Vulto maior da literatura portuguesa, considerava-se um homem em luta com um fantasma: o outro de si mesmo, assim fixado em irónico auto-retrato: «silhueta de pirata nostálgico, tesourando o chão a passadas sonâmbulas». O rasto deixado ao longo de uma vida decorrida entre a Foz do Douro, a célebre Casa do Alto, nas proximidades de Guimarães, e Lisboa, onde veio a falecer na casa que então habitava, perdura na sua própria obra e na de autores como Ferreira de Castro, José Gomes Ferreira, José Saramago ou Herberto Helder, que deixarão registo do que para eles significou o autor de «Húmus».
Quando, em 1891, depois de uma breve passagem pelo curso Superior de Letras da Universidade do Porto, Raul Brandão ingressa, sem entusiasmo, na Escola do Exército (onde terá como camaradas Óscar Carmona e Sidónio Pais), iniciara já, no «quadro» da Foz do Douro da sua infância, o aprendizado emocionado e dolorista das cores: do azul, mas sobretudo do verde e do negro, tintas que, em gradações diversas, acorrerão depois à sua cenografia decadente, adequada ao seu inquieto pessimismo e aos «ismos» da «desesperada hora do crepúsculo», como designava o fim-de-século. E já publicara também o primeiro livro: “Impressões e Paisagens” (1890), uma colectânea de contos ainda afecta ao naturalismo canónico.
O registo das classificações obtidas numa prova prática do Regimento de Infantaria nº 6 do Porto (e terá realizado outras ao longo de uma carreira militar que o conduziu ao posto de major) – «tiro: atirador de 2ª classe; ginástica: medíocre; esgrima: medíocre» – sintonizam com a demarcante definição que de si mesmo nos deu: «nunca fui homem de acção» (Memórias). Em contrapartida, a sua índole contemplativa e a sua sensibilidade terão efectiva realização numa luta obstinada travada com as armas que lhe fornece a sua desesperada postura interrogativa face aos grandes mistérios da vida e a sua imaginação fantasmática.
A presença actuante do autor de “O Pobre de Pedir” (1931) – livro fundamental com que remata o seu percurso literário – faz-se sentir desde os escritos que precedem a sua obra de criação ficcional e dramática: na inspiração demiúrgica revelada enquanto membro do cenáculo da boémia juvenil do Porto, na agressividade lúdica posta n’Os Nefelibatas, um opúsculo de inspiração anarquista e tom paródico em que colabora em 1891, nas divagações sobre «O anarquismo», a ferirem a atenção dos leitores da Revista d’Hoje, que co-dirigiu. O escritor de singular intervenção manifesta-se igualmente nos folhetins do Correio da Manhã, de Pinheiro Chagas, que povoa com figuras noctívagas e grotescas de loucos, anarquistas e clowns, a revelarem a miséria social e a da condição humana. São textos depois assimilados por “História de um Palhaço” (1896), o primeiro livro de cariz decadentista que conhecerá uma mais cuidada composição em “A Morte do Palhaço” e o” Mistério da Árvore”, ambos de 1926, ano em que surgiam também “As ilhas desconhecidas – notas e paisagens”, livro onde pratica magistralmente a técnica da descrição itinerante e em que se inspirou o conhecido código de cores das ilhas açorianas.
As funções de oficial-funcionário do Exército decorrem paralelas ao exercício jornalístico, tendo alcançado, ainda na primeira década do século XX, finda a qual se reforma, o lugar de redactor saliente do República e d’O Dia, onde assina uma série de reportagens sobre manicómios, cadeias e hospitais, espaços de simbologia concentracionária que dinamizará em obras como “A Farsa” (1903) ou “Os Pobres” (1906).
Entre a conjuntura pessoal, marcada pela «consciência infeliz», e a conjuntura da época terá encontrado Raul Brandão o balanço para o aprofundamento expressionista das próximas criações. À medida que prepara obras como “A Conspiração”, revisita o seu passado próximo e mete ombros à redacção das suas Memórias, num registo que mais se aproxima do diário íntimo. A revista A Águia, que entretanto o atrai às suas páginas, proclama-o «o melhor escritor de Portugal». Raul Brandão cor(responde) em 1917 com a sua desconcertante obra-prima: Húmus, esse livro-lugar onde se entranham todas as misturas: o tempo e o espaço; o desfazer putrefacto e a vida em génese; o narcisismo aristocratizante e a atracção empática pelo outro-social; o pendor egocêntrico, pessoal e intimista do diário e a reflexão ética ou metafísica; a imagem do ‘eu’ e as vozes e máscaras.
Seriam, no entanto, obras como “Os Pescadores”, de 1923, ou “Teatro”, volume onde reunia, nesse mesmo ano, três peças de assombro – O Gebo e a Sombra, O Rei imaginário, O Doido e a Morte – que dariam a Raul Brandão um apreciável êxito imediato, que a fortíssima genialidade de Húmus, a antecipar em várias décadas as alterações estruturais que o nouveau roman haveria de impor, não podia então ser inteiramente reconhecida.
A alguém que lhe pediu a sua biografia, respondeu: «Podia dizer-lhe quando nasci, quando comecei a escrever, etc. Considero tudo isso inútil. O importante seria dizer-lhe quando o fantasma se intrometeu na minha vida.»