Elza Soares. “‘A Mulher no Fim do Mundo’ é uma mulher que não está no fim de nada”

A cantora brasileira de 78 anos chega a Portugal para fazer dois concertos poucos dias depois de ter ganho o Grammy Latino na categoria de melhor álbum de MPB, com “A Mulher do Fim do Mundo”

Confessamos o nosso espanto quando pomos a tocar “A Mulher do Fim do Mundo”, o último disco da brasileira Elza Soares. Reconhecíamo-la como figura icónica da música popular brasileira, nome ligado ao samba e ao carnaval do Rio de Janeiro, só que não era isto que esperávamos quando nos falaram no seu novo disco – e estamos sempre a ser surpreendidos.

Aos 78 anos, Elza carrega na voz meio rouca, às vezes falhada, uma história de vida que podia contar já dois séculos, tal a quantidade de episódios pelos quais passou. Um casamento aos 12 anos, um primeiro filho aos 13, seguindo-se mais quatro – um deles que não resistiu à fome e outro que foi entregue para a adoção. Aos 18 anos Elza ficaria viúva, já que o seu primeiro marido morreu de tuberculose. Pelo meio da sua carreira na música, que começou com a participação num programa de rádio, em 1953, que lhe valeu trabalho com várias orquestras brasileiras, há mais histórias de amor, nomeadamente com o famoso “anjo das pernas tortas”, o futebolista brasileiro Mané Garrincha, com quem esteve casada 11 anos, período em que perdeu a sua mãe – num acidente de viação num carro conduzido por Garrincha. Em 1986, perderia outro filho, com nove anos, num outro acidente de automóvel.

É um novelo que se vai desenrolando e que ganha outro sentido quando ouvimos, com a voz castigada, mas cheia de vida, as canções de “A Mulher do Fim do Mundo”, o seu 34º trabalho de estúdio, que é também o primeiro disco de canções inéditas, e que lhe valeu, na semana passada, o primeiro Grammy da sua carreira.

Elza Soares atende-nos o telefone num hotel em São Paulo. Queremos falar de tanta coisa, mas Elza, delicada e simpaticamente, fala apenas do que quer. As respostas são curtas, objetivas, às vezes enigmáticas – foge aos detalhes, como se não tivesse tempo para isso. Os 78 anos de vida, os livros de história ou o documentário “My Name Is Now”, de 2014, realizado por Elizabete Martins Campos, que falem por si. Melhor ainda: que a sua música fale por si.

Li numa entrevista sua, à revista brasileira “Quem Acontece”, que queria muito ganhar o Grammy Latino. E que se ganhasse iria “linda e maravilhosa” até Las Vegas receber o troféu. Agora que já sabe que ganhou, essa viagem ainda faz parte dos planos?

(Ri-se) Ai… Faz parte dos planos sim. Mas não sei se vou lá receber esse prémio. Estamos a conversar, eu com o Juliano [Almeida, produtor] para saber como é que vai ser a cerimónia.

A Elza canta samba desde pequena. “A Mulher do Fim do Mundo”, o seu primeiro álbum com canções inéditas, vem com samba, mas traz muito mais do que isso. É um disco filho do seu samba?

É um disco completamente diferente do que eu já fiz. É um álbum que veio com uma alma de caridade, com música muito moderna e atual. E com uma batida totalmente diferente do samba. Não sei se é um samba-rock, um samba-funk… é bem diferente.

Mas define-o como sendo samba-rock. Tudo o que faz é samba?

Não. Tem sambas, sim, mas o que eu faço às vezes não é samba. É uma tirada diferente. Eu gosto muito daquilo que é novo: busco o novo, sempre.

O disco foi feito com vários músicos de uma cena paulista mais contemporânea: Cacá Machado, Guilherme Kastrup, Romulo Fróes e Rodrigo Campos. Identifica-se com as ideias mais vanguardistas da música?

Sim, claro. Porque essa cena mais vanguardista pensa. Acho muito interessante poder pensar para fazer.

E em “A Mulher do Fim do Mundo” há muitas questões para fazer a pensar.

Sim, fala de sexo. De negritude e de vida. Fala de tudo.

Quando Elza diz que fala de tudo, quer dizer que “A Mulher do Fim do Mundo” é um disco de renascimento, de revolta e de inconformismo. É contra a violência doméstica (“Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, em “Maria da Vila Matilde”). É contra a homo e a transfobia (“Benedita”) e contra o racismo. Não é pelo amor: é pelo sexo (“Pra Fuder”).

Porquê esses temas nesta altura da vida?

Porque têm muito a ver comigo. E é por isso que eu gosto de cantar.

Há uma mente mais aberta na sociedade para escutar essas temáticas?

Acho que sim. A mentalidade está bem aberta. Não só do Brasil, mas do mundo. Basta ser um pouco inteligente para os entender.

O que é uma mulher do fim do mundo?

É uma mulher que não está no fim de nada. É uma mulher que está num novo mundo, num novo ciclo. Acaba uma coisa e vem outra, sempre para melhor.

Canta histórias de mulheres que se revoltam. Por exemplo, no tema “Maria da Vila Matilde” fala de uma mulher que se vira contra o homem que lhe bate.

É uma música que é também uma denúncia. Denuncia a mulher que passa por desagrados, sufocos. Perde a privacidade dentro de casa. E ela tem que sair para denunciar!

Além de ameaçar o homem com polícia, água a ferver e até um cão, Maria ameaça também chamar a mãe do homem e fazer-lhe queixas do filho. Um homem, mesmo adulto, tem sempre medo de ouvir um raspanete ou de levar uma sova da mãe?

A mulher tem sempre muita força. Se é mulher, está viva. E se está a sofrer, tem que ir buscar socorro e proteger-se.

“Daria a minha vida a quem me desse o tempo”, canta em “Dança”, um dos temas de “A Mulher do Fim do Mundo”. Às vezes a cantora parece que quer recuperar esse tempo. Noutras vezes, esta mulher de 78 anos, diz que só olha para o tempo que aí vem. Elza Soares é uma mulher do fim do mundo, mas que não está no fim de nada.

Porque é que só ao fim de 33 discos quis fazer um álbum de inéditos?

Porque agora é que foi o tempo.

Foi só o tempo ou houve outra vontade da sua parte?

Não sei explicar muito bem isso, não. Mas é uma vontade, também.

Este é o disco que mais gosta da sua carreira?

Por enquanto, é. Porque pude expressar-me, dizer o que tenho vontade. Tenho abertura para tudo isso. Esse álbum foi um álbum muito feliz – tão feliz que ganhei o Grammy!

Não acredito que goste mais deste disco só porque ganhou um Grammy com ele.

Não. Mas fiquei tão feliz com ele que fez-me ganhar o Grammy.

Este disco tem feito muita gente recordar os seus 60 anos de carreira e 73 de vida. A Elza também reflete muito na sua história?

Penso na forma como caminhei, no que eu mandei para chegar até aqui. Só que eu sou mais de olhar e seguir em frente. O que vai lá para trás já passou, mas vou em frente a pensar no que foi preciso fazer para chegar aqui.

Arrepende-se de muita coisa?

E quem é que não se arrepende? Mas eu não me arrependo de nada, não.

E saudades?

Todo o mundo tem.

É como o arrependimento.

Isso mesmo. Mas tenho saudades da minha mãe e dos meus filhos.