Carlos Zorrinho confessa que sempre gostou de política, mas foi graças a António Guterres que passou de “professor universitário que gosta da política” a “político que continua muito ligado à universidade”. Desde então já passou por vários governos socialistas até chegar ao Parlamento Europeu, onde ainda hoje se encontra.
Antigo líder parlamentar de António José Seguro, não se arrepende de ter apoiado o ex-secretário-geral do PS na altura das primárias. Isso não o impede agora de apoiar António Costa, a quem reconhece “grande capacidade negocial”. E até pode ter estranhado, numa primeira fase, a atual solução governativa, mas cerca de um ano depois parece estar rendido.
Para o eurodeputado do PS, a imagem de Portugal na Europa ficou reforçada com o atual governo e assegura que alguns dos seus colegas olham com “enorme curiosidade” para o caso português. Austeridade? Com este governo, “jamais”, garante.
Foi líder parlamentar de António José Seguro. Pouco tempo depois das eleições chegou a afirmar que “os eleitores do PS não perdoarão uma troca dos seus votos por cargos de poder”. Como olha para esta solução governativa?
Ao fim destes 12 meses considero que os eleitores do PS têm razões para estar satisfeitos. Os seus votos têm sido trocados por medidas políticas globalmente positivas. Os portugueses recusaram nas urnas a continuação da austeridade e António Costa soube interpretar muito bem o sentimento dos portugueses. Foi muito interessante como a partir daí, o PS e António Costa geraram uma alternativa legítima.
Mas, como nós sabemos, o PCP e o BE olham para a Europa de uma maneira muito crítica. Até que ponto isso dificulta o trabalho dos eurodeputados do PS?
Até hoje, e como presidente da delegação do PS no Parlamento Europeu, não senti nenhuma dificuldade e uma das questões importantes tem a ver com a génese do acordo que foi feito. É um acordo de incidência parlamentar para o governo de Portugal e o acordo não esconde nem refere as divergências que existem no plano europeu. É muito importante clarificar isto.
A sua relação com os outros eurodeputados portugueses sofreu alguma alteração desde então?
Tenho uma excelente relação com os meus outros vinte colegas parlamentares europeus. Tenho uma excelente relação com a eurodeputada do BE [Marisa Matias] e os outros três eurodeputados do PCP, mas não temos nenhum acordo. Não temos nenhum acordo para discordar nem nenhum acordo para concordar. Raramente concordamos, sobretudo com o partido comunista, mas isso não cria nenhum problema porque no acordo governamental está salvaguardado o cumprimento por parte do país dos compromissos que tem ao nível europeu.
A imagem de Portugal mudou de alguma maneira na Europa desde que temos esta solução governativa?
Uma das diferenças ao fim deste ano é que Portugal, que era um país em certa medida envergonhado de si próprio – Paulo Portas chamou-lhe um protetorado -, voltou a ter uma voz forte na Europa e no mundo. Portugal voltou fazer parte do grande debate sobre as alternativas na Europa Há uma alternativa que não é a da austeridade, que é uma alternativa com sensibilidade social, com crescimento, com emprego, e Portugal é um dos países-chave na definição dessa alternativa. O sentimento sobre Portugal é muito forte, nós temos um peso político na realidade europeia muito acima do nosso peso económico e do nosso peso demográfico.
Mas não há quem encare este governo com desconfiança?
Como sabe, está a decorrer o diálogo estruturado no Parlamento Europeu sobre se se deve ou não aplicar sanções, neste caso são suspensões, nos pagamentos em relação aos fundos estruturais. O processo está ainda em curso, mas eu assisti à primeira reunião que juntou as comissões económicas e de desenvolvimento regional e houve uma consonância enorme de que Portugal fez um grande esforço, está a atingir resultados e seria um erro incompreensível se se viesse a aplicar qualquer tipo de norma suspensiva. Coisa que aliás acredito que não será aplicada. A prova de que Portugal conseguirá em 2016 cumprir as regras do tratado do ponto de vista do défice e o bom acolhimento geral que o Orçamento do Estado para 2017 teve nas nações europeias conduzirá a que se verifique uma suspensão zero.
Como olham os seus colegas eurodeputados para a solução governativa portuguesa?
