Durante décadas a cultura parecia um fenómeno estrangeiro, que ia chegando solertemente como um rumor, trazida por aqueles que, fosse porprivilégio ou especial afinação, tinham a antena sintonizada sobre frequências que passavam ao lado do país. Fernando Guedes fez parte de uma restrita elite que quis retirar o país de um certo obscurantismo e atraso civilizacional, criando as bases para uma universalização da cultura. O seu contributo foi de tal modo decisivo que, como sublinhou Guilherme d’Oliveira Martins, «não podemos falar da cultura portuguesa do século XX sem falar dele».
Valorizando o conhecimento que não busca meramente especializar-se mas que mantém diante de si largos horizontes, foi um estudioso que dividiu a sua atenção por várias áreas do saber, merecendo o epíteto de «príncipe renascentista». Poeta, ensaísta e crítico de arte, fica para a história como «figura tutelar da edição portuguesa», com um percurso que é indissociável da Verbo, editora que fundou, em 1958, e dirigiu durante 50 anos.
Nascido no Porto, em 1929, Fernando Guedes morreu no passado domingo em Lisboa, aos 87 anos. Desligado do mundo da edição desde que a Verbo foi vendida, em 2009, ao grupo da Babel, assistiu com preocupação ao fenómeno da concentração editorial, e numa das entrevistas a Sara Figueiredo Costa – para aquele que viria a ser o primeiro livro da colecção Protagonistas da Edição, «Fernando Guedes: O decano dos editores portugueses», publicado em 2012 – disse que não se tratou de uma explosão no sector do livro, mas «uma implosão que liquidou toda a vida particular e privada de cada editora».
A Editorial Verbo foi possível graças ao apoio de um sócio capitalista, Sebastião Alves, mas foi sob a batuta de Fernando Guedes que foram erigidas um conjunto de coleccções com um impacto transversal na sociedade portuguesa e que fizeram o livro entrar na maioria das casas.
Nos anos 60, foram publicadas a Enciclopédia Verbo Juvenil e a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, e na década seguinte foram lançados os cem títulos da célebre série Livros RTP, uma iniciativa que teve um estrondoso sucesso, com milhões de exemplares vendidos, e que «de certo modo assinalou o início da era marcelista», como notou Jorge Colaço, que trabalhou com Fernando Guedes ao longo de quase duas décadas.
No campo da literatura infanto-juvenil, o editor fez duas apostas que expandiram enormemente o imaginário de quase todos os leitores portugueses, trazendo para Portugal os livros da Anita e os álbuns de Tintin. Depois há os livros de culinária de Maria de Lourdes Modesto, a cozinheira e figura televisiva que assinou um conjunto de obras pioneiras e que tiveram um impressionante êxito comercial, que deu a conhecer aos portugueses os tesouros da sua gastronomia.
Católico e claramente conservador, Fernando Guedes foi antes de tudo um homem empenhado na promoção dos valores culturais, e nesse sentido distinguiu-se como arquitecto de um grande projecto de pedagogia, e sempre com critério estabeleceu um caminho ascensional para que os leitores portugueses pudessem desenvolver as suas faculdades intelectuais. Esteve envolvido em revistas literárias como a Távola Redonda, ao lado de Ruy Cinatti, António Manuel Couto Viana, Alberto Lacerda e David Mourão Ferreira, e Graal, e, em 1959, fundou e dirigiu a revista Tempo Presente, uma das poucas revistas culturais não de esquerda que existiu em Portugal. Apresentando-se como «contracorrente», segundo ele, a revista «serviu fundamentalmente (…) para mostrar que à direita não havia só burros e até se podia fazer oposição ao regime».
Apesar da firmeza das suas posições ideológicas – de que, ao contrário de tantos outros, não abdicou na sequência do 25 de Abril –, teve sempre o respeito dos seus pares. Se até 1974 presidiu a várias direcções do Grémio Nacional de Editores e Livreiros, depois foi também presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), do Grupo de Editores de Livros da então Comunidade Económica Europeia, da Federação de Editores Europeus e, a partir de 1992, da União Internacional de Editores, da qual mantinha a presidência honorária.
É reconhecida a importância dos vários livros que dedicou à história da leitura e da edição e comercialização do livro em Portugal, e se, como poeta, recebeu os prémios Antero de Quental (1963) e Nacional de Poesia (1968), a verdade é que a sua própria obra literária e actividade enquanto crítico de arte ficaram na sombra do seu contributo enquanto editor.
Em 1998, foi agraciado pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, com a ordem do Infante D. Henrique. Hoje, e num momento em que a direita está em clara ascensão, reassumindo a primazia no espaço mediático, é importante lembrar o exemplo de Fernando Guedes, que apesar de manter um claro posicionamento ideológico soube divulgar a cultura respeitando a sua diversidade.
Fernando Guedes. No princípio era o Editor
O editor, poeta, crítico de arte e ensaísta Fernando Guedes, um dos fundadores da Editorial Verbo, morreu no domingo aos 87 anos, em Lisboa.