Tem uma memória de elefante. Lembra-se de que o caminho que percorreu imediatamente antes de chegar ao El Bulli tinha 45 curvas, mas dos mais de 400 pratos que aqui provou só lhe ficou na memória o foie gras com consommé de tamarindo – as espumas da nova cozinha não lhe ocupam um lugar no coração. Já um bom pastel de bacalhau era capaz de lhe substituir um ventrículo. Tem um telefone do “tempo do Ben-Hur”, é doido pela cozinha tradicional portuguesa e guia todos os dias, entre as dunas da praia do Ancão, um Land Rover amarelo de 1982 ao qual se refere como “um empregado da casa”. No restaurante de praia que já estendeu o nome ao areal à sua frente, recebe zilionários, desconhecidos, famosos com e sem aspas. Se o nome Bernardo Reino não faz soar nenhuma campainha, talvez Gigi o faça. Dono de um dos restaurantes mais icónicos do país, vive há mais de 30 anos na que considera a melhor terra do mundo – o Algarve.
Como define o mês de 15 de julho a 15 de agosto, aqui no seu restaurante que é um dos ícones na Quinta do Lago?
Este ano foi a pior experiência porque rigorosamente senti que toda gente vinha cá reclamar pela “minha mesa”, como se estivessem em sua casa. Nessa altura há uma invasão do Algarve e as pessoas querem que um restaurante com 98 lugares tenha 200 pessoas em três horas, o que é impossível. Hoje em dia as pessoas não têm uma vida própria. Então vêm todos ao mesmo tempo. E vêm sobretudo como olheiros porque as revistas fizeram uma propaganda tão grande dos chamados famosos entre aspas que não vêm almoçar. Depois também há uma coisa que me chateia para caramba. É as pessoas sentarem-se e agarrarem-se ao Facebook e ao telefone e não falarem uns com os outros. Há falta de diálogo e um almoço de praia ou um almoço de cidade é a mesma uma coisa… Estou aqui há 30 anos e este foi o ano mais chocante em termos de ver famílias inteiras a rodar o dedo dentro do ecrã.
Vamos fazer uma resenha rápida da sua vida.
Sou beirão, não tenho um único parente no Algarve. Os meus pais eram da Guarda, de uma zona raiana em que uma parte da população ia para o Porto a outra para Lisboa. Há uma aldeia em que praticamente toda a gente é da minha família. Sou a primeira geração a vir para o sul o que espantou muita gente.
De que se lembra dos tempos de criança?
A grande imagem que tenho, ainda no outro dia me lembrei, foi a chegada da rainha de Inglaterra ao Terreiro do Paço. Fui lá nesse dia e a minha mãe tirou-me uma fotografia à la minute.
Onde nasceu?
Nasci em casa, no Lumiar, que hoje em dia é um dormitório de Lisboa. Na altura era uma terra onde eu andava na rua. Tinha uns tios que tinham um restaurante, o Papagaio da Carriche, na calçada. Digamos que vem daí a minha ligação aos restaurantes que também acabou por se pegar ao meu irmão Miguel.
Que pratos serviam nesse restaurante?
Havia um prato que seguia uma das grandes influências daquela zona, a feira da Malveira, que era mão de vaca com grão. A Malveira da Serra é uma terra fascinante, lembro-me do Chico Carreira que tinha na altura o melhor bife de Lisboa servido no Parque Mayer e que comprava bois lá. Agora há a mania das vacas massajadas a ouvir música.
Como era essa Lisboa de criança?
Morava numa casa no Lumiar, toda a minha família estava ali, mas acabei por fazer o o exame da quarta classe na Beira porque vivi lá uns tempos. Naquela altura os portugueses tinham a mania do campo. Ir para a praia era uma coisa de muito pouca gente, nem os pescadores gostavam de ir para a praia porque era sinónimo de trabalho.
Lembra-se da primeira vez que foi à praia?
Fui à praia da Figueira da Foz com os meus padrinhos. A lembrança que tenho é a de uma praia muito nebulosa. Tinha sete ou oito anos, depois volto para Lisboa. Mas é uma memória muito ténue.
Quando volta para Lisboa como é o seu caminho?