Os meus colegas eurodeputados do grupo socialista democrata olham com uma enorme curiosidade, fazendo perguntas e alguns deles tentando replicar, chegando à conclusão que as condições objetivas não são exatamente as mesmas, como se verificou em Espanha.
Nós damos com regularidade informação sobre a situação em Portugal e de facto a aceitação é muito grande.
Recentemente, além de António Costa, também o Presidente da República esteve no grupo e no Parlamento e isso foi muito importante também para transmitir e receber uma imagem de confiança. Marcelo Rebelo de Sousa tem tido um papel muito importante, assumindo um registo de confiança no país e de motivação dos portugueses independentemente dos responsáveis pela condução operativa – e neste momento é o partido socialista, com o apoio do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista.
Agrada-lhe a política de proximidade do Presidente da República?
Marcelo Rebelo de Sousa é claramente um Presidente de nova geração e eu saliento a sua proximidade com os portugueses. A sua vontade de promover Portugal no mundo de forma direta e indireta ajuda qualquer governo. Da mesma maneira que um governo que cumpre as regras, que também tem proximidade com os portugueses e tem políticas inovadoras ajuda o Presidente da República. Isto não é um arranjinho político, é o resultado de uma visão de confiança sobre Portugal que conflui.
Como analisa o trabalho de António Costa enquanto primeiro-ministro e secretário-geral do PS?
António Costa tem demonstrado uma capacidade negocial muito elevada, uma capacidade de tirar partido do potencial que o país tem, de procurar encontrar na sociedade portuguesa aquilo que une os vários atores e não espicaçar aquilo que os divide, como fazia o governo anterior. Tem-se vindo a afirmar como um primeiro-ministro com uma grande qualidade e com um perfil muito adequado aos desafios que Portugal agora enfrenta.
Está arrependido de não ter apoiado Costa quando este desafiou a liderança de António José Seguro?
Não, não estou nada arrependido. Cada decisão que tomamos, tomamos numa circunstância concreta. Naquela circunstância, o que defendi foi que deveria ter sido dada a António José Seguro a possibilidade de disputar eleições porque tinha ganho esse direito político num processo democrático dentro do partido. Não foi assim, houve primárias, houve uma escolha, António Costa está a governar e está a governar bem e ainda bem que assim é. Em nenhum momento desejei que António Costa falhasse só por não o ter apoiado. A partir do momento em que ele foi eleito secretário-geral do PS – e depois primeiro-ministro – passou a ser, naturalmente o meu secretário-geral.
Em vários países da Europa estamos a assistir a uma crise dos partidos social-democratas e à ascensão dos partidos de extrema-direita. O que pode ser feito para inverter esta situação?
Estou muito preocupado com a situação europeia. Acho que a cimeira de Roma, que se vai realizar por ocasião dos 60 anos da assinatura do Tratado de Roma, em março do próximo ano, será ou um ponto de viragem – que é o que eu desejo – ou um ponto de não retorno.
Neste momento, muitas pessoas sentem-se derrotadas não tanto pela Europa, mas pelo processo de globalização desregulado, que gerou enormes desigualdades. Pessoas que perderam a segurança em relação aos seus empregos, aos seus projetos de vida e que têm tendência a culpar os partidos e as instituições que estiveram mais próximas delas neste processo. Há uma tendência para haver uma votação em partidos mais nacionalistas.
Mas é um caminho sem retorno?
Não. Estou convencido que nos países em que os partidos nacionalistas ganham eleições, afirmando que se saírem da Europa tudo se resolve – e de facto nada se resolve porque o problema não é esse -, as coisas reverterão e eles voltarão a perder. Exceto – e isso já aconteceu no passado demasiadas vezes – se esses partidos anularem a própria democracia e não criarem condições para serem eles próprios julgados.
E os povos entendem esses perigos?
Neste momento, é muito importante que todos os europeus compreendam que é preciso defender de forma radical a democracia.
Voltando à cimeira de Roma em 2017. O que é preciso acontecer para mudar o rumo?
