Na morte de um filho da luta

Não há nada mais revelador do atoleiro ideológico em que Portugal está metido do que as reações à morte de Fidel Castro. 

Às primeiras horas da manhã, os jornais repetiam as peças da agência estatal de notícias que falavam da morte de um "líder histórico" que "gostava muito de Portugal". As palavras ditadura e assassinato só apareceram nos títulos de alguns jornais online umas horas mais tarde. Os mesmos jornais que no dia anterior alertavam para os riscos de um Trump homofóbico e misógino, celebravam agora a vida de um homem que enviava homossexuais para campos de reeducação e se vangloriava de Cuba ter as prostitutas mais instruídas do Mundo.

Em reação à morte, a líder do BE avisou que "erros não podem apagar a homenagem a um grande revolucionário". Por erros, Catarina Martins quis dizer as dezenas de milhares de assassinatos, as crianças mortas a tiro enquanto tentavam fugir do paraíso Cubano, os campos de tortura e a miséria generalizada. Esperemos que na assustadora hipótese de Catarina vir a liderar um governo, ela não seja muito dada a "erros".

Do PCP não se esperaria mais do que o branqueamento total, afinal esta é uma agremiação que, se pudesse, teria feito o mesmo em Portugal depois do 25 de Abril e que continua à espera nas franjas da democracia por uma nova oportunidade. Isto não seria tão assustador não fosse hoje o PCP um partido de governo que domina o Ministério da Educação e que controla o sindicato dos profissionais que ensinam história às crianças.

Finalmente, temos os socialistas ditos moderados que gostam de lembrar que Fidel deixou um país com excelentes sistemas de educação e saúde. E é possível que até seja verdade. Se os cubanos não fossem tão saudáveis, dificilmente milhares deles conseguiriam chegar todos os anos às praias de Miami, alguns tendo que nadar quilómetros e escapar aos tiros da polícia Cubana. Fica por explicar porque é que tendo educação e saúde gratuitas, tantos cubanos arriscam a vida para  ir viver num país onde têm que pagar por ambas.

Antecipando-se aos dois companheiros de coligação, o PS foi o primeiro a apresentar um elogioso voto de pesar na AR pela morte de Fidel. Provavelmente, este voto de pesar foi escrito pelos mesmos deputados que há pouco tempo rejeitaram o voto de pesar pela morte de uma líder democraticamente eleita: Margaret Thatcher.  Como que querendo demonstrar que nenhum partido está a salvo do atoleiro ideológico do país, nem PSD nem CDS foram capazes de se unir num voto contra.

Um ex-militante bloquista e atual deputado do PS publicou uma foto sua a fumar charuto e beber rum em homenagem ao ditador morto. Pena a internet ser quase inexistente em Cuba e as redes sociais estarem proibidas, caso contrário tenho a certeza que os cubanos iriam adorar a homenagem do deputado aos seus familiares mortos e exilados.

O mais assustador de tudo isto é que parece pairar no subconsciente dos socialistas democratas o sentimento de que eles são uns fracos e de que os comunistas afinal tinham razão. Da imprensa aos políticos de partidos ditos moderados, todos parecem ceder à visão romântica do assassino que impõe o socialismo à lei da bala em vez da via democrática, sempre tão sujeita a revezes. Sem poderem verbalizar este sentimento, aproveitam oportunidades como estas para o deixar escapar. Num mundo em ebulição e cada vez mais dado a extremismos, isto dever-nos-ia colocar em alerta.

Morreu Fidel Castro, um déspota que trocou uma ditadura por outra ainda pior, assassinou milhares de pessoas e condenou milhões à pobreza. Percebemos que estamos num atoleiro ideológico quando isto merece sequer discussão pública. Não morreu um ícone, nem um líder histórico: morreu um filho da luta. A avaliar pelas reações dos únicos cubanos que se podem expressar em liberdade – os exilados – há muito que o seu povo desejava que ele fosse para a luta. Que o lariu.​