Até aos 13 anos estudei no Liceu Camões, onde fiz exames de equiparação, lembro-me também de começar a ter aulas de natação no Algés e Dafundo. E lembro-me perfeitamente de essas aulas implicarem ir à praia. Dava grandes mergulhos na Cruz Quebrada que era completamente limpa, nos anos 63 ou 64.
Depois continua a estudar?
Vou trabalhar quando a minha mãe morre com um cancro, ou melhor parte. Não gosto de dizer a palavra morrer. Somos quatro irmãos, eu era o mais velho. O mais novo, o Miguel, tinha oito meses quando ela partiu. Com 15 anos chumbo um ano e vou trabalhar de castigo para a Tranquilidade. Antes disso tive dois anos de gabiru, motoqueiro e jogador de bilhar na Av. de Roma.
O seu primeiro trabalho foi, portanto, em seguros?
Sim, comecei aí o meu percurso profissional. Quando entrei era paquete. Depois fiquei como praticante de aspirante – aquelas carreiras que faziam os bancários e os seguradores. Até ir para o serviço militar em 69.
Foi para a guerra?
Não. Estava nos Comandos e caí da corda ventral, acabei no hospital Militar. A minha companhia foi toda para Angola. Mas não fiz de propósito.
Acabou aí a sua carreira militar.
Não, depois ainda fiz a tropa em Santarém, na escola Prática de Cavalaria. Depois Lamego e fui para Tavira.
Quando foi para Tavira descobriu o Algarve?
Não, durante a fase de teddy-boy já vinha. Depois os meus sogros faziam uns acampamentos ecológicos onde hoje em dia é o hotel Alvor Praia que era um descampado. O Algarve eram amêijoas comidas à beira mar. Havia um pescador que trazia lagostas… Nunca sonhava sequer que havia um Algarve do lado de cá, que só conheci em setembro de 71, quando fui para Tavira.
Ainda tem amigos dessa altura?
Os amigos da tropa ficam para a vida inteira. São uns tempos muito bem passados, por incrível que pareça. Depois acontece o 25 de Abril, na parte final fui guardar a velha antena da televisão em Monsanto. Foi aí que vi pela primeira vez televisão a cores, nunca mais me esqueço. Para nós era ótimo estar lá que a comida da televisão era melhor que a do quartel, isso é giro. Havia uma cadeirinha que se dava depois à manivela e nos levava até ao topo da antena, eu adorava e ia para ver Lisboa.
No tempo da tropa já gostava muito de comer?
Na tropa enfarda-se sempre muito, eu até era magríssimo. A seguir saio do serviço militar e tinha o meu lugar na Tranquilidade e era para ir para Cascais, mas na altura estava o PREC em curso e há um plenário da companhia de seguros que era uma coisa muito desorganizada, havia sempre os que interrompiam, os que eram uma espécie de destacados para a oratória. E eu gritei “Chamem o Pinochet para por ordem nisto”. Essa piada custou-me, em vez de ir para Cascais mandaram-me para Santiago do Cacém.
Já era casado nessa altura?
Sim, e já tinha o meu filho mais velho, o Bernas. Depois lá consegui trocar e ir para Sintra, que também não tinha nada na altura. E apaixonei-me por Sintra que era ainda um sítio isolado, era como se estive a 200 km de Lisboa.
Nessa altura era um boémio?
Nessa altura um ano era muito tempo. Mas em 75, 76 e 77 vivi praticamente em Sintra, ia a Lisboa como quem vai ao estrangeiro. Havia o Stones ainda, entretanto o Manecas Mocelek vai para Paris e depois para o Brasil. Começo também a ir nessa altura ao Brasil, equacionando emigrar para lá para trabalhar com os meus patrões, os Espírito Santo. O meu irmão João entretanto já estava lá e começo a pensar nisso a sério.
Porque pensou emigrar?
Tinha 26 ou 27 anos e estava a sentir que queria mudar. Até que chegam os anos 80 e eu mudo de companhia. Cruza-se na nossa vida uma figura, o Eike Batista que se torna sócio do meu irmão num projeto no meio da Amazónia que se chamava Alta Floresta, que foi fundada por um italiano com o meu irmão João e o Eike. Agora aquilo é uma cidade com 500 mil habitantes ao pé de Cuiabá. Na altura eles começaram uma exploração de ouro. Desde o tempo das Minas Gerais que o Brasil não tinha encarado isso. Tinha a serra Pelada lá perto e o Eike resolveu tornar a pesquisa numa coisa profissional. Eu queria sair daqui porque vivia num marasmo. Quando lá ia levava sacos cheios de dinheiro para o meio da floresta em troca de um saco pequenino cheio de ouro. O ouro realmente deslumbra. Uma vez fui buscar quatro quilos de ouro a São Paulo, isto nos anos 80. São quatro isqueiros Dupont.