Naquela cimeira de Roma alguma coisa vai ter de acontecer e a minha esperança é que se possam conjugar vários interesses. Devíamos conseguir conjugar uma política comum de segurança e defesa; a construção, finalmente, de uma união económica e monetária, com orçamento europeu e o lançamento de um mecanismo de convergência para que possa haver um desenvolvimento mais equilibrado à escala europeia e que beneficie todos. Se conseguirmos estes três pilares, conseguimos ter um ponto de viragem na cimeira de Roma e voltar a ter a Europa com um papel muito importante.
A Europa perdeu um pouco a oportunidade Obama para fazer uma coligação pela regulação da globalização.
Porque não fomos um parceiro fiável para os EUA?
Em certa medida, os EUA não viram na Europa um parceiro fiável, unido e com uma ideia clara daquilo que queria. Nos últimos anos não temos tido uma política externa verdadeiramente comum, partilhada e sustentada.
Há perspetivas diferentes como nas grandes questões geoestratégicas, nos grandes focos de conflito. Daí a importância de concluir a união económica e monetária, de criarmos um código de convergência para que a Europa seja um processo vantajoso para ambas as partes.
A Europa levou uma grande machadada com o Brexit. Como vai ser a partir de agora o futuro da UE?
A saída do Reino Unido não é boa nem para a Europa nem para o Reino Unido. Mas teve a vantagem de forçar a Europa a mexer-se. Se alguma coisa aprendi nesta minha experiência como deputado europeu é que já não acredito muito nas soluções de grande compromisso, em que cada país põe uma ou duas palavras e chega um texto assinado por todos e nada acontece porque ninguém o quer verdadeiramente.
E qual é a solução?
Sempre defendi uma Europa de geometria variável. Uma Europa onde as cooperações reforçadas, uma figura muito desenvolvida no Tratado de Lisboa, possam ter um papel cada vez maior. É cada vez mais difícil ter 28 países todos de acordo numa política, mas há políticas que são muito importantes.
Pode dar exemplos?
Schenghen é um exemplo de uma cooperação reforçada, mas podemos multiplicar este processo para muitos outros. Uma aposta na mobilidade elétrica, por exemplo. Há ainda países na UE com uma grande dependência energética do carvão e não estão interessados em apostar na mobilidade elétrica. Vamos ficar todos à espera? Não. Há cinco ou seis países que dizem que vão fazer uma aposta diferente e há 20 países que dizem que vão fazer uma grande cooperação.
O caminho passa pela cooperação reforçada, é isso?
Sim. É este o tipo de Europa que seria interessante. Acredito muito mais num processo em que as prioridades de cada um são respeitadas do que numa Europa mínimo denominador comum. Temos verificado que o mínimo denominador comum é frouxo e está a destruir um dos mais extraordinários projetos que a humanidade construiu.
Mas estarmos a criar estas pequenas uniões dentro da própria UE não é desrespeitar o conceito de UE?
A União Europeia nasceu há 60 anos com muito poucos países. Hoje somos 28 países. Uma organização com 28 países não pode ser igual à que era com seis, nove, 12 ou 15. É preciso ter flexibilidade interna sem perder o essencial. É esta a possibilidade de geometria variável, que permite dar flexibilidade interna sem se perder o essencial porque os valores, os princípios gerais, isso está lá.
A Europa está com um crescimento estagnado há já algum tempo. O presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, prometeu que iria pô-la a crescer. Acredita nesta promessa?
Acredito que quando a Europa se transformar num espaço previsível e atrativo, quando os investidores tiverem mais confiança no quadro institucional, no caminho que a Europa vai percorrer, o investimento aumentará.
A questão dos refugiados e dos migrantes é um dos problemas mais prementes da atualidade. O que está fazer a Europa para lidar com esta situação?
A solução é muito complexa. A Europa tem de ter uma política inteligente de emigração como outros países no globo tiveram. A Europa precisa de gente. É preciso atrair mais pessoas para a Europa porque com mais gente, cria-se também mais oportunidade de emprego para os que cá estão. É necessário uma política em que se atraem pessoas com um projeto para viver na Europa e cujos projetos são úteis e criam dinâmica na Europa.
E onde entra então a questão dos refugiados?
