Viu o filme Big?
Não.
O Tom Hanks é um miúdo que quer crescer para poder andar numa montanha russa. De noite, o desejo concretiza-se e ele fica com corpo de adulto e mentalidade de criança. E acaba por arranjar um emprego a experimentar brinquedos.
[risos]
Também se sente assim? Ser editor é a profissão de sonho para um amante de livros?
Sim. Estar rodeado de livros e poder publicá-los é a minha profissão de sonho. E tenho a sorte de, na larguíssima maioria dos livros que publico, gostar deles. Infelizmente, na profissão de editor hoje há muitas outras funções de que temos de nos ocupar, por isso não temos assim tanto tempo para ler.
E a profissão permite-lhe ter todos os livros que deseja? Às vezes nas livrarias vemos muitas coisas que gostaríamos de ter mas não podemos comprar tudo…
Acontece-me isso nos alfarrabistas e nas feiras de rua, que é onde hoje compro mais livros. Não é pela bibliofilia, não sou daqueles bibliófilos que andam à procura da primeira edição. São livros que tiveram algum papel em certa altura da minha vida. Às vezes até são livros maus. Há muitos livros maus de que eu gosto.
E onde estão esses livros todos?
Já tive uma casa com muitos, muitos livros. Na última mudança acabei por dar dez mil livros à minha irmã, que tem uma casa muito maior, e fiquei só com três ou quatro mil para mim. Passados três anos, já são outra vez cinco mil livros e tenho mais uns milhares em casa dos meus pais, em Trás-os-Montes.
Como estão organizados?
Sempre tive os livros organizados por géneros e por autores. E depois havia uma estante que não tinha nada disso, a que eu chamava os ‘livros mais queridos’. Misturava poesia, ensaio, livros de viagem, ficção.
E ainda os mantém assim?
Fiquei sempre com esses. É a estante onde misturo o Conde de Monte Cristo com o Huckleberry Finn, o Borges com o Calvino, uma grande misturada.
O que está a ler agora?
Um livro do Simon Schama sobre a paisagem. Ele percebeu que a maneira como nós vemos e representamos a paisagem revela a maneira como somos. Sempre tive esta intuição e agora encontrei-a nesse livro e fiquei maravilhado. Cada vez leio mais ensaio. Tenho vontade de aprender e até já propus a vários amigos que são professores na universidade fazer o doutoramento deles, mas dizem-me ‘Nem penses, vais perder o teu tempo’.
Já leu a Elena Ferrante?
Claro que sim. É uma voz muito interessante, mas um pouco laboratorial, cheia de sentimentalismo. Vê-se pelo público que conquista, aliás.
Merece a fama que tem?
A fama é uma condição dos autores que têm leitores. A partir do momento em que se sabia que era um pseudónimo, uma construção de um ou dois autores (em abril falava-se disso com naturalidade na Feira de Bogotá), acho justificado que se tivesse feito um trabalho jornalístico para descobrir quem era a verdadeira autora, embora não me interessasse nada aquela coisa das casas e das contas bancárias.
Era uma autora que gostaria de ter editado na Quetzal?
Com certeza, mas nem sempre podemos editar aquilo que queremos. É natural. Se ganhasse o Euromilhões comprava uma casa no Douro e publicava uma grande coleção de clássicos e de livros que me comoveram nos últimos 30 anos, muito cuidada graficamente. Suspeito que os meus filhos leem pouco, muito pouco, mas não quero passar a vida atrás deles, como uma velha chata ou um beato moralista, a perguntar se já leram isto, se já leram aquilo.
Há uma coisa que me faz alguma confusão. Como é que um editor, além de conhecer os clássicos e os livros ‘obrigatórios’, ainda consegue estar a par de tudo aquilo que se faz para saber o que vale e o que não vale a pena editar?
Isso é um bocadinho um mito: o mito do editor que está atento a tudo. Eu sou editor do Vargas Llosa, ou do Bolaño, o que significa que estou atento às coisas que estão próximas desses autores. Saber tudo é completamente impossível. Está a ver aquele recorte ali atrás? É um estudo que o Corriere della Sera fez entre os gestores de edição. E chegou à conclusão de que um em cada dois não lê sequer um livro por ano. Não é o meu caso, porque tenho capacidade e tenho prazer em desdobrar-me… Mas hoje em dia temos imensos instrumentos à nossa disposição para sabermos o que sai. Todos os dias recebo 50 notificações sobre livros que vão saindo no mundo inteiro. E na Quetzal só publicamos 37 livros por ano.
