Maio de 2014. João, técnico de oxigenoterapia, está de saída da casa de um doente quando sofre uma queda aparatosa. Com estava em trabalho, o processo é entregue à seguradora. O pesadelo estava apenas a começar: mais de dois anos depois, o caso ainda segue na Justiça. Ana, de 43 anos, comercial numa companhia de seguros, está há três anos a viver o mesmo filme depois de um acidente de automóvel em trabalho.
Só queriam ver as sequelas reconhecidas, e ser ressarcidos, mas nesse processo deram de caras com uma teia inesperada de relações entre seguradoras e médicos. Os casos foram denunciados ao SOL pela Best Medical Opinion. Pedro Meira e Cruz, diretor da empresa que presta serviços na área dos pareceres médico-legais, fala de «promiscuidades frequentes nas atividades clínicas e médico-legais».
João seguiu o percurso comum nos acidentes de trabalho. Depois de ir ao hospital para os primeiros curativos, o processo foi entregue pela entidade patronal à seguradora que diligenciou o acompanhamento clínico num hospital particular.
O primeiro médico diagnosticou-lhe um pulso dorido. Oito dias de baixa e estaria tudo resolvido. Mas as dores não passaram. Ao fim de dois meses, a seguradora dá luz verde a uma ressonância. O exame revela a fibrocartilagem da mão esquerda desfeita. João é submetido a uma reconstrução e está nove meses de baixa.
O passo seguinte é perceber se há danos. Quando há um acidente de trabalho, depois da alta pode haver dois desfechos: ou o sinistrado é considerado curado sem limitações ou os médicos que fazem o acompanhamento – funcionários da seguradora ou contratados pelas companhias – reconhecem sequelas que poderão dar lugar a algum tipo de reparação financeira pelo impacto na capacidade da pessoa para trabalhar.
João, canhoto e com limitações no pulso esquerdo, ia ficar com sequelas e foi enviado para o gabinete da seguradora onde é feita uma proposta de valorização das sequelas de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.
Os peritos da seguradora reconhecem-lhe uma incapacidade de 2%, que lhe daria direito a uma indemnização na casa dos 7 mil a 8 mil euros. Quando há uma valorização acima de 0%, o assunto é obrigatoriamente encaminhado para o tribunal de trabalho. João decide procurar uma segunda opinião. É aqui que entra a Best Medical Opinion, lembra, empresa que fornece serviços nesta área.
Quando termina a perícia, apontam uma incapacidade de 7,98%, que por lei deve aumentar em 1,5 pontos percentuais por não poder regressar às funções que tinha antes do acidente. A indemnização a que teria direito poderia ser não de sete mil mas de 20 mil euros. Se até aqui tudo isto poderia resultar de uma análise subjetiva, que em última instância caberia à Justiça dirimir, a procissão ia no adro.
Em tribunal, os trâmites estão bem definidos. Primeiro o sinistrado é convocado para uma avaliação – o exame singular – feita um por médico requisitado pelo tribunal (peritos dos tribunais ou do Instituto de Medicina Legal). João compareceu à chamada e a avaliação foi idêntica à da Best Medical Opinion, só faltava o acréscimo por ter de mudar de funções.
Segue-se uma tentativa de conciliação com representantes da companhia de seguros e do Ministério Público em que os intervenientes são confrontados com a perícia anterior. Quando não há acordo, o juiz ordena uma junta médica composta por um médico que representa o tribunal, um médico que representa a seguradora e um clínico que representa o sinistrado. Desta junta, presidida pelo juiz, pode resultar uma decisão médico-legal por unanimidade, maioria ou, em última instância, a decisão cabe ao juiz.
Seguradora envia médico assistente a três juntas
É aqui que o processo de João se torna kafkiano. Na primeira reunião da junta médica, começam a notar problemas. O médico representante da seguradora era o mesmo que o tinha visto no hospital e lhe tinha dito que o pulso não tinha nada de especial. O código deontológico dos médicos determina, no art.º 102.º, «as funções de médico assistente e médico perito são incompatíveis, não devendo ser exercidas pela mesma pessoa».