Ou seja, transportava o ouro dos garimpeiros para a cidade?
Uma das vezes, sim. Depois fui ao Paraguai também. O Eike foi o homem mais rico do mundo e rebentou. No meio dessas histórias eu estava a fazer uma casa em Sintra na altura. Ele fez um negócio com três fragatas da Marinha que tinham sido feitas para a guerra da Guiné, que tinha um mar pouco profundo, e quando acabou a guerra as fragatas ficaram à venda. O Eike e o meu irmão arranjaram a venda das fragatas para Abu Dhabi ou uma coisa assim. O trade que fez o contacto para a venda das fragatas era meu amigo, o negócio também envolvia o Estado e o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa. O meu amigo ligou-me e disse “Gigi já podes comprar os tijolos para a casa que o negócio está feito”. Não comprei, sempre tive o princípio de não contar com os ovos… Os papéis iam ser assinados dia 5 de dezembro. Dia 4 morre o ministro da Defesa e o Sá Carneiro.
Chegou a ter algum negócio no Brasil?
Sim, a pousada de Búzios. Nessa altura já tinha tido uma subida de carreira nos seguros, já tinha uma empresa minha com o António Ferreira de Almeida e já tinha começado o Bananas. Começo a cimentar a amizade com o Manecas, que era o homem forte do Bananas, e com o André Jordan. Vivia em Sintra mas já tinha horários e férias liberadas e já estava com um pé em Portugal e outro no Brasil. Mas tinha três filhos e não quis largar o certo pelo incerto. A Leonor, minha mulher, era fisioterapeuta.
A pousada de Búzios aparece quando?
A pousada era uma das mais lindas da terra, era de uma francesa que se tinha casado com um uruguaio que era um calaceiro e ela quis vender a aquilo. Os bacanos deitavam-se às 7 da manhã, os hóspedes quando acordavam iam à cozinha servir os pequenos-almoços porque os donos estavam a dormir até às 9 da noite, turbinados a coca, festas e caipirinhas. Búzios naquela altura era muito parecido a Saint Tropez, e a francesa era de tal maneira que tinha uma suíte que não alugava que era só dela. Vejam bem o que era o chauvinismo: tudo no Brasil funcionava a 110, ela exigiu ter corrente a 220 no quarto. O meu irmão lá comprou a pousada à francesa, ela foi-se embora e eu fui para gerente. Estive muito mal visto em Búzios nessa fase.
Porquê?
O Brasil não tem nada a ver com ordem e disciplina de trabalho. E isso era preciso para a pousada reativar. Depois foi um sucesso. O meu irmão também abriu um restaurante por baixo da pousada, o Adamastor, em 1985.
Continuava nos seguros?
Tinha 34 anos e estava muito dividido entre a parte hoteleira, puxado pelo Joaquim Machaz e o Manecas Mocelek, e os seguros. Entretanto acontece um episódio que resolve a coisa. Em 85 a companhia em que trabalhava faz uma fusão e começa um saneamento da empresa e queriam promover-me. Lembro-me perfeitamente como estava vestido: tinha chegado à companhia na Rodrigo na Fonseca de fato e gravata, camisa às riscas. Percebi logo que aquela era uma promoção para por um data de gajos na rua. Disse-lhes que bufo nem no tempo da Pide. Mandaram-me logo para a contabilidade para fazer as contas. Eu disse que nem precisava das contas, que me mandassem para casa o cheque. Ao meio dia vou para casa, ponho-me em calções e venho para o Algarve.
Por que razão veio para o Algarve?
