Viagem ao planeta Sócrates

Almoço de apoio ou comício? Foi difícil perceber. Não faltaram os gritos ao PS nem as críticas à forma como a direção de António Costa lidou com a Operação Marquês

Um ex-primeiro-ministro e antigo líder do Partido Socialista põe um almoço de militantes a gritar “PS! PS! PS!” contra a atual direção, de António Costa. Foi isso que se passou. Uma sala inteira a chamar por um partido que acreditam ser um homem ou por um homem que acredita ser um partido: José Sócrates.

Num almoço realizado este sábado, num restaurante no Parque das Nações, o arguido do processo Operação Marquês atacou diretamente a atual direção socialista enquanto falava da “campanha ignóbil” de que se considera vítima. “Muitos quiseram afastar-me. Detemos-te, pomos-te na prisão, não dás entrevistas. O primeiro objetivo era isolar-me da sociedade portuguesa. Porventura conseguiram esse objetivo com a direção do PS, mas quero dizer-vos que não conseguiram afastar-me do coração dos militantes”. As duas centenas de apoiantes irromperam em aplausos pelo seu nome e pelo partido. Ele começava a transpirar, não deixando de brandir o punho enquanto falava. A reunião tinha “significado político” porque “diz respeito a todos”.

Eu já bebi o meu próprio sangue e estou com mais força do que nunca. Vou continuar a aceitar todos os convites que me fizeram. Fui a muito sítio neste último ano e vou continuar a ir. Tenho o maior gosto em falar em público

Não se percebia inteiramente se era um “almoço de homenagem” ou um comício. Havia longa fila à porta, música de apoteose, palmas e beijinhos. “Ó Zé, vem cá dar um abraço à gente!”, reclamava-se numa mesa. “Bem, cá estamos outra vez”, sorria uma senhora para outra com a expressão hipnotizada pelas palavras do político.

O primeiro objetivo era isolar-me da sociedade portuguesa. Porventura conseguiram esse objetivo com a direção do PS, mas quero dizer- -vos que não conseguiram afastar-me do coração dos militantes

Alguns vinham de longe e apareciam de fato e gravata, com malas de viagem que ficavam à porta. “Qual é a melhor pessoa para pedir ao sr. engenheiro uma fotografia?”, pergunta um reformado. Afinal não era um comício, mas um destino turístico.

A vestimenta a preceito levou um homem, dos mais interventivos durante o evento, a trazer um pin com a bandeira de Portugal na lapela. O que Pedro Passos Coelho pensaria de ver uma das suas imagens de marca neste almoço é algo que ficará por averiguar. As dores de cabeça que António Costa sofrerá com estas tentativas de contestação interna é que serão menos misteriosas.

Paulo Campos, antigo secretário de Estado das Obras Públicas, e o seu pai António Campos, um histórico socialista, marcaram presença, assim como os deputados Isabel Santos e Renato Sampaio, que já haviam visitado José Sócrates no estabelecimento prisional em Évora.

Queria sossegar-vos quanto a uma coisa: nem é um livro de mexericos nem é um livro de um paranoico. É um livro que pretende ser de teoria política. Pus de lado tudo o que escrevi sobre este processo. Não é o momento, mas lá chegará

Um amigo dos tempos da Universidade de Coimbra contou ao i: “Votava nele outra vez, por isso é que estou aqui. Passei a militante com ele. Nunca lhe pedi nada, nunca me deu nada e é assim que é amizade a sério. Mas há muita gente que não é assim”. Não segue, no entanto, a linha do homenageado no que toca à gerigonça. “Têm tido bons resultados, nisso discordo dele”.

Sócrates não tardou a referir a sua ida à Universidade de Verão do partido em Lisboa, na passada sexta-feira. “As pessoas levantaram-se, aplaudiram e começaram a gritar ‘PS! PS!’. Eu sei bem o que isso significa”.
Avisou que não fica por aqui e vai continuar a aceitar todos os convites que lhe forem endereçados para falar em público em ocasiões institucionais do partido. “Fui a muito sítio do Partido Socialista e continuarei a ir. Vou fazer muitas intervenções já no próximo mês”, anunciou, ao mesmo tempo que lançava a novidade de um livro a ser publicado em outubro. A obra será sobre “pensamentos de teoria política, não sobre este processo”. Esse está reservado para um futuro próximo, revelou também.

Concretamente sobre a temática da Operação Marquês, Sócrates considerou-a “uma história longa de abusos” que “condena alguém sem direito a julgamento, sem acusação e sem defesa” e a sala aplaudiu.
Carlos Alexandre também não escapou às críticas de Sócrates, que acusou o juiz de ter feito uma “insinuação cobarde” numa entrevista recente. “Para mim o juiz já não existe”, proclamou o suspeito. De acordo com Sócrates, se o direito a ter um juiz imparcial não existir, tal “afeta o coração da justiça”. O único objectivo foi, acredita, o de “humilhar” a sua imagem.
“Será possível em democracia um Estado deter, prender e ao fim de dois anos não apresentar acusação?” perguntou à sala que gritava “não” em resposta. “Não em nome do povo, não em nome da democracia!”, completou. Sócrates invocou o direito internacional – “a Convenção dos Direitos Humanos!” – para se defender de uma investigação que, para si, “não tem factos, nem provas, nem acusações”.

dezanove euros por cabeça José Sócrates mudou pouco. Continua a vestir Ralph Lauren, gravatas de vermelho berrante e a zangar-se quando a imprensa não lhe obedece. Não gostou que as câmaras dos canais televisivos se recusassem a dirigir-se para o local que apontava.

Mas se o único homem que conseguiu uma maioria absoluta à frente do Partido Socialista não mudou muito, o resto do mundo parece ter sofrido alterações. Chegou sozinho e a pé, com as várias folhas do discurso de vinte minutos no bolso do casaco. Antes rodeado de seguranças, à porta do evento viam-se apenas dois porteiros enclausurados em fatos coloridos.

A conta do almoço foi de dezanove euros por cabeça, em pré-pagamento.