Luís Campos Ferreira: ‘Não há uma guerra civilizacional’

Ex-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros diz que Daesh tem aproximado a Europa dos Estados muçulmanos e recomenda diálogo com Putin para resolver os desafios da diplomacia mundial. Não acredita que Trump será o sucessor de um ‘grande Presidente dos EUA’ e defende reforço securitário para ‘salvar a Europa enquanto é tempo’.

Quando saiu do Governo, em novembro, a prioridade da política externa europeia era a colocação de refugiados. Agora, depois da sucessão de ataques terroristas, de uma tentativa de golpe na Turquia, do Brexit e da perspetiva de ter de lidar com Donald Trump, ainda será?

Neste momento temos duas situações com as quais a Europa está com muita dificuldade em lidar. Uma é o terrorismo a outra é a questão dos refugiados. Na nascença elas estão ligadas, porque os refugiados estão a fugir de alguma coisa – não vêm à procura de uma vida melhor, vêm à procura de uma vida. De viverem, ou sobreviverem, não vêm à procura de melhores condições económicas ou mais qualidade de vida. 

Nem todos olham para o assunto assim…

Naturalmente é necessário preparar a opinião pública para a necessidade de acomodar com dignidade e de incluir num processo digno e com as dificuldades identitárias que estes processos têm. Missão ainda mais difícil quando conjugada com a necessidade de lidar com o terrorismo.

Os refugiados continuam, portanto, no topo da agenda.

Muitas vezes os problemas parece que existem porque abrem telejornais, mas não é por este ciclo noticioso ter tido um ruído superior, nomeadamente o do terrorismo, que as coisas deixam de existir. 

E como se resolve?

Dizemos há muitos anos que vivemos num mundo global e cada vez mais. Há aqui uma globalização que tem trazido medo – daí esse fenómeno de Trump, que traduz o medo que se sente da globalização. Esta globalização é de informação, da livre circulação de pessoas e da livre circulação de bens. Mas não é uma globalização do conhecimento e isto é muito importante na questão dos refugiados. Só conseguiremos resolver este problema de uma forma estrutural quando as pessoas começarem a ter condições para se manterem nos seus países. Condições sociais e económicas. Por exemplo, o Egito. Os números podem não ser assim tão rigorosos mas há 30 ou 40 anos o Egito tinha 15 milhões de habitantes e viviam todos, do ponto de vista económico, nas margens do rio. Hoje são 90 milhões de habitantes e continuam a viver do Nilo. Sem adicionarem conhecimento, tecnologia ou ciência a essa economia tradicional. Ora bem, onde viviam 15 milhões não vivem 90. Acho que não haverá solução enquanto este problema não for resolvido e tem que ser resolvido com cooperação internacional, criando desenvolvimento e conhecimento nesses países. Enquanto nós, Europa, não tivermos uma política de cooperação que não seja a de atirar com dinheiro para cima dos problemas, de forma a globalizar o conhecimento e não só a informação, não vamos conseguir estancar o problema dos refugiados.

A Europa já estava habituada a assimilar migrantes de diversas origens. A questão aqui é o número.
Convém ter uma noção dos números. A população síria, que é o território de onde emana uma grande porção dos refugiados, andará à volta dos 23 milhões de pessoas, antes do início da guerra. Desses 23, metade já não está nas casas onde estava, estão noutros territórios ou no mesmo território sem se saber onde – já se refugiaram mesmo que internamente. Cerca de cinco milhões rumaram a outros destinos, principalmente à Europa. Esse é outro lado da moeda. Um deles é o de estancar o problema de forma estrutural, com cooperação e desenvolvendo a economia e o conhecimento nesses territórios. Outra é para os que vêm, ter uma política de inclusão que seja digna e que seja não de perca de identidade mas de convivência de identidades saudável. Essa é a ultima reserva que a Europa tem, o forçar dessa capacidade. E acho que no essencial tem conseguido fazer isso.

Mesmo França, onde ainda hoje a própria comunidade portuguesa se queixa de não estar assimilada?