O nosso grande objetivo deve ser acolhê-los de uma forma digna, humanista e criar o mais depressa possível condições para que eles possam regressar em paz à terra deles. Quando falo em política de segurança e defesa, não é sobretudo uma política fortaleza, é uma política de relacionamento mais efetiva nos territórios de conflitos para evitar que, no futuro, estes voltem a repetir-se.
Muitos associam refugiados a terrorismo.
Eu não gostaria de confundir refugiados com terrorismo, mas a verdade é que eles têm acontecido ao mesmo tempo. Acontecendo ao mesmo tempo, há sempre a possibilidade, até populista e não só, de se fazer alguma interligação. É muito importante que a Europa reforce a sua cooperação ao nível a segurança, mas também ao nível da troca de informações. É muito importante que haja informação trocada entre os vários países, as várias polícias e dentro dos próprios países.
E esse caminho percorre-se como?
A questão-chave é como conseguimos segurança e privacidade. Só se consegue se tivermos muitos dados: termos tantos dados que conseguimos perceber determinados tipos de movimentos suspeitos sem ter de se ver a cara das pessoas e invadir a privacidade. Se trabalharmos com pequenas quantidades de dados, as pessoas não ficam mais protegidas. Com poucos dados, vê-se a cara das pessoas, vê-se a vida das pessoas e isso não há direito.
O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, disse que Portugal ia no bom caminho até a aparecer a geringonça. O que achou desta afirmação?
Esta declaração tem duas dimensões. A primeira, é que ele só disse isso para atirar areia para os olhos porque o Deutsche Bank estava com grandes problemas. Em segundo lugar, como socialista e social-democrata, não posso nunca achar que o bom caminho é o caminho de alguns indicadores macroeconómicos. Para mim, o bom caminho é o da expectativa das pessoas, da capacidade das pessoas se realizarem. Desse ponto de vista, Portugal estava no mau caminho e começou a ficar no bom caminho depois de esta solução governativa ter entrado em funções.
António Guterres, de cujo governo foi secretário de Estado Adjunto da Administração Interna, acaba de ser eleito secretário-geral da ONU. Acha que o ex-primeiro-ministro é a pessoa certa para liderar a ONU?
Com certeza. Sempre gostei muito de política – nos meus tempos universitários fui presidente da Associação de Estudantes na Universidade de Évora -, mas era fundamentalmente um professor universitário que gostava de política. Foi António Guterres, quando foi eleito primeira vez secretário-geral do PS, que me desafiou para fazer parte do seu secretariado. Foi ele que transformou um professor universitário que gosta da política num político que continua muito ligado à universidade. Tenho uma enorme admiração pela capacidade de trabalho, pelos valores, pelo sentido humanista, pela sua cultura e pelo seu conhecimento. António Guterres é um homem que tem uma enorme capacidade de diálogo – coisa que nem sempre foi bem vista em Portugal. Ele dialoga porque compreende. Tenho uma grande expectativa, ele já é e será uma enorme mais valia para a ONU.
Foi também secretário de Estado da Energia e da Inovação quando José Sócrates era primeiro-ministro. Ficou surpreendido de o ver envolvido neste caso com a justiça?
Tive um enorme orgulho e fiquei com uma enorme admiração pela determinação, pela visão estratégica com que José Sócrates exerceu as suas funções de primeiro-ministro. Depois de ter deixado de ser primeiro-ministro, são questões de justiça que não têm ainda qualquer conclusão.
A austeridade terminou ou ainda corremos o risco de regressar a isso?
Nós estamos a travar uma batalha muito importante. Fico sempre muito incomodado quando se fala de Bruxelas porque não há Bruxelas, há várias Bruxelas. Há pelo menos duas: a Bruxelas que quer que a austeridade continue e a Bruxelas que acha que a austeridade é um caminho errado para o futuro da Europa e dos europeus.
Essas duas Bruxelas estão em confronto?
Todos os dias travamos esta batalha e há uma coisa que lhe posso dizer: a austeridade em Portugal porque isso é o desejo de um governo português, com este governo, jamais. Há momentos de dificuldades na vida dos países. Nós não estamos livres de viver momentos de dificuldade, mas estamos livres de alguém dizer que a austeridade é o seu programa e que quer ir além da troika e que a austeridade é boa. A austeridade é uma doença: ninguém está livre de adoecer, mas desejar adoecer é masoquismo.