1.O caso da Apple contra Bruxelas é sintomático da importância de se definir a natureza (a real, não a ficcionada) da União Europeia. A história, dentro da sua complexidade, é simples de se enunciar em termos breves: a Apple estabeleceu a sua sede fiscal em Dublin, capital da República da Irlanda, após celebrar um contrato de investimento com o Governo irlandês, o qual prevê um regime fiscal mais favorável.
Esse regime fiscal mais favorável, como facilmente se conclui, foi um incentivo (senão, o incentivo) para o estabelecimento da Apple em Dublin, investimento na Irlanda e promovendo a constituição e desenvolvimento de uma incubadora de “starts-ups” tecnológicas (apresentada mundialmente como uma referência e um exemplo a seguir). No entanto, a União Europeia considera que tal acordo viola o Direito da União Europeia: designadamente, infringe a proibição de auxílios de estados no espaço do mercado comum europeu.
Por isso, a União Europeia – através da sua burocracia (a Direcção-Geral de Concorrência) – exige que a Irlanda exija os impostos em falta, movendo processo tributário contra a Apple. Pequeno problema: o Estado irlandês não quer cobrar os impostos à empresa multinacional norte-americana! Perguntará o leitor: então a União Europeia não poderá, ela própria, cobrar os impostos em falta à Apple? Não: a União Europeia não dispõe de poderes fiscais – o exercício de poderes tributários é um poder inerente à soberania dos Estados. A União Europeia não é um Estado – é uma organização dita supra-nacional. O que é isso? Pois bem, todos sabemos o que não é – mas poucos (ninguém?) sabem o que é.
2.Interessa-nos, nesta sede, apreciar a dimensão política do caso que opõe a Apple (e a Irlanda) contra Bruxelas, subalternizando, para o efeito, a sua dimensão jurídica (sobre a qual, aliás, já vários advogados se pronunciaram- ora em termos mais acertados, ora em termos menos acertados, na nossa óptica). Politicamente, quatro notas se impõem. A saber:
1) A União Europeia – e o seu Direito – é uma realidade política: o seu direito é uma emanação do jogo político europeu e serve os interesses conjunturais dos “vencedores” políticos de cada momento. É verdade que o Direito da União Europeia tem contribuído indelevelmente para o avanço dos “direitos de sociedade” (que não se confundem com os “direitos sociais”), ou seja, para o reforço da protecção da pessoa humana, com especial incidência quanto àqueles que são os mais vulneráveis da sociedade. Por exemplo, pense-se no Direito da igualdade e da luta contra a discriminação, seja ela qual for. Aí, a União Europeia afirma-se como uma realidade singular, promotora de avanços civilizacionais notáveis. Diferentemente, na área (que é a maioria) do Direito da União Europeia financeiro e económico, a criação e a interpretação das regras jurídicas está dependente da vontade política – e da correlação de forças políticas – do momento. Quando afirmamos “correlação e forças políticas” não nos referimos às forças partidárias representadas no Parlamento Europeu – referimo-nos, somente, à relação de forças entre os vários Estados. Quem manda? Os mais fortes, claro. Em matérias económicas e financeiras que tenham a dimensão (ou dimensão similar) do caso da Apple, a burocracia europeia não toma decisões sem antes saber (oficial ou oficiosamente) qual a posição do “clube dos poderosos”, que é dizer, da Alemanha e (ainda) da França, que hoje se limita a seguir a Alemanha;
