“Algumas pessoas teriam vivido se tivessem tido o medicamento a tempo”

Hoje é o Dia Mundial das Hepatites. José Carlos Saldanha, o homem que pediu a Paulo Macedo para não o deixar morrer, terminou o tratamento há um ano. Como ele, 3 mil doentes estão curados, mas ficaram mágoas

No dia 4 de fevereiro de 2015, José Carlos Saldanha, doente com hepatite C, interrompeu os trabalhos no parlamento e pediu a Paulo Macedo que não o deixasse morrer. Na altura, os medicamentos inovadores que prometiam eliminar o vírus em mais de 90% dos casos aguardavam comparticipação há um ano.

Em dois dias, a situação foi desbloqueada com um acordo entre o Estado e uma das farmacêuticas que vendiam a medicação. O governo garantiu que o incidente nada teve a ver com o desfecho, mas José Carlos Saldanha, de 51 anos, não tem dúvidas de que teve um papel decisivo.

Terminou o seu tratamento há um ano, mas guarda algumas mágoas: nem todos tiveram a mesma sorte. ”Houve má vontade política no adiamento do processo e espero que tenham remorsos para o resto da vida. Houve pessoas que, se lhes tivessem dado o tratamento a tempo, tinham vivido”, sublinha ao i. Hoje assinala-se o Dia Mundial das Hepatites.

O empresário, que na altura se apresentou no parlamento como membro de uma associação de doentes recém-criada – a plataforma Hepatite C -, foi dos primeiros a começar o tratamento, a 7 de fevereiro de 2015. Neste período foram iniciados mais de 7800 tratamentos e mais de 3 mil doentes ficaram curados. José Carlos Saldanha diz que se sente melhor, mas lamenta que, como ele, muitas pessoas tenham ficado com lesões irreversíveis por causa da demora no acesso ao medicamento.

Na altura estava diagnosticado há dois anos com cirrose, uma das complicações da infeção com hepatite C. Hoje, apesar de ter debelado o vírus, continua à espera de transplante do fígado. “Ficamos para o resto da vida a ter de tomar medicação, imunossupressores que vão atrofiar-nos o resto dos órgãos. Fiquei sem o vírus, mas fiquei com a fatura, eu e todos.

Devia ter havido um acompanhamento diferente e, em alguns casos, indemnizações.”  Desafios mantêm-se Após a exposição mediática, José Carlos Saldanha conta que continua a receber mensagens de muitos doentes que, nos últimos meses, dão conta de alguma demora no início dos tratamentos em alguns hospitais, devido a constrangimentos financeiros. As prisões são outro problema, denuncia. “Faltam pessoas e carrinhas para levar os detidos a fazer o tratamento.” 

A associação GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos também tem alertado para a discriminação no acesso, que está a ser acompanhada pela tutela. Este ano, o governo criou um programa prioritário para as hepatites virais. Em comunicado a propósito do Dia Mundial das Hepatites, Luís Mendão, do GAT, saudou a decisão e defende que é preciso uma estratégia de prevenção até 2030 para continuar o que consideram ser “um feito sem paralelo na história das doenças transmissíveis em Portugal”.

O GAT defende que é possível eliminar a hepatite C até 2030 tratando 6 mil pessoas por ano, com um orçamento de 20 milhões de euros anuais, defendendo que seja negociado o acordo com a indústria farmacêutica para baixar os preços da medicação.

“A redução do preço dos tratamentos permitirá libertar recursos que precisam de ser alocados à estratégia nacional para a eliminação da infeção, às ações de prevenção, aos serviços de teste e religação aos cuidados de saúde, ao reforço dos serviços de tratamento e à vigilância epidemiológica”, defende o GAT, que recomenda também o seguimento de pessoas com doença hepática mais avançada.  Em comunicado, a associação reconhece o esforço que levou ao compromisso do Ministério da Saúde no ano passado, mas sublinha também o envolvimento dos doentes, que considera terem sido fundamentais. José Carlos Saldanha sente que foi empurrado para isso por um poder superior. “Sinto que fui escolhido para fazer alguma coisa de bom depois de ter sido um estupor na minha vida. Sinto-me grato por ter feito alguma coisa de útil.”