Decorridos dez dias sobre a escolha de António Guterres para a ONU, passados os elogios merecidos e as homenagens justas – que injustamente não foram feitas a outros portugueses que chegaram a altos cargos no estrangeiro, como Durão Barroso –, é tempo de falar do tema com menos paixão. De falar de um Guterres não idealizado pelos media mas do político com as suas forças e fraquezas.
Conheci-o bem. Um dia, corria o ano de 1990, telefonou-me, disse-me que ainda éramos primos e combinámos um almoço. As nossas famílias eram de Donas (nós dizíamos «das Donas»), na Beira Baixa, e as suas tias-avós eram primas direitas das tias do meu pai. E moravam no mesmo largo da aldeia, creio eu. Guterres ainda se lembrava de as ver no terreiro, com um guarda-chuva para se taparem do sol nos dias de Verão.
Esse almoço, que se realizou no 33 (um restaurante na avenida Alexandre Herculano, à direita de quem desce), foi o primeiro de muitos. Na altura ele já dominava o aparelho do PS, cujo secretário-geral era Jorge Sampaio. Percebi que ambicionava chegar à liderança. De facto, um tempo depois, Sampaio seria rotundamente batido por Cavaco Silva nas legislativas de 1991, demitiu-se, e Guterres sucedeu-lhe.
Continuámos a falar. Encontrávamo-nos no Pabe, na Versalhes, que fica próximo de sua casa, ou no Conventual, na Praça das Flores, um restaurante que ele apreciava muito, relativamente perto do edifício do Parlamento.
O Presidente da República era Mário Soares, que não gostava dele. Para começar, a proximidade entre Guterres e o britânico Tony Blair irritava-o. Guterres era um homem da ‘terceira via’, não era um socialista histórico.
Além disso, Soares achava que Guterres não fazia a oposição a Cavaco que as circunstâncias exigiam. Para Mário Soares, o líder da oposição ‘a sério’ era Manuel Monteiro, presidente do CDS. O Palácio de Belém transformou-se então num centro de conspiração contra o cavaquismo.
Guterres nunca se importou muito com isso. Pragmaticamente percebeu que, quando Cavaco saísse, seria ele o primeiro-ministro – e disse-mo. Inventou nessa altura a expressão «fazer de morto». Bastava-lhe fazer de morto para chegar ao poder.
E assim foi.
Nos primeiros quatro anos como primeiro-ministro, Guterres mostrou as suas forças e fraquezas. Lançou uma nova geração de políticos, como José Sócrates, Armando Vara, etc., que mais tarde se revelariam menos recomendáveis mas na altura representaram uma lufada de ar fresco.
Falava muito bem, e por isso chamei-lhe «o homem que fala bem de mais». O facto de falar bem, se por um lado era um trunfo, por outro retirava-lhe autenticidade. Parecia debitar um discurso ensaiado. Por outro lado, era politicamente correto ao extremo. Foi a primeira pessoa que ouvi dizer «as portuguesas e os portugueses». Até aí, dizer «os portugueses» bastava…
Era hábil a negociar, rápido a apanhar as ideias – Sócrates disse-me que foi a pessoa «mais inteligente» que conheceu –, mas faltava-lhe a firmeza e resistência que faz os grandes líderes. Quis impor uma taxa de alcoolemia mais baixa para os condutores, mas os produtores de vinho vieram a Lisboa e despejaram milhares de litros na rua, e o Governo recuou. Decidiu localizar a coincineração em Souselas, na fábrica da Cimpor, deslocou-se a Coimbra, foi recebido à chegada por uma manifestação hostil, e quando saiu de Coimbra já tinha desistido da ideia.
Detestava tomar decisões por ter de desagradar a alguém. Precisava que gostassem dele.
Na segunda metade do primeiro mandato como primeiro-ministro teve de enfrentar outras batalhas bem mais duras. Foi a luta pela independência de Timor-Leste e contra a ocupação indonésia. E foi a luta pela vida da mulher, Luísa. Tratou-se de um período heroico. No meio das agruras caseiras, António Guterres ia todos os fins de semana a Londres e passava-os enfiado no hospital. Aí ganhou endurance moral – e a luta por Timor deu-lhe experiência nos palcos internacionais. Luísa havia de falecer em Janeiro de 1998, mas Timor seria mesmo independente.
Nas segundas eleições legislativas que disputou, em 1999, deu-se célebre empate 115-115. O Parlamento ficou dividido exatamente ao meio. Guterres falhou a maioria absoluta por um deputado – e isso abalou-o muito. E ao fim de dois anos desistiria, depois de uma derrota nas autárquicas. Muito mais tarde, Pina Moura confidenciou- -me que essa renúncia ao cargo de primeiro-ministro também se devera ao facto de não querer assumir o ónus de pôr em prática as duras medidas de austeridade que na altura se impunham. É durante o Governo de Guterres que as dívidas dos bancos e das famílias crescem assustadoramente, preparando a tempestade que haveria de abater-se sobre o país anos mais tarde.
Pode haver muitas explicações para o abandono da política nacional por parte de Guterres e para a sua aposta numa carreira internacional. Mas devo dizer que, desde muito cedo – e ao contrário do que eu próprio pensei quando o conheci –, Guterres viu a política portuguesa não como um fim mas como um trampolim para desempenhar cargos lá fora.
Na primeira entrevista que lhe fiz após ter sido eleito primeiro-ministro – a primeira que deu nessa qualidade –, disse-me que a sua ambição seria desempenhar um dia um cargo no estrangeiro. Ou seja, no próprio momento em que aparentemente chegava ao topo da pirâmide, ele já sonhava mais alto.
Portanto, Guterres está onde sempre quis estar. Onde pode ser feliz. E claro, tornar muita gente menos infeliz.