A defesa de João não pega logo por aí, até porque de acordo com a advogada de João, Cristina Bértolo, inicialmente o nome do médico não surgia no processo clínico. É pedido um aclaramento da avaliação e é convocada uma segunda junta. Torna a comparecer o mesmo médico, que a companhia indica ainda como testemunha no processo, uma «tripla incompatibilidade», assinala Bértolo. A defesa de João não considera as justificações suficientes e é convocada uma terceira junta, onde surge de novo o mesmo médico. Já com documentos que provam que o médico assistiu João, levantam a questão da incompatibilidade e a junta é cancelada. João não é mestre em direito, mas mostra perplexidade: «Como é que o médico que me viu nos primeiros dias, a trabalhar para a seguradora, e me disse que não era nada podia ser isento neste processo?».
Pedro Meira e Cruz admite que estas situações, com que a empresa se depara quando os peritos vão a tribunal representar os clientes, são frequentes não só nesta área mas também nos acidentes de viação. Além de médicos assistentes serem apresentados como peritos pelas seguradoras, o responsável denuncia casos em que os clínicos, perante quadros idênticos nas juntas médicas, têm «perspetivas diferentes» ao representar os sinistrados ou as seguradoras. Há ainda médicos nomeados pelos tribunais, selecionados pelo Instituto de Medicina Legal, que exercem ao mesmo tempo funções em seguradoras.
Médico dava consulta na seguradora
Foi o que aconteceu a Ana. Em 2013 sofre um acidente numa deslocação de trabalho e faz uma lesão na coluna e no ombro. Está três anos de baixa e, quando tem alta dos serviços clínicos da seguradora, segue o caminho normal e chega ao tribunal de trabalho com uma incapacidade avaliada em 15% pelo gabinete de dano corporal da companhia.
«Quando chego à primeira avaliação médico-legal do tribunal, deparo-me com um médico que me faz uma avaliação exatamente igual à da seguradora em todas as décimas, sendo esta uma área em que existe sempre alguma margem de interpretação». Além da avaliação, que acabaria por contestar com um parecer da Best Medical Opinion, achou o discurso do clínico estranho. «Era suposto ser uma avaliação da minha situação clínica mas o médico começou comparar a legislação portuguesa com a brasileira e a dizer que em Portugal se valorizava muito mais as pequenas incapacidades».
Isto acontece em abril de 2015, Ana tinha regressado ao trabalho dois meses antes mas não aguentou o ritmo – acabaria por ser diagnosticada com dor crónica, decorrente da lesão no acidente. Depois de insistir com a seguradora para o processo ser reaberto, foi chamada ao gabinete de dano corporal da companhia em novembro. Mal entra, reconhece a cara: era o médico da perícia do tribunal. «Quando lhe perguntei se tinha sido ele a fazer-me a perícia no Instituto de Medicina Legal, primeiro não respondeu. Perguntei de novo e disse-me que naquela zona só fazia autópsias, quando eu nunca lhe tinha dito o sítio».
Quando comparou as assinaturas nos relatórios dos dois exames não teve dúvidas. O SOL confirmou nos documentos que foi o o médico a fazer a perícia para o tribunal a vê-la, desta vez a trabalhar para a seguradora. «É imoral. Ninguém pode vender uma opinião isenta ao tribunal trabalhando para a mesma seguradora. Mesmo que não me tivesse visto mais, quando fez a perícia ia dar uma avaliação diferente da que tinham dados os colegas?», questiona Ana.
Cristina Bértolo admite que situações destas serão frequentes. «Deveria haver uma lista pública dos médicos que trabalham diretamente para as seguradoras para situações destas não possam acontecer». Pela experiência da advogada, há mais problemas a resolver. Numa das juntas de João, por exemplo, a juíza que devia presidir e que, no final do processo, tem a última palavra, não estava na sala. «É prática corrente em muitos tribunais, dada a insuficiência de juízes», alerta. As situações que podem pôr em causa a imparcialidade dos processos não ficam por aqui. Além dos peritos da junta, chegam a estar na sala outros médicos das juntas seguintes a opinar sobre os casos.