Porquê? Porque é uma editora com uma vocação mais elitista?
Mais literária. O que não quer dizer que só publiquemos ficção. Quando digo literária, quero dizer que é uma editora com uma determinada visão da realidade.
E é viável só publicar 37 livros?
É viável se decidir que o seu orçamento, as suas contas, são para 37 livros. E não nos interessa publicar mais do que isso.
Nem mais um?
Com o cafarnaum que vai para aí, com a Babel absolutamente imunda de livros que se publicam hoje, para que vou publicar 80 livros? Um livro precisa de ser acompanhado. Há livros que vou esperar à gráfica porque quero saber o primeiro cheiro. Isto pode parecer um bocadinho snobismo, mas um livro da Quetzal, se você for ver, tem entre X e X caracteres por linha, não tem mais. Um livro da Quetzal tem uma margem interior maior do que a exterior…
Para quê?
Para que as pessoas, ao lerem o livro, não tenham que abri-lo todo e destruí-lo. E fizemos outras coisas, como a foto do autor e a página do destaque – agora há pelo menos seis editoras portuguesas a copiar-nos. Fazer um livro com cuidado, com gosto, com respeito pelos consumidores, é uma coisa que não leva tempo nem dinheiro. Acho que metade dos livros que temos em Portugal – e estou a ser generoso – se fossem produtos de supermercado, como sumos ou pacotes de arroz, as pessoas não os compravam.
Porque estão mal ‘embalados’?
Estão mal impressos, mal paginados, estão cheios de gralhas, têm uma capa horrível e que se descola. Devia haver uma espécie de Deco dos livros. O consumidor de livros não está bem defendido. Nós podemos devolver um produto se ele tem defeito, mas se o livro está cheio de gralhas não o podemos devolver. Porquê? Porque a cultura lava mais branco.
‘Lava mais branco’?
Hoje em dia, quando se quer fazer alguma coisa, basta pôr-lhe o rótulo de cultura. Num desfile de moda, numa prova de vinhos, numa degustação de produtos do Alentejo, numa orquestra de tambores – qualquer coisa – a gente põe cultura e está safo. O nome cultura é um detergente ótimo para muitas coisas que não são cultura.
Muitas editoras publicam livros que vendem muito para poderem publicar os outros que não vendem, mas merecem ser publicados. Na Quetzal acontece isso? Ou pelo facto de estar num grupo há outras editoras do grupo que vendem para a Quetzal poder publicar os seus livros?
Nem pense nisso. A Quetzal está integrada num grupo, mas tem as suas contas, e cada um dos meus colegas neste grupo tem as suas contas. Eu não posso dar prejuízo para outros o irem tapar. Seria injusto para um colega editor do grupo que publica títulos de grande venda, dizer ‘agora temos este luxo que se chama Quetzal’. Sei que é muito triste, mas há livros que não publicamos porque sabemos que não vão vender. Mesmo assim já publicámos coisas absolutamente invendáveis. Alguns foram um grande insucesso, outros conseguimos transformá-los em sucesso. Muitas pessoas não percebem o risco tremendo de hoje ser editor.
Que risco é esse?
Nós temos o livro impresso, mas como é que o conseguimos levar ao maior número de leitores? Publicar um livro é fácil. O grande problema está em vendê-lo. É fundamental ir às bibliotecas, às escolas, aos festivais. Publicar um livro e entregá-lo à sorte nas livrarias. Isso é…
É lançá-lo às feras?
É lançá-lo para o big nowhere, para o grande desconhecido.
É verdade que há livrarias que vendem espaço nas montras ou um lugar de destaque?
Quase todas. É como os supermercados: para expor os seus cereais com destaque você tem de pagar esse destaque. Claro que há livrarias que não fazem isso. Fazem a sua escolha e vendem aqueles livros em que acreditam.
Este modelo dos grandes grupos editoriais – como o da Bertrand/ Círculo de Leitores/ Porto Editora – é alvo de muitas críticas por pessoas do meio. Não acha que algumas dessas críticas são justificadas?
Esse ressentimento é muito vulgar em Portugal, mas está completamente desajustado. Não alinhem naquela coisa de que por sermos um grupo editorial estamos no lado mau da força. Muitas das pessoas que têm esse discurso engatilhado contra os grandes grupos acabam por cair em armadilhas piores, cometer contradições terríveis e no fundo – a expressão é mesmo esta – fazer merda ainda maior do que os grandes grupos. O poder de um grande grupo é o poder de se organizar. No meu grupo há uma rede de livrarias. Mas a rede de livrarias não me favorece. Até acho que de vez em quando até me prejudica.
