«Sempre que ouço falar em cultura, saco da minha pistola». A frase, erradamente atribuída a Heinrich Himmler, pertence na realidade à peça de teatro Schlageter, de Hanns Johst. A associação com Himmler tem, no entanto, a sua razão de ser: o Reichsführer SS, temido líder das polícias nazis e arquiteto do Holocausto, gostava de a citar, mas talvez mais para se mostrar duro perante os seus homens do que por convicção.
Na realidade, seria um erro ver Himmler como um sanguinário grosseiro e inculto. Nascido em 1900 no seio de uma família de «conservadores acomodados, monárquicos, católicos, economicamente abastados e tradicionalistas do ponto de vista cultural», o seu pai era um professor exigente, autoritário e reputado, que educou Heinrich para ser um aluno exemplar e bem comportado. Na juventude, foi um