Vim de férias. Aí já tinha a loja dos vinhos no Bairro Alto. Nesse ano estava o Passos na moda, toda a minha geração ia lá. E foi aí que me trouxeram a provar uma coisa que os chilenos faziam na na Quinta do Lago, isto no tempo do André Jordan. O que me levaram a provar? Ceviche (risos). Ninguém gostava do peixe cru. Eles faziam todos os dias ceviche de corvina e não vendiam nada, não estava na moda. Um dia, o Manecas veio comigo, cheguei lá [o local onde funciona hoje o restaurante Gigi] e aquilo era um paraíso, não havia nada, estavam lá os Naraianos, os tais chilenos, a cantar para dois passantes e eu e o Manecas a comer ceviche que era uma maravilha. Lembro-me perfeitamente que tinha umas rodelas de milho, os chiles, uma delícia. No ano a seguir, em 86, aquele pavilhão que tinha sido feito em 84 pelo André Jordan para os chilenos, ficou para mim e começo o Gigi.
Tirou o ceviche da carta?
Tirei. No primeiro ano os clientes foram os residentes da Quinta do Lago, que de uma certa maneira não tinham nada a ver com a sociedade portuguesa do barulho e dos conhecidos. Era uma coisa do aldeamento. Nessa altura a família Agnelli, donos da Fiat, já vinham jogar golfe para cá. Vinha também o Lesseps, herdeiro dos construtores do canal do Suez. Só servia peixe, nunca servi sandes e pastéis. Tirei da carta uma coisa de que gostava muito que era salada de atum com feijão-frade, que serviu para selecionar os penduras. Quando vinham sozinhos comiam isso, quando eram convidados pelos ricos era só carabineiros com arroz. Conheci muitas figuras dessas, não digo o nome. Fui atacado pela sociedade portuguesa por ser muito caro, isso bateu-me um bocadinho.
Nessa altura abria quando?
No primeiro ano de maio a setembro. No segundo de maio a outubro. Depois fui estendendo a abertura até aos nove meses, que é uma coisa simbólica. É um filho.
Quando foi mudando a clientela, quando se torna um ícone?
Começa pelos estrangeiros, começo a ser conhecido de lá para cá. Os famosos verdadeiros viviam no Algarve nessa altura. O jet 7 internacional todo.
Como o Ayrton Senna?
A chegada do Ayrton foi engraçada. A casa dele é comprada na mesa 8 do Gigi, veio um banqueiro brasileiro, o Braguinha, com o pai e com a mãe do Ayrton que era quem mandava nos negócios dele.
Recorda-se do que dia em que o Ayrton morreu?
Sim. Estava a Adriana Galisteu cá a dormir na casa dele da Quinta do Lago, eu fui lá a casa. No dia da morte dele quando lá fui, a Adriane estava deitada triste para caramba porque já sabia. Ele morreu na hora, a barra da direção tirou-lhe metade da massa encefálica. As pessoas ainda diziam que era mentira porque a corrida tinha continuado e tudo. O fax dele tinha aqueles rolinhos, o gabinete estava cheio de rolinhos espalhados pelo gabinete. É a imagem que tenho do 1º. de maio daquele ano.
Lembra-se de algum episódio marcante dele?
Ele tinha episódios muito engraçados. Um dia deu-me um bronca no meu jipe amarelo, quando fazíamos a viagem na areia entre o restaurante e a Quinta. Eu ia a falar com ele e estava sem as mãos no volante. Ele disse-me que nunca se ‘dirige’ sem as mãos às dez para às duas, nem a 20 quilómetros por hora.
O que ele gostava de comer no Gigi?
Peixe e camarões. E era vidrado num bolo de chocolate que eu tinha lá só por causa dele. Adorava chocolate, mas era muito frugal.
Quem foi o cliente mais interessante que o seu negócio lhe trouxe?
Talvez tenha sido o antigo presidente do Bundesbank, o Karl Otto Pöhl. Era uma pessoa fora de série.
E os Agnellis, ficou com relação?
Eles vinham para cá com os filhos crianças. Hoje em dia o Andrea é presidente da Juventus. Um dia o doutor Agnelli mandou o empregado dizer-me que queria abrir uma conta no Gigi, e trouxe um baralho de 500 contos para a abrir a conta. Eu disse que não éramos um banco (risos). Uma vez ofereci-lhe no final da tarde umas bebidas, o segurança depois veio entregar um recado. “O Dr. Agnelli mandou dizer que gosta muito de vir aqui e que gosta muito que você cobre as contas”. Aprendi que a um rico não se oferece aquilo que já tem.
Continuam a vir cá?
