de direito”. E ontem foi a vez de Paris reforçar esta mensagem, através do chefe da sua diplomacia e ex-primeiro-ministro, Jean-Marc Ayrault, sublinhar que os eventos de sexta não conferem “um cheque em branco ao senhor Erdogan”.