Em tom evangélico, a roçar o profético, José Sócrates recebeu os fiéis que foram ouvi-lo num espaço do CCB dizendo-lhes «a vossa presença tem significado político». O pretexto era a apresentação do segundo livro, que assina por baixo, com considerações sobre o carisma, uma matéria acerca da qual quer convencer-se que refletiu, e quer convencer-nos que não pôs o espelho à frente.
Reza a crónica que, entre os devotos presentes, não estavam nas primeiras filas alguns notáveis que se chegaram à frente há três anos no Museu da Electricidade, para caucionarem a tese sobre A Confiança no Mundo. Sócrates mudou de sítio, mudou de tema, mas, para sobressalto de quem sabe do que a casa gasta, não mudou de ideias para levar a água ao seu moinho.
O país que resiste a estas investidas (e que não é tolo) interroga-se sobre a próxima proeza, enfunada pela imprensa que lhe dá guarida acrítica – e pela TVI que o trata com o desvelo próprio de quem tem por ali amigos.
Desta vez, o ex-procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e o ex-presidente do Supremo, Noronha do Nascimento, não compareceram ao evento. O que foram baixas de vulto. E em lugar do ex-presidente Lula da Silva – vindo então expressamente do Brasil -, Sócrates não encontrou melhor para falar da obra do que um deputado do PS, que fez carreira na juventude do partido, e se distinguiu episodicamente por discordar de António Costa e do ato fundacional da geringonça. Um indisfarçável downgrade.
Reconheça-se, contudo, a missão ingrata do apresentador, que competiu com «a comichão na língua» sentida por Lula à mesa do Museu da Eletricidade, incómodo que o obrigou a falar durante meia hora, dissertando sobre as alegadas virtudes do ensaio assinado pelo «companheiro». Mário Soares, já na curva descendente da vida, ainda se mostrou «impressionado» com «um livro excecional». Eis como se constroem os currículos.
Para o homem comum, menos dado a filosofias, se consultar a Wikipedia ficará a saber que o carisma é «uma habilidade inata de alguns seres humanos de conseguir encantar, persuadir, fascinar ou seduzir um outro indivíduo, através da sua forma de ser e agir».
Percebe-se, por esta síntese elementar, que Sócrates se tenha deixado seduzir pelas cintilações do carisma, que algumas boas almas teimam em lhe atribuir. Depois, graças ao Público, ficámos a saber que, para o autor – em jeito de autocrítica não assumida -, «tudo o que é apenas ensaiado e fabricado acaba por soar a falso», pois «assim que o público percebe que por detrás do pano nada existe, o personagem torna-se vazio».
Tem razão. O problema é que a peça acabou há muito, mas o ator resiste a sair do palco, tomando a claque por casa cheia. Afinal, quando Salazar caiu da cadeira, os seus ‘ministros’ continuaram a visitá-lo com os papéis do ‘despacho’.
Em estado continuado de negação, Sócrates comporta-se como se, politicamente, não devesse explicações ao país e se, como cidadão, não estivesse a contas com a Justiça.
Por aqui pode avaliar-se a espinhosa tarefa que coube a Sérgio Sousa Pinto, da qual procurou desobrigar-se com uma flor de estilo, sustentando, enfático, estar-se perante «um livro profundamente do seu autor». Não fosse alguém ter dúvidas.
Segundo os relatos, Sócrates enquadrou o carisma com os ‘recados’ do costume. Sem serem convidados, pairaram no CCB o juiz de instrução, que continua titular do processo – apesar dos empurrões tentados -, e o Ministério Público, que não desarma do novelo da investigação.
Sócrates conhece como poucos os fios da meada da auto vitimização e move-se como ‘peixe na água’ a zurzir na Justiça, apostando na descredibilização do processo como método de defesa. Não tem nada a perder e a fanfarronice é um suplemento de alma que lhe alimenta a presunção carismática. E que rende títulos em jornais, amplificados pelas televisões.
Do outro lado do Atlântico, incriminado também por suspeitas graves, o seu amigo Lula navega nas mesmas queixas, e acusa a Justiça de perseguição política. Ambos reivindicam, afinal, uma espécie de salvo-conduto, com blindagem à prova de qualquer acusação. Um estatuto acima de toda a suspeita, mesmo que as suspeitas se acumulem.
Em ambos há a manifesta convicção de que a sua palavra passa sempre por verdadeira, mesmo quando está em conflito com a verdade.
Quantas vezes a confiança no mundo ficou abalada por gente que lançou as sementes da ruína e sacrificou povos às suas ambições?
Quantas vezes comprometemos a democracia arrastados por feirantes de ocasião, com arte para impingirem histórias de cordel? A História está cheia de histórias. Umas trágicas, outras grotescas. O carisma tem labirintos perversos. E enganadores. Do livro já nem se fala…