Deixaram de vir, até porque ele morreu. Também morreu o filho do primeiro casamento, o Giovani isso até criou um problema na Fiat. Depois, o Rubinho Barrichello que corria na Ferrari e é outro residente da Quinta do Lago, veio dizer-me para reservar uma mesa grande, já que vinha o patrão dele da Ferrari, o Andrea Agnelli, e o Jean Todt, diretor de competição da Ferrari. O Andrea que já não ia ao Gigi desde os 10 anos, quando ia com os pais, chega com o Rubinho, entra ali, dá beijos à Célia (uma das empregadas mais antigas), ao Guilherme, à Teresa e pergunta-me pelos camarões. O homem chegou cá como se tivesse chegado a casa. E chegou.
Serviu muitos craques da bola, por exemplo da escola do Manchester United?
Sim, o Beckham, todos os da escola do Manchester. Era George Best que os trazia.
Qual foi a maior surpresa que teve de um cliente, ou seja, de ter uma imagem preconcebida de uma pessoa e depois ser completamente surpreendido?
Muitos. Outra história gira: o Mark Knopfler dos Dire Straits entrou no restaurante e eu pus a tocar o Brothers in Arms. Ele pediu para tirar e por o Pavarotti, disse que estava farto de tocar aquela música.
Às tantas torna-se um ícone do chamado jet 7 português, passa-se do Passos para o Gigi.
Há uma pessoa importantíssima que é o André Gonçalves Pereira que na altura era uma figura e vinha muito ao restaurante… A casa dele era uma cena! Um dia num aniversário dele senta-me a mim e à Leonor ao pé de uma personagem que era a Farah Diba, a viúva do Xá da Pérsia. Quando depois começa a vir a sociedade portuguesa começa a notar-se o feitio de Gonçalves Pereira para com essas pessoas, é conhecido por ter falta de paciência. Mas quanto a alguns clientes, digo que não tenho muito género para o tipo de português que gosta de se afirmar com a pergunta “O que é que você recomenda”. Digo logo que recomendo outro restaurante. Hoje em dia, a Célia que trabalha comigo há 28 anos, é que recomenda o melhor aos clientes. Mas às vezes ela explica tudo, eu passo e perguntam-me a mim. É uma afirmação quase como nos livros do Eça. O português tem uma maneira de se afirmar muito incrível, acha que a sua condição vip permite chegar, não reservar e ter mesa. Só fazem isso aqui em Portugal. Depois chegam e dizem “mas está cheio?”. Queriam que tivesse vazio? Outra coisa, fazem a reserva para as 13h e chegam às 14h. Outra frase feita: “Hoje estou numa onda de arroz”. E eu que julgava que as ondas eram do surf…
Mas tem fama de ter mau feito. Houve alguma situação mais delicada?
Não tenho nada mau feitio, mau feitio tem o professor Gonçalves Pereira (risos). Tenho muitas saudades dele. Uma vez deu-me um polo da casa redonda de tamanho L, eu vestindo XXL. Depois disse-me para emagrecer. Se há duas pessoas que marcaram a Quinta do Lago foi o André Jordan e o Gonçalves Pereira. O professor porque tinha a sua casa redonda sempre cheia de convidados bestiais. como o Luís Pinto Coelho que para os portugueses era jet 7 internacional, a Farah Diba, o Zé Blanco da Gulbenkian, a senhora que era dona da Revlon. Ele fazia o verão de quinta do Lago.
Voltando ao mau feitio…
Depois também há os que chegam e dizem que não têm fome para almoçar, sentam-se e lá vão picando da mesa em que estão. “Ah esta ameijoazinha está a saber-me bem, este camarãozinho…” Há muitos anos que se pratica o nacional pendurismo, uma coisa inventada aqui. Nunca almoçavam porque tinham sempre jantares muito importantes, depois eram os que comiam mais (risos).
Desde que chegou à Quinta do Lago, que era um aldeamento turístico…
Turístico nunca foi. Chamar aldeamento à Quinta do Lago é muito importante porque hoje em dia os aldeamentos viraram resorts e as esplanadas são lounges, os hotéis são spas, os chefes são barbudos e de jaqueta preta.
Começou a assistir nestes anos ao fenómeno dos chefs. No seu restaurante nunca houve nada disso. Quem idealizou os pratos que saem no Gigi?
A cozinha portuguesa. Só gosto da cozinha portuguesa. Agora também sirvo ceviche porque foi uma coisa que recuperei.