Mesmo França, que é o país europeu que mais migrantes acolheu ao longo destas últimas cinco décadas. Sobre os portugueses em França, há uma história diplomática muito gira que não posso situar no tempo para não identificar os intérpretes. Aconteceu quando a comunidade foi alvo de um tratamento menos bom por parte das autoridades francesas, para lá da tradicional arrogância. Alguém diz a um ministro francês: “sabe que os portugueses têm a melhor rede de informações que existe aqui em França. Sabe porquê? Porque são jardineiros, são porteiros, porque têm as empregadas domésticas metidas dentro das casas das elites francesas, e tudo isto depois é trabalhado – montar uma rede de informações destas é muito difícil, vocês vejam lá como tratam os portugueses que compõem a vossa melhor rede de informação”. E claro que não tinham essa organização mas isso assustou os franceses e mudou algo, principalmente aquilo que foi o enquadramento da segunda geração. Há alguma injustiça que a Europa comete com ela própria – a Europa esquece que a Alemanha tem acomodado nos casos dos refugiados e de emigrantes, que tem conseguido dar-lhes que fazer no sentido social e económico que o termo tem. Já vai num milhão. A França tem milhões e milhões e foram eles que ajudaram a França a ser esta potência económica, social, militar e política que é hoje – foi também com os migrantes portugueses, magrebinos, foram eles que construíram esta França. Mas no essencial as coisas forma correndo bem, há margem de progressão, mas a Europa não se deve penalizar assim tanto. Não deve atribuir a si própria tudo o que esteja a correr menos bem. 

Não há razões que justifiquem tanto terror islâmico?

Nós não temos um problema com os muçulmanos, não temos um problema religioso. Temos um problema com radicais, com um pseudo Estado Islâmico, que é suportado por um conjunto de organizações terroristas – e cada vez mais, porque elas se estão a federar numa grande multinacional embora com interesses diferentes. A Europa não tem um problema com Estado árabes ou muçulmanos. Tem um problema neste momento com radicais. Mas esse problema também o têm os Estados muçulmanos, os maiores ataques têm sido produzidos no Afeganistão, no Iraque… não são só em Paris. Aqui é que nos dói mais. Porque uma dor de dentes aqui é pior que um ataque terrorista em Bagdade, mas nós não temos nenhuma guerra civilizacional com essas pessoas. Temos com o Daesh – que as políticas da Europa e dos EUA ajudaram a formatar, mas isso é outro capítulo – mas não há um problema de dois mundos diferentes. Pelo contrário, acho que esta questão do Daesh tem servido para aproximar mais os Estados europeus dos Estados muçulmanos.

Mas não se veem os líderes muçulmanos na Europa a responder a estes ataques com a mesma veemência com que os líderes muçulmanos dos EUA responderam ao ataque de Orlando, por exemplo.

Não podemos ver os EUA com os olhos da Europa. Temos a mania de ver o mundo com os olhos da Europa, desde aquele que não é o primeiro mundo e tentamos julgá-lo com os nossos olhos, como aquilo que é o mundo inovador dos EUA, que estão sempre à frente. Estão à frente na roupa com a Levi’s, no fast-food com o McDonalds, nas tecnologias. Até estão à frente num político como Trump – para o bem e para o mal, os EUA estão sempre à frente. Na Europa há uma cultura diferente, outra tolerância, intermediação jornalística diferente – que cada vez vai valendo um pouco menos por causa das redes sociais mas que continua a ser fundamental naquilo que é a criação de opinião – e por isso não podemos querer ter as mesmas reações.

Ou seja, o líder muçulmano de França fala e não lhe damos o mesmo destaque.

E ele falou. Mas como lhe disse, o problema que temos com o Daesh, também têm os Estados muçulmanos, xiitas e não só. E é natural que eles tenham algum cuidado da forma como expressam opiniões de forma a não radicalizarem mais a sua situação, até porque eles estão no mesmo território, no mesmo espaço – material e imaterial. Mas sinto que há uma solidariedade e uma cooperação com margem de progressão – e que é isso que nos vai fazer ganhar esta guerra, repito guerra como disse François Hollande. Para a ganhar é necessária a cooperação dos Estados islâmicos para combater este fanatismo. Mas esta é uma guerra que vai durar, porque é uma guerra contra o medo, não é uma guerra com o modelo tradicional em que tocavam as sirenes e as pessoas iam para bunkers, ouvia-se o barulho do motor do avião e via-se se a bomba caía. Hoje é diferente, é uma guerra de pensar se vou ao McDonalds porque houve um ataque no McDonalds, e dos franceses pensarem na Normandia se vão à missa ou não.