França. Calais desflorestada

Centenas de pessoas abandonaram ontem a Selva de Calais contra a sua vontade e sem ideia do que as espera. As crianças ficaram para trás 

Calais é um campo de vidas estanques e poucos passaram mais de um ano nas suas tendas em segunda mão, nas barracas improvisadas de finas tábuas de madeira. A maioria vive em trânsito permanente, tentando e desistindo do sonho de uma vida no Reino Unido, que todos veem do lado de lá do estreito em dias limpos. Ontem não foi um desses dias. Pôs-se uma neblina espessa, choveu como tem acontecido nas últimas semanas, o chão de terra batida ficou enlameado como sempre. Ontem, no primeiro dos últimos dias da Selva de Calais, ninguém viu à distância as ilhas que levaram para lá milhares de pessoas nos últimos dois anos. Apesar da lama, do frio, dos ratos, da fome e do abandono. 

Começou ontem a grande operação para esvaziar o ainda maior acampamento montado por requerentes de asilo e imigrantes que o mundo conhece como a Selva de Calais. Mais de três mil pessoas acordaram às primeiras horas da manhã para se juntarem às enormes filas que as conduziam a um centro de processamento, onde lhes seria perguntado onde queriam ser recolocados – se Paris, Lyon ou Marselha –, recebiam sacos de roupa e alimentos e daí partiam para as dezenas de autocarros alugados pelo governo francês. Não se repetiram as cenas do fim de semana, quando dezenas de pessoas incendiaram casas de banho portáteis e lançaram pedras à polícia. 

Não houve violência, mas a operação tardava mais do que o planeado. Ao início da noite, menos de duas mil pessoas tinham sido recolocadas – o que não deixava de ser apenas um pequeno percalço para quem esperava cenas de caos e destruição. O programa desenhado pelo governo francês e comunicado nas últimas semanas aos cerca de dez mil moradores do campo espera conseguir recolocar todas as pessoas até quarta-feira, mas pode ter de se prolongar até ao final da semana. Agentes e funcionários dos gabinetes franceses de asilo e integração – ontem eram mais de mil – diziam ontem que podia não haver lugar para todos os que estavam nas filas. Centenas de menores ficaram para trás, em habitações com aquecimento. Destes, quase 200 estão sós e vão ser acolhidos voluntariamente pelo Reino Unido. 

As demolições começam hoje. Há muito que o governo francês quer fechar o acampamento de Calais. No ano passado tentou encurtá-lo, destruindo uma parte. Conseguiu apenas cenas de grande violência entre a polícia, que dispersava manifestantes, e os moradores, que lhe arremessavam pedras e tendas em chamas. A população, aliás, duplicou, apertando-se no que restava do campo de terra batida nos arrabaldes de Calais. Desta vez, porém, o campo vai mesmo ser desmantelado. Os residentes estão avisados de que quem resistir à recolocação será detido e possivelmente deportado para o seu país de origem. O governo francês quer enviá-los para centros de acolhimento recém–construídos, onde avaliará os seus pedidos de asilo.

Escolhas Muitos dos que ontem falavam aos jornalistas em Calais diziam ter desistido do sonho de viajar para o Reino Unido. Vêm sobretudo de países africanos que normalmente não são pensados como locais de origem de refugiados, apesar da violência, perseguição e pobreza. Nas filas de ontem avistavam-se acima de tudo sudaneses, etíopes e eritreus, mas há também muitos afegãos no campo. Preferem viajar para o Reino Unido em busca do seu sistema de asilo inclusivo, por terem lá familiares e conhecidos, porque sabem falar inglês, e não francês, e acreditam que isso lhes dá “mais hipóteses de se integrar e conseguir um emprego melhor”, como explicava ontem à BBC Heaven Crawley, chefe do departamento de migrações na Crawley University.

O governo francês, por sua vez, reclama o fim dos ataques violentos contra os condutores de camiões que cruzam o Canal da Mancha e diz querer melhores condições para as pessoas de Calais. Está também sob pressão da ala antimigração e a menos de um ano de eleições presidenciais. Não ajudam as imagens de homens lançando pedras para abrandar o trânsito e forçar a entrada nos veículos, em busca de uma boleia até solo britânico. Já morreram dezenas de pessoas a tentá-lo, muitas atropeladas na autoestrada que dá para o túnel subaquático. A autoridade portuária, por sua vez, queixa-se de prejuízos na ordem dos milhões. A solução encontrada, garante o Eliseu, protege os direitos dos refugiados e a segurança da fronteira. 

Mas longe das câmaras, de acordo com as sondagens do Refugee Rights Data Project, dois terços dos moradores de Calais dizem não querer ficar em França e um terço promete voltar a tentar uma travessia para o ReinoUnido. Amir, do Sudão, no campo há dois anos, é um destes últimos. “Vou para lá, vou conseguir o meu sonho”, revelou à BBC, dizendo-se frustrado pelo fim do seu acampamento. “A Selva está acabada. Fiquem felizes! Não se preocupem com os refugiados. Fiquem confortáveis e fechem a vossa fronteira para sempre. Ninguém vai para aí!”