2) O regime dos auxílios de Estados no espaço da União Europeia carece de uma discussão séria. De facto, o tratamento fiscal mais favorável concedido por um Governo a uma empresa específica tem sido considerado como uma ajuda de Estado. Mas a própria legislação europeia consagra um conjunto de excepções, em que se admite a legalidade do auxílio prestado por um Estado-Membro a uma empresa. Uns de reconhecimento automático, outros sem reconhecimento automático, os quais dependem de aprovação prévia pela entidade competente da União Europeia (que são a maioria). Ou seja, mesmo quanto às excepções, a sua conformidade com o Direito da União Europeia depende de uma decisão política da União Europeia, que se substitui ao juízo (e ao interesse) do Estado-Membro. Decisão, essa, que é discricionária: portanto, dependerá do “consentimento político” dos poderosos. Poderá haver outras análises – esta é análise política realista. Conclusão: a legislação da União Europeia reduz ao mínimo a liberdade dos Estados-Membros definirem a sua política económica, sobretudo numa sua vertente vital, como é hoje a política de incentivos ao investimento estrangeiro directo;
3) Este regime restritivo de ajudas de Estado favorece quem? Fácil: favorece quem tem, no seu mercado interno, empresas com vitalidade, músculo financeiro e escala para investir em outros Estados-Membros. Enfim, quem tem empresas mais competitivas. Quem são? Pois bem, Alemanha, França, um pouco Espanha e Itália. E Alemanha, Alemanha, Alemanha. Atenção que nós apreciamos muito a Alemanha. Não obstante, não podemos subscrever uma União Europeia à medida dos interesses de um Estado-Membro;
4) E se a empresa em causa não fosse a Apple – mas uma empresa alemã? A decisão seria a mesma? A União Europeia – e a sua burocrata da Direcção- Gerald a Concorrência – apareciam com tanto vigor e tanto moralismo a exigir que a Irlanda movesse processo fiscal contra essa empresa? Temos muitíssimas dúvidas. Acaso fosse uma empresa alemã, este caso, com esta dimensão e importância estratégica, já estaria mais do que “arquivado”.
3. Por último, não podemos deixar de partilhar com o leitor esta incrível coincidência. Na semana passada, tivemos, na segunda-feira, o vice-chanceler da Alemanha (Sigmar Gabriel) a declarar o óbito do TTIP (acordo comercial entre a União Europeia e os EUA).
Volvidos dois dias, François Hollande veio anunciar que o TTIP, na sua versão actual, é inaceitável – ou se negoceia um novo acordo ou ele morrerá já aqui. Logo a seguir, a União Europeia anuncia a sua decisão no caso Apple – empresa que é um símbolo da globalização e do capitalismo norte-americano. E que mais consumidores tem a nível internacional. Nada disto é coincidência: a União Europeia quis deliberadamente abrir uma disputa comercial com os EUA.
3.1. Atenção: não podemos transigir com a fuga ao pagamento de impostos – esta atitude deve ser punida exemplarmente. No entanto, a Apple não fugiu aos impostos, tão pouco incumpriu obrigações fiscais. A Apple pagou o que devia, à luz do contrato de investimento celebrado com o Estado da República da Irlanda. São coisas – bem! – diferentes!
3.2. Dir-se-á que é um contrato leonino, porque a Apple ganhou (meteu “ao bolso” o dinheiro que deveria ter pago de impostos, se não fosse o acordo com o Governo de Dublin) – e os irlandeses perderam, porque é receita fiscal que não entrou nos cofres. Mentira: os irlandeses ganharam. Ganharam no prestígio internacional e na atracção que o país exerce entre os jovens, entre os promotores da inovação, precisamente pela presença da Apple no seu território. Ganhou, porque a Apple investiu e dinamizou a economia irlandesa. Ganhou, porque a Apple criou postos de trabalho. Ganhou, porque a Apple, enfim, contribui para o PIB irlandês, para criação de riqueza do país.
4. Retenhamos: a Apple não é criminosa, não fugiu aos impostos, não enganou a República da Irlanda, nem a Europa – a Apple respeitou, cumpriu, honrou os compromissos que assumira contratualmente com o Governo da República da Irlanda. E deve este Estado ter liberdade para definir a sua política económica, exponenciando as suas valências, que são diferentes da Alemanha – e mais próximas das de Portugal? Deve, claro está.
A Apple não roubou – a Apple criou. A Apple não tirou – a Apple deu. Deu postos de trabalho, riqueza, inovação. Reflexão para o fim de semana que partilhamos com o leitor: por que razão escolheu a União Europeia este “timing” para iniciar um braço de ferro comercial e económico com os EUA? A resposta parece fácil…