Gallant. “Sabes aquelas coisas que contas ao teu terapeuta? É isso que quero cantar”

Um Coliseu dos Recreios boquiaberto a aplaudir um dos maiores falsetes que por lá já passou. Foi assim a passagem do músico norte-americano, considerado uma das grandes promessas do r’n’b, pelo Vodafone Mexefest. Next big things há muitas, mas esta é especial

Não será fácil para um artista carregar os tão habituais epítetos dos dias de hoje. São tantas as publicações que quando se escuta uma música especial de um novo compositor, todos se apressam a espalhar aos quatro ventos que esta é que é the next big thing. Puxa-se logo das comparações com nomes que têm carreiras de décadas, recheadas discografias, e que às vezes já nem estão entre nós, mas que mesmo assim continuam a viver pelo legado que deixaram. São vários the next big thing que aparecem nas listas dos ‘Artistas A Que Devemos Prestar Atenção’ que depois, invariavelmente, aparecem nas listas de ‘Melhores do Ano’.

No mundo do r’n’b e da soul despertam múltiplos talentos num eixo que se traça entre Los Angeles, Nova Iorque e Londres. E este fim de semana, em Lisboa, no Vodafone Mexefest, estiveram dois: Gallant e NAO. Mas o norte-americano Christopher Gallant, cantor e compositor crescido em Columbia, no estado de Maryland, não quer saber dessas histórias de promessas, listas e tabelas. Aos 24 anos, diz que só quer usar a música como a panaceia para problemas, inquietações, angústias e tristezas. “A música é algo que sempre fiz porque me faz sentir bem, porque me leva para um estado mental melhor. Porque permite-me escavar e conversar comigo próprio sobre os meus problemas”, diz-nos Gallant, no seu camarim do Coliseu dos Recreios, de paredes brancas, vazias, a fazer contraste com os tons verde caqui que veste da cabeça aos pés.

Pouco tempo antes de fazer a sua estreia num palco português, Gallant conseguiu dispensar-nos alguns minutos para uma conversa que permitiu perceber, pelo menos, as suas motivações artísticas. Envergonhado, não se recosta na cadeira para conversar: pousa os cotovelos nas coxas, sorri timidamente, fala baixo e protege o olhar atrás da pala do boné, refugiando-o, noutras vezes, no chão enquanto nos responde às perguntas. E é curioso perceber a antítese completa daquilo que é quando sobe ao palco do Coliseu dos Recreios, por onde, já durante o concerto, se passeia de forma desinibida, a sorrir para uma plateia que nunca tinha visto – e que nunca o tinha visto – acompanhado por um baterista, um guitarrista e uma teclista. “Estar no palco, olhar o público nos olhos, e perceber que estão a receber a informação, é uma experiência muito importante para mim. Faz-me crescer enquanto ser humano. Estar numa sala com pessoas que sabem quem eu sou e que retiraram alguma emoção especial ao ouvir o disco é algo único. Sinto-me muito honrado por conseguir criar essa relação entre o palco e plateia: por muito que tenha para dar, também posso receber.”

De maryland para Nova Iorque A conversa de camarim permite perceber que Gallant se dedicou à música de forma apaixonada, mas em nome do seu crescimento pessoal. É o que nos confessa quando lhe perguntamos, diretamente, porque é que quis ser artista. “A ideia nunca foi construir a melhor canção do mundo”, começa por dizer. “Tem tudo que ver com a minha vontade de escrever. Tinha 13 anos, mais ou menos, e escrevia músicas como se estivesse a escrever num diário. Acabei por ficar viciado a esse sentimento de crescimento pessoal e por isso nunca mais parei.” A vida de Christopher, em Maryland, a pouco mais de 40 quilómetros de Baltimore, viria a mudar com a sua vontade de aprofundar a sua paixão pela música. Nos subúrbios costumava participar em aulas de teatro e cantava no coro, mas a mudança para a Big Apple, onde estudou música na New York University, acabou por ser algo que deixou marcas. “Foi chocante mudar para um ambiente tão denso e urbano. A faculdade até foi divertida, mas, depois de terminar o curso, senti que não estava bem enquadrado em Nova Iorque.”

Conforto de Los Angeles O espírito aventureiro voltou a fazer-se sentir: aos 21 anos, deixava Nova Iorque e mudava-se para a Costa Oeste dos EUA, tendo Los Angeles como destino. “Hoje talvez haja mais oportunidades na música em LA, mas com a internet essa mudança geográfica acaba por ser irrelevante”, diz. “Podia perfeitamente ter-me mudado para Memphis: se tivesse ligação à internet, as oportunidades seriam as mesmas”, considera. Mas esta segunda mudança mesmo viria a ser determinante para si. “Ao conseguir estar num ambiente mais confortável, acabei por ficar mais próximo daquele estado mental que tinha em criança, quando comecei a fazer música.”

Foi com esse estado de espírito que Gallant acabou por criar dois trabalhos de estúdio: o primeiro, um EP, “Zebra”, editado em 2014, e o segundo, “Ology”, lançado em abril deste ano. “É fácil fazer música sobre festas e coisas meio tolas. Mas falar sobre as discussões que se têm à mesa num almoço de família, que causam controvérsias e discussões é mais difícil. Sabes aquelas coisas que contas ao teu terapeuta? É isso que quero cantar.”

Do meio da plateia do coliseu, noite chuvosa adentro, olhamos em volta para bocas abertas de espanto e braços no ar quando Gallant apresenta ao vivo o seu falsete, perfeito e imaculado em canções como “Weight In Gold”, “Talking To Myself” ou “Skipping Stones” (com Jhené Aiko). E claro que quisemos saber de onde vem esta técnica de levar a voz até lá acima. “Gostava de saber a resposta! Na verdade, acho que só no ano passado é que começaram a falar da minha voz”, surpreende-nos. “Nunca ninguém comentou muito. Mas também nunca me preocupei muito com isso. Nunca houve muitas regras na minha forma de me exprimir. Só me preocupava mesmo com escrever canções. Sempre fiz o que me foi natural, sem grandes equações científicas.”