Mas quem é que escolheu esses pratos?
O Algarve! As pessoas dizem coisas fantásticas quando vão ao Gigi, dizem que já correram o mundo inteiro mas que as batatas e os tomates do Algarve são as melhores coisas do mundo. Dizem que puré é estragar o sabor. Uma vez o Sassá do Mónaco, que tem lá um restaurante famosíssimo, começou aos gritos com um tomate vindo aqui de uma agricultora a dizer “delicious”. Fui 12 vezes ao El Buli e comi lá 36 pratos de cada vez, são mais de 400 pratos mas a cozinha não fumega. A maior recordação do El Buli que tenho é um consommé de foie gras com caldo tamarindo, o resto é um espetáculo mas não impressiona nada.
Se não impressiona, porque foi 12 vezes lá?
Fui convidado pelo Braguinha. Hoje em dia aprendi uma coisa: só vou a algum sítio se for acompanhado pelos naturais da terra. O meu filho Duarte vivia em Primrose Hill, na esquina havia um pub onde eu ia comer o sunday roast. Era só ingleses naquele pub, encontrei atores desde o Jude Law e muitos da velha guarda inglesa. Noutro dia estive a ler as recomendações dos restaurantes de Londres e é tudo para totós, tudo sítios onde não se encontra um único inglês. No El Buli já vi gente de todo o lado mas nunca vi um espanhol importante, são restaurantes para turistas. As sobremesas é que me impressionavam, aquilo mandava fumo.
Entre isso e o quindim de amêndoa o que é que prefere?
O quindim de amêndoa.
Ainda não disse o que pensa dos chefs…
Desde que tiraram o e do chef fiquei um bocadinho irritado. Sou um bairrista. Há um deslumbramento do Michelin. Os meus restaurantes preferidos sempre foram os tradicionais, sou um bocadinho avesso a modas seja aqui seja no bairro de Alcântara. Aqui há tempos fui a restaurante em Lisboa que não vou dizer o nome que tinha uma fila à porta, porque hoje em dia os portugueses adoram andar em bando, não se sentem bem se não estiverem em filas. A moda virou uma palavra horrível.
Neste momento qual é a economia mais forte no Gigi?
São os alemães, ingleses e irlandeses os meus melhores clientes. Acho que em relação aos angolanos há uma espécie de racismo como havia em relação aos carecas no meu tempo.
Como é que é o seu dia a dia, continua a ir comprar o peixe à praça?
Sempre, sempre. Sou um bocadinho chauvinista, considero que Portugal é a melhor terra do mundo.
Continua a dar um mergulho na praia diariamente?
Eu tomo banhos rigorosamente do dia 1 de março ao dia 30 de novembro, não há melhor paraíso. Continuo a praticar um Algarve fora de época. Continuo a criticar um bocadinho aquele Algarve que eu chamo de férias dos futebolistas, que são os últimos 15 dias de julho e os primeiros 15 dias de agosto. As pessoas que vêm de férias durante essa época não fazem vida de Algarve, fazem o que fariam em qualquer outra parte do mundo.
Não entende muito bem a loucura da procura nos tais 30 dias?
As praias do Algarve passam de cem pessoas para duas mil. Também acho estranho as pessoas irem para sítios desertos e românticos de avião, gastam uma batelada de dinheiro e não aproveitam o romantismo de uma praia do Algarve no outono. Também não percebo como é que as pessoas se metem umas em cima das outras na praia e cem metros ao lado não há ninguém. É o síndrome do chinês, uma vez tive aqui uns clientes chineses zilionários que me diziam que não gostavam da Quinta do Lago porque tinha pouca gente. Depois quando chegaram a Vilamoura e viram o casino acharam que aqui é que estavam bem. Os chineses gostam verdadeiramente de andar em sítios cheios. Eu acho que é contranatura as pessoas sujeitarem-se a isso.
Isso aborrece-o?
Aborrece um pouquinho. Apetecia-me viver no Algarve o ano inteiro e depois em julho e agosto ir embora, mas não o posso fazer.
Porque continua a ser uma fonte de rendimento?
Sim, é uma fonte de rendimento considerável que faz parte da vida.
Assumir em entrevistas que não gosta do Algarve nessa altura não é contraproducente para o seu negócio?