«As promiscuidades são frequentes e estão instituídas como prática corrente das seguradores que querem pagar o menos possível», denuncia a advogada, que defende que devia ser obrigatória a presença de um advogado do sinistrado desde o início do processo, recorrendo-se a advogados oficiosos quando há falta de meios. «Um sinistrado sozinho muitas vezes nem sabem quem deve ou não estar na sala. Isto só é possível porque ultimamente assistimos ao afastamento dos advogados de processos onde a sua constituição era, ou deveria ser, obrigatória e agora não é por uma questão economicista».
Meira e Cruz diz que na Best Medical Opinion é regra só contratarem médicos sem ligações a seguradoras e, tal como Bértolo, defende que devia haver essa obrigação legal, até porque ainda há clínicos que estranham o pré-requisito. «Uma médica perguntou-me porquê. Respondi-lhe apenas: ‘é óbvio o motivo. Consideramos que não se pode estar nos dois campos da batalha’». Não quer livrar-se da concorrência das perícias pedidas ao Instituto Medicina Legal ou a médicos particulares, apenas pretende um maior escrutínio no sistema. «Quando intervimos, a avaliação dos nossos peritos pode ser mais favorável para o sinistrado ou não mas é isenta. Todas as entidades que direta ou indiretamente se dedicam ao exercício de atividades periciais têm a obrigação ética, moral e social de ter mecanismos que garantam a integridade das atividades e assegurem a inexistência de incompatibilidades», defende.
justiça de ricos e pobres
José Manuel Silva, bastonário dos Médicos, disse ao SOL desconhecer este tipo de situações, apelando à sua denúncia. O responsável sublinha que os médicos têm o dever de escusa perante funções incompatíveis, podendo ser punidos. «Um médico assistente que comparece três vezes a uma junta médica justificaria a abertura de um inquérito».
Enquanto o dever de escusa parece não ser suficiente, Ana e João não denunciaram os médicos à Ordem, aguardando o desfecho dos casos. A advogada diz ainda não o ter feito por estar à espera do fim do processo no interesse do cliente, mas já abordou genericamente o assunto junto bastonária Elina Fraga. Bértolo defende que ambos os bastonários deveriam tomar uma posição concertada, dando exemplos da justiça onde há mais rigor. «Num processo crime em que um juiz de instrução aplique uma medida de coação a um arguido, a lei impede que esse juiz seja o de julgamento para que o julgamento se faça com imparcialidade».
O SOL tentou perceber se o Ministério da Justiça tem conhecimento destas situações, mas não teve resposta até à hora de fecho desta edição. Já a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, que regula as seguradoras, disse desconhecer tais denúncias. O Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses mostrou-se mais desperto para a problemática: informou que os contratos que faz com peritos têm uma cláusula de impedimento que os proíbe de terem atividades periciais como representantes de seguradoras ou sinistrados na mesma comarca.
O Instituto admite contudo que não existe um escrutínio sistemático da atividade particular dos médicos. «Pontualmente, quando toma conhecimento de alguma situação o perito é afastado», informou o INMLCF, revelando que desde que o atual conselho diretivo tomou posse (2014) houve «dois ou três» afastamentos e médicos que se autoexcluíram.
João já gastou milhares de euros entre perícias médico-legais e advogados. A cada impasse, a despesa continua a somar. «Qualquer dia já terei gasto o que vou receber na indemnização. Se uma pessoa não tiver algum fundo em que consiga mexer ou não saiba usufruir dos seus direitos, as empresas acabam por lucrar».
Bértolo também o lamenta e diz que este é mais um exemplo de como o país tem ainda uma justiça de ricos e de pobres e devia proteger mais o interesse dos cidadãos. «Só quem tem dinheiro para se defender consegue ter justiça».
*Uma vez que os processos ainda decorrem, o nome das vítimas é fictício. Os intervenientes pediram confidencialidade sobre a identidade das seguradoras e dos médicos envolvidos pelo mesmo motivo.