Doutores, engenheiros e o Senhor da CGD

Faz meses que Paulo Rangel, entrosado nos corredores de Estrasburgo e Bruxelas, apresentou no congresso do seu partido a proposta de acabar com o uso oficial dos títulos de doutores, engenheiros e arquitetos para tudo e mais alguma coisa e sugeriu a uniformização à inglesa (ou à americana) da Senhora e do Senhor – sendo…

O inglês tem a desconcertante vantagem de o you servir tanto a segunda pessoa do singular – o familiar tu – como para o  mais distanciado e formal você.

Mas senhor ou senhora servem para rigorosamente tudo. Doutor (doctor) é o  médico.

Nos países terceiro-mundistas, provincianos e classistas, doutor é o chefe, boss, patrão ou maior, independentemente das suas habilitações literárias, e os não doutores ou são engenheiros ou arquitetos ou são senhoras ou senhores e – assim ao género do boy americano ou do garçon francês – moço ou moça, rapaz ou rapariga, independentemente da idade mas não do status social.

No país que temos, a proposta de Rangel caiu em saco roto, entrou por um ouvido (se é que entrou) e saiu pelo outro. Ninguém ligou.

Porque é só doutores e engenheiros. Ou porque se tem título académico e não se abdica do respetivo tratamento, ou porque, mesmo quando não se tem, dá-se ares de que é suposto assim ser-se tratado, ou até porque, sem o dito, diz a lei que não se pode ser isto ou aquilo.

Não há médico sem curso, internato e especialidade, não há magistrado sem curso de Direito, aprovação no Centro de Estudos Judiciários e colocação (até pode haver, mas são casos muito especiais), não há advogado sem admissão na Ordem, o mesmo para engenheiros e arquitetos e assim por diante.

Seja como for, o que não nos falta são doutores e engenheiros.

 

Ontem à tarde, o chefe de gabinete do secretário de Estado da Juventude e do Desporto demitiu-se do cargo porque tinha apresentado currículo com duas licenciaturas (sim, logo duas). Corrigiu para frequência de dois cursos. Mas tarde de mais.

Ainda nesta semana, um adjunto do primeiro-ministro demitira-se porque também transformara a frequência num curso superior em licenciatura – inflacionando na sua contratação pelo Estado o grau técnico e o estatuto remuneratório para o qual foi nomeado. Afinal, não eram precisos todos os dedos de uma só mão para contar as disciplinas do referido curso que o senhor (obviamente ‘doutor’ lá na Presidência do Conselho de Ministros) tinha concluído.

Demitiu-se. Não podia deixar de ser.

Para se ser primeiro-ministro (como ministro ou secretário de Estado e outros cargos políticos) não é preciso ter habilitações literárias equivalentes à licenciatura. Nem tão pouco vencer eleições. É preciso é reunir condições para se obter apoio no partido e parlamentar que permita a indigitação pelo Presidente e a aprovação na Assembleia.

Ter curso ou não o ter não é condição.

Mas para desempenhar outros cargos – nomeadamente técnicos – na Administração Pública e Local, por vezes a licenciatura é requisito sine qua non. Ou não.

Vejamos um exemplo denunciado há semanas pela televisão pública (e ignorado): a diretora-geral das artes foi nomeada por concurso público sem, à data, preencher o requisito legal de ser licenciada há pelo menos 10 anos.

Ele há até um órgão criado especificamente para garantir a fiabilidade e legalidade dos concursos públicos.

Bacharel à data, a atual diretora-geral das artes foi nomeada e mantém-se no cargo.

Ooops, então e a lei? A lei? Adapta-se.

Não está em causa a competência técnica da senhora (doutora, aqui sem aspas, porque entretanto foi-lhe reconhecida a equivalência). Mas a lei é supostamente igual para todos – ou não é?

Simultaneamente, anda meio país chocado com o ordenado do presidente da Caixa Geral de Depósitos, contratado no setor privado, com as condições salariais similares às que já tinha e que se enquadram nas práticas do setor da banca.

Ninguém põe em causa a competência especializada e técnica do senhor doutor António Domingues, com todas e mais algumas habilitações.

Mas gerou-se um coro de indignação contra o ordenado e os prémios que há de receber em função dos resultados que a instituição há de ter.

A questão que devia colocar-se é, antes de mais, tudo o que os seus antecessores ganharam para levar a Caixa Geral de Depósitos ao estado (de necessidade) a que chegou. Esses, sim, obviamente receberam demais.

O novo presidente da Caixa ganha o que lhe é devido. E não é muito, se já era esse o seu nível remuneratório na banca privada.

Mas há outra questão que não tem sido devidamente ponderada e devia: se António Domingues já tinha este nível salarial e é perfeitamente normal que não perca poder de compra ao aceitar dirigir o banco público, ainda para mais sujeitando-se a exposição e devassa da vida privada (com ou sem entrega da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional), será normal que o seu poder de compra aumente exponencialmente por se dedicar à causa (banca) pública?

A verdade é que António Domingues passa a acumular o ordenado de banqueiro da Caixa com a reforma que, a partir de Janeiro de 2017, passa a receber do banco de onde saiu – o BPI. E que é tudo menos pequena – porque à mesma tem todo o direito face aos seus descontos contributivos. Nos tempos que correm e no país que temos, essa acumulação é que é moralmente questionável, muito mais do que o vencimento em si. Porque se somam. Com o potencial de ainda mais se somarem quando António Domingues  deixar a Caixa – independentemente dos resultados (mais uma vez, com todo o direito, porque descontou). E até pode, porventura, vir a acumular a reforma antiga com a nova reforma e o vencimento que vier legitimamente a receber de entidade terceira que queira beneficiar dos seus qualificados préstimos.

Rui Vilar – antigo presidente da Caixa que aceitou agora ser vice-presidente não executivo – abdicou do seu vencimento. Considerou que o que recebe (de reforma) é-lhe suficiente. Está, ele sim, em missão pública. É de Senhor!