Não. Há três espécies de clientes, assim como há três espécies de pessoas que compram o jornal. Há uns que compram o jornal para dizer mal, outros para ler e outros para estar informados. Esta mensagem que estou a passar não é para a generalidade dos clientes. Em duzentos couverts diários do mês de agosto, graças a Deus há 160 que continuam a apreciar comer. Também tenho alegrias no mês de julho e de agosto, apanhei aqui uns japoneses que só comem cabeças de peixe. E dizem-me que atravessam o mundo inteiro para comer cabeças de peixe, porque no Japão os peixes têm dez postas mas só têm uma cabeça (risos).
Para si as melhores redes sociais são mesmo as feitas com amigos à volta de uma mesa?
Para mim as melhores redes sociais são as dos pescadores da Quarteira (risos)! Rede social é um termo ao qual ainda nem cheguei. A melhor convivência é a feita à volta de uma mesa, essa é a melhor.
Está a ver o mercado da Quarteira a transformar-se num desses novos mercados tipo o da Ribeira, em Lisboa?
Isso era o maior desgosto da minha vida (risos). Portugal é um país de imitadores e tudo o que vem lá de fora é moda. Os mercados a cheirar a centros comerciais vão ser um fiasco.
Dia 18 de setembro faz 66 anos. Quanto mais tempo se vê aqui?
Vejo muito e sempre a trabalhar até porque quando se para aparecem logo doenças.
Coleciona carros antigos e tem uma bela coleção de quadros.
Eu fazia jantares no centro cultural de São Lourenço e comprava vários quadros, alguns de artistas famosos como Gunter Grass, e parte do dinheiro pagava com os almoços do meu restaurante. O centro cultural de São Lourenço é uma boa recordação do Algarve, havia sempre uma vernissage e eu fazia os cozinhados. Para se ir para a exposição tinha que se passar sempre pelo meio da cozinha, era muito giro.
Sabemos que gosta de andar de comboio.
Gosto muito. Este verão fui ao Porto a uma cerimónia de entronização da Confraria do Vinho do Porto e saí do Algarve às 7 da manhã no alfa pendular e às 12h45 estava a comer pasteis de bacalhau.
Gosta verdadeiramente de comer?
Gosto, muito. Nesse dia comi oito pastéis de bacalhau, depois uma sopa de grelos, depois pedi umas tripas, que era o prato do dia, e a seguir uma vitela com arroz de forno. Quando cheguei ao hotel pedi dois whiskies e por pouco não perdia a cerimónia (risos).
O que é uma refeição perfeita para si?
Os portugueses tornaram-se uns “eno chatos” e uns “gourmet chatos”, já não falam das coisas naturais da vida só falam de receitas e de gins em balões de jacuzzi com saladas de frutas. Mas eu gosto muitos de refeições dos bairros. Acho que se tiver de escolher um prato, escolho os pastéis de bacalhau sem invenções.
Qual é a importância da sua mulher na história do seu restaurante?
É muito importante. A Leonor é o meu mata borrão, é a minha consciência tranquila. Quando chega alguém muito chato é para o meu mau feitio, quando chega alguém com elogios são todos para a madame Gigi. Hoje em dia no restaurante já só dou a corda ao relógio, e às vezes não dou a corda bem.
O que representa isso?
A imagem de um casal num restaurante é a coisa mais importante. A Leonor entrou seis anos depois do Gigi começar e eu tive logo essa consciência. Se for um dono só leva com os ciúmes dos maridos, uma dona vice-versa. Nós funcionamos como um team brutal. Hoje o Gigi e a Leonor estão diluídos. Pelo que conheço do ADN aqui da zona todos os casais tiveram mais sucesso do que os donos que abriram sozinhos. Mas o casamento é difícil quando se trabalha junto, há muita gente que estraga assim o matrimónio.
Qual é a vossa receita, então?
A nossa receita de sucesso não sei qual é mas sei que o resultado se mostra nos filhos, nos netos e no nosso staff. E tenho muito orgulho nisso.
De onde vem a alcunha Gigi?
Olhem, vem desde que era miúdo. Por causa do gin… (risos). O gin é a melhor bebida do mundo tomada em contenção, ao contrário pode ser a pior.
É como o Gigi?
(risos) Não, para mim não há contenção. Mais Gigi é sempre melhor (risos).