Este fim de semana esteve cá o Vargas Llosa. Já o conhecia?
Sim. É um homem interessantíssimo, um homem do seu tempo, um grande autor. E um homem corajoso, até fisicamente. Com 80 anos mantém aquela imponência, aquela energia. É um tipo admirável. Partilho muitas das ideias dele e tem uma vida interessante, com aventuras amorosas [risos]…
É normal estes autores terem um fee?
Para se trazer um autor a um festival ou para uma conferência, obviamente tem de se pagar esse trabalho. É absurdo que qualquer gato que arranhe uma guitarra receba um cachet e um autor que vai fazer o seu trabalho, vai falar, vai gastar tempo, não seja pago.
E quando um autor como Vargas Llosa vem a Lisboa, acompanha-o?
Sim.
Leva-o a jantar, vai buscá-lo ao aeroporto?
Sim, sim. Quando cá vêm autores estrangeiros vamos buscá-los ao aeroporto, levamo-los ao hotel, andamos com eles, jantamos. E há casos especiais, como o Rentes de Carvalho. Ele vive três meses na Holanda e três meses cá. Vai e vem de carro, com a mulher, aos 86 anos. Para a semana tenho que ir vê-lo, conversar com ele, almoçar com ele, ir a uma taberna onde vamos em Moncorvo, a Taberna do Carró. E quando publicamos um livro vamos lá buscá-lo, instalamo-lo num hotel, fazemos essas coisas. No fundo a nossa vida, mais do que os livros, são os autores.
Compensa fazer esse investimento em hotéis, transportes e refeições, para vender, se calhar, meia dúzia de livros?
Claro que fazemos contas. Não estamos aqui para espatifar o dinheiro do acionista e temos a sensatez de perceber que não podemos trazer os autores todos. Felizmente hoje Portugal tem uma rede de festivais, de eventos, de apoio à vinda de autores, que também tentamos aproveitar.
Disseram-me que em Óbidos, no ano passado, havia grandes autores com salas vazias. Isso não se pode tornar constrangedor?
São as vicissitudes da profissão. Eu próprio, no princípio, tive sessões com meia dúzia de pessoas. Acontece.
E não há autores que digam ‘eu não preciso disso para vender livros’?
Não. Os autores hoje sabem que isso faz parte da sua atividade, sabem que um lançamento ajuda.
Ajuda a quê, a falar-se?
A falar-se e não é só. Às vezes fazemos um lançamento e nem esperamos vendas. É uma pequena festa que oferecemos ao autor para celebrar o nascimento de um livro.
Gosta dessa parte do seu trabalho?
Não. [risos] Na verdade não gosto. Não sou um animal social. Há pessoas que vivem, desde que se levantam até que se deitam, sempre à volta do meio literário. Vão deste lançamento para o outro, saem e ainda vão jantar com autores, editores ou jornalistas. Eu na verdade…
Dispensa essa parte?
Não só dispenso como não tenho paciência nem saúde nem disposição. Gosto muito de ser editor, de falar com os meus autores. Mas depois há um trabalho social que preferia não fazer. E às vezes cansa-me. Nos últimos três meses não tive um fim de semana livre. Havia sempre um lançamento, uma ida aqui, uma ida ali. Numa editora pequena como a Quetzal é francamente complicado. Temos de pensar se o cartaz está pronto, se as bebidas vão ser entregues a tempo, se o microfone funciona, se há livros à venda, a que horas é preciso ir buscar o autor…
Falou da relação que mantém com os autores. Também tem de lidar com as angústias deles?
Tenho. Há 30 anos que conheço estas pessoas. Sou amigo do José Luís Peixoto há muito tempo, sou amigo do Rentes há muito tempo, do Agualusa há muito tempo. Não me faço amigo deles agora. E portanto há uma relação de cumplicidade. Às vezes telefono a perguntar ‘como é que estás?’, ‘o teu problema familiar ainda está aí?’, coisas desse género.
Recebe muitos livros de autores que os mandam espontaneamente?
Recebemos cinco ou seis originais por mês.
E consegue à primeira página perceber se vale a pena?
A gente dá uma olhada e normalmente percebe pelos primeiros dois ou três capítulos.
Já descobriu algum autor assim?
Não. É uma pena. Mas nunca deixei de ter esperança de um dia me chegar um livro.
Não sei se gosta de falar da fase em que foi secretário de Estado… Foi o pior ano e meio da sua vida?
O pior ano e meio foi a seguir a ter saído. Não só porque estava doente, mas também por motivos pessoais e profissionais que foram consequência disso. Foi um ano e meio, dois anos, muito difíceis, mas já estou retemperado.
E conciliado?
Tenho uma grande capacidade de me conciliar com o passado. Quando o passado não é bom tento reconstruí-lo de uma certa maneira. Tentar olhá-lo até ele fazer sentido.
E, neste momento, esse período já faz sentido para si?
Neste momento acho que já estou em condições de fazer um certo balanço, e não me assusta. No fundo tínhamos um orçamento maior para a cultura do que agora – e éramos os tipos que iam matar a cultura! Foi a primeira vez que um governo disse que ia fazer isto, isto e isto: património, lei do cinema, lei da língua. E fez. Fizemos uma lei do cinema que agora está a funcionar, recuperámos património, não deixámos fechar nenhuma biblioteca, não deixámos fechar nenhum museu, disciplinámos as finanças. As pessoas não gostaram porque até então o Ministério da Cultura era uma espécie de representação do meio cultural, e aquele senhor [o ministro] estava lá para satisfazer as pessoas do meio. Mas isso agora não interessa.
Acha que valeu a pena?
Não estou arrependido de ter desempenhado esse papel. Estou arrependido do ponto de vista da minha vida em geral, porque foi uma coisa que me destruiu pelo menos dois anos, a seguir a ter saído, que foram muito penosos em termos da saúde e do meu equilíbrio. Mas também aprendi imensas coisas. Aprendi coisas sobre os outros, sobre falsos amigos. Aprendi que existe tudo na política: existem cumplicidades, amizades, filhas-da-putice, existe tudo. Mas não existe gratidão. É a única coisa com que podemos não contar.
Vejo-o como uma pessoa que gosta de ter prazer naquilo que faz, e imagino que nesse período vivesse afundado em problemas e burocracia…
Talvez essa ideia do bon vivant resulte de eu ter assumido que gostava de fazer certas coisas. Escrevi um livro sobre cerveja, que era uma coisa desconsideradíssima, escrevia uma coluna semanal sobre charutos, escrevia sobre restaurantes, fiz um livro de receitas. Dei-me a esse luxo porque acho o nosso mundo intelectual tão chato, tão aborrecido, que tentei torná-lo mais apetitoso.
O meio literário português é chato?
O meio não é chato, há pessoas maravilhosas. E há outros que só falam de livros e de literatura e dos seus livros. A falta de mundo de grande parte dos escritores portugueses é assustadora.
Falta de mundo significa o quê? Falta de sair do país, também?
Não, nem é isso. Há muita gente que sai do país mas não sai de si próprio. Parece que engoliram um garfo, têm o garfo aqui atravessado e não podem mexer-se. Não posso criticá-los porque é a vida deles, mas eu vivo de outra maneira. Gosto do trabalho que tenho, mas também gosto de desligar, de ir calmamente para casa pela Marginal e sentar-me na esplanada do meu bairro, onde ninguém sabe que sou editor. De falar com o sr. Carlos dos jornais, que me pergunta sempre se quero Marlboro, quando sabe que eu não fumo Marlboro, de discutir futebol com os rapazes do talho, de ir à praça. Há pessoas que não têm um dia na sua vida sem um jantar, um almoço, uma coisa literária – eu não, tenho outras coisas. Gosto de viajar, gosto de pegar no carro e ir com a minha filha para Trás-os-Montes, de ir para a praia. Passeio nas florestas, sou observador de árvores…
Observador de árvores?!
Há os observadores de pássaros, eu sou observador de árvores. Faço parte de um grupo de malucos que vai passear para a serra de Sintra para observar árvores.
Quanto tempo ficam a olhar para uma árvore?
Meia hora, uma hora.
Como começou isso?
Uma vez, estava em Timor e tinha uma amiga que vivia em Bali. Liguei-lhe e combinámos eu ir lá passar uma semana. Um desses dias, ela foi-me buscar ao hotel e disse que me ia levar ao Jardim Botânico. Andámos duas horas de carro, parámos e fomos por um trilho. A certa altura há um declive e vejo 100 pessoas sentadas com o seu farnel, a comer e a olhar para as árvores. E eu pergunto: ‘O que é que as pessoas vêm para aqui fazer?’. ‘Vêm ver árvores’. Achei aquilo estranho, mas depois percebi a tranquilidade que transmite.