Pré-verdade

O valor dos pagamentos ao FMI será de metade do do ano passado e menos de um terço do previsto. Mas deitaram-se foguetes…

Nos EUA a palavra do ano de 2016 é ‘pós-verdade’, um termo orwelliano para descrever uma situação em que as emoções importam mais que os factos no debate político. Mas este não é um fenómeno exclusivo dos EUA. Em Portugal, temos muitos e bons exemplos recentes disso.

Portugal tinha planeado fazer um pagamento antecipado ao FMI de 6,6 mil milhões de euros até ao final de 2016. Em setembro soubemos que esse pagamento foi reduzido para 4 mil milhões devido à recapitalização da Caixa. Na semana passada o Governo anunciou triunfalmente um pagamento antecipado ao FMI de 2 mil milhões de euros, assim como o adiamento da recapitalização da Caixa para 2017. Confuso? Tem bons motivos para isso. 

Um pagamento de 6,6 mil milhões passa para 4 mil milhões por causa da Caixa. A capitalização da Caixa não ocorre e, em vez de o pagamento regressar aos 6,6 previstos, passa para 2. Assim, sem mais explicações. 
O valor de pagamentos este ano, e respetiva poupança de juros, será menos de metade do realizado no ano passado. Mas no meio da confusão, este anúncio passou por ser uma boa notícia. 

Insatisfeitos com o ranking das escolas baseado nos resultados dos exames, o Ministério da Educação resolveu criar um novo. Não se conhecem ainda os critérios, mas o Ministério já anunciou alegremente que neste novo ranking haverá mais escolas públicas no topo, incluindo algumas anteriormente mal classificadas. O Valsassina treme com o número de pais que, acreditando no novo ranking, irão transferir os seus filhos para a EB 2/3 da Brandoa no próximo ano letivo.

Na última semana o país mediático ficou em êxtase com um crescimento do PIB de 0,8% no trimestre de Verão, o melhor desde 2013. Comentadores eufóricos anunciaram que estes números são a prova de que o modelo económico do Governo resultou.

Os analistas ignoraram que este crescimento diz respeito a apenas um trimestre e que foi baseado em exportações, quando o modelo económico do Governo aposta no consumo interno. Mesmo com o excelente trimestre de Verão, o crescimento do PIB de 2016 ficará muito abaixo de 2015 e será cerca de metade do que Centeno previu no plano com que o PS se apresentou a eleições. Ironicamente, até ficará abaixo do que esse mesmo plano previa que crescesse caso o PS não fosse Governo. 
Na era da pós-verdade, um crescimento abaixo do do ano passado, metade do prometido por Centeno e assente num modelo oposto ao da esquerda, é tido como um sucesso do Governo. 
Apesar do evidente fracasso, já não se via tantos surtos de êxtase em torno de estatísticas económicas pontuais desde o período 2009-11. Num desses momentos, em janeiro de 2011, uma manchete anunciou que o FMI já não viria. Quatro meses depois, o FMI estava a aterrar em Lisboa. 

Nos EUA, a era da ‘pós-verdade’ foi alimentada por ativistas radicais e sites de notícias falsas. Por cá, isso não é necessário: basta um conjunto de comentadores sérios dispostos a repetir acriticamente a mesma narrativa. Ao contrário dos EUA, por cá não reparamos na transição para a fase da pós-verdade. Provavelmente porque nunca passámos pela fase da verdade: estamos há anos em pré-verdade.