Ai caos do Sodré

Demorar 48 minutos a percorrer umas centenas de metros numa rua de Lisboa é obra. Ou melhor, são obras. Seja de carro ou de autocarro, porque, com a cidade num estaleiro, ainda é mais desesperante esperar 30 a 40 minutos numa paragem apinhada.

Já no metro, mesmo quando os bilhetes não esgotam (o que é surreal), esperar 15 minutos na gare também passou a ser normal. Mas não é normal.

O regresso das aulas e o fim de férias, em setembro, agravou, e muito, o trânsito na capital. E, com as primeiras chuvas, veio o caos. Já se esperava.

Estamos a um ano das autárquicas e o calendário eleitoral obriga ao cumprimento dos prazos, que o preço a pagar nas urnas será inevitavelmente mais indesejado pelos autarcas da cidade do que as centenas de milhões de euros das obras em execução e planeadas (só cerca de 20 milhões vai custar a requalificação da Av. de Ceuta, com a ribeira a servir de eixo central, em fase de adjudicação).

Cais do Sodré, Av. 24 de Julho e da Índia, Av. Infante D. Henrique – ir da Expo a Santos é um martírio e mais vale dar a volta pela 2.ª Circular (enquanto também esta não entrar para obras, que lá virão depois das eleições e de mais uns milhões perdidos pela anulação do concurso, tudo, mais uma vez, por causa dos calendários) – Av. da Liberdade, Conde Redondo, Fontes Pereira de Melo, Picoas, Saldanha, Av. da República, paralelas ou transversais nas Avenidas Novas são, na sua maioria, obras estruturantes que visam a melhoria do espaço público e em particular a sua fruição pelo cidadão.

Juntam-se a estas – e também na sua esmagadora maioria a cargo da Câmara, que ele há dinheiro – um vasto conjunto de outras obras menores classificadas como prioritárias pelas juntas de freguesia: de Marvila aos Olivais, da Penha de França a Arroios, da Mouraria à Madragoa, de Alfama ao Bairro Alto, de Campolide a Benfica.

A venda dos terrenos do aeroporto e, sobretudo, a exponencial subida das receitas arrecadadas em impostos sobre imobiliário fizeram com que a Câmara da capital lograsse um superavit de quase 200 milhões de euros no exercício de 2015. Se somarmos o recurso a financiamento bancário de 500 milhões, percebemos por que há tantas e tão estruturantes obras em andamento ou já planeadas.

Lisboa vai estar um brinco quando o povo for convocado para o escrutínio dos seus representantes.

Mas estará melhor, ou muito melhor?

Há alguns sinais preocupantes.

Em primeiro lugar, a manifestamente excessiva e simultânea concentração de recursos financeiros na requalificação e embelezamento do espaço público, como se todas as outras políticas públicas fossem de somenos ou quase irrelevantes para este executivo camarário.

A requalificação imobiliária e patrimonial é também uma prioridade e não tem investimento minimamente comparável, mas, muito pior, as políticas sociais, de saúde, de educação, de investimento na economia local e na criação de emprego são absolutamente menosprezadas. O apoio ao empreendedorismo é a fazer de conta e uma ou outra iniciativa, como a Web Summit ou quejandas, é só para encher o olho.

Que é o que lhes (a eles, autarcas a escrutínio popular dentro de meses) importa.

 

Voltemos ao estaleiro. A teoria dos especialistas da Câmara e planeadores das obras estruturantes nos eixos centrais é que quanto maior for a dificuldade de transitar na Baixa da cidade menos carros circularão, o tráfego fluirá melhor e haverá também uma consequente melhoria ambiental.

Pois sim, como se o preço dos transportes públicos e o serviço por eles prestado fossem convidativos à alternativa. Não são.

A redução das faixas de rodagem, nalguns casos apenas permitindo o cruzamento de um veículo em cada sentido, e o aumento dos passeios de forma desproporcionada fazem temer que as condições do trânsito automóvel não melhorarão muito quando as obras estiverem concluídas. Nalgumas vias centrais, basta antecipar a avaria de um autocarro ou um acidente menor para se perceber que os engarrafamentos vão continuar. O estacionamento diminui, as paragens em segunda fila podem até quase deixar de existir, mas nem por isso se antevê que a fluidez do trânsito vá melhorar. Até porque é contrário ao objetivo perseguido de retirar os carros do centro da cidade. Até porque, também, outro dos investimentos da moda é a bicicleta e as ciclovias.

Até final do ano, devem ser adjudicadas as bicicletas (à roda de mais 25 milhões de euros) que invadirão Lisboa.

Mas Lisboa não é Amesterdão, nem Madrid, nem Aveiro. Tem sete colinas e pronunciadas. Não é para qualquer um. Além de que as ciclovias que vão aparecendo pela cidade, nalguns casos, são uma aberração.

Faz algum sentido pôr a circular as bicicletas (eventualmente até elétricas) em plenos passeios? Jamais. Europa fora, e recorrendo aos exemplos estrangeiros de que tanto se faz uso para sustentar as opções caseiras, não há como justificar que as ciclovias não sejam confinantes com a faixa de rodagem, ainda que devidamente demarcadas, e sempre com barreiras claras em relação aos passeios ou vias pedonais.

Em Lisboa não é sempre assim. Há extensas zonas de circulação pedonal, inclusivamente com esplanadas (que finalmente parecem instalar-se de vez, e bem, em Lisboa), literalmente atravessadas pelas ditas ciclovias. Com todos os perigos inerentes e tanto mais e maiores quanto maior for a adesão aos velocípedes.

Igualmente perigosa – e atentatória da Lisboa histórica – é a opção de acabar aos poucos mas violentamente com a típica e tradicional calçada portuguesa.

Além de ser um verdadeiro ataque à cultura e arte citadina, é um disparate.

Os solos argilosos da cidade, ao contrário do que tem vindo a fazer-se com a impermeabilização de extensas zonas com placas de cimento ou pedra dita porosa, precisam de irrigação. A argila, secando, transforma-se em pó e cede. E os exemplos de passeios irregulares ou mesmo esburacados existem aos milhares.

A calçada portuguesa pode ser desconfortável e necessitar de uma manutenção permanente. Fosse esta devidamente feita e não havia problema algum, antes pelo contrário. Não pode é ficar-se pelo mero enchimento com mais areia e mais pedras – vá lá perguntar-se aos calceteiros como devia ser, que eles logo dirão há quanto tempo não se investe em reparações nas caixas e quão confortável podia ser a verdadeira calçada. Só que eles já são cada vez menos e, a confirmar-se a decisão municipal de acabar com a calçada, cada vez mais aceleradamente em vias de extinção.

E é lamentável. Lisboa nunca ficará mais bonita sem calçada portuguesa.

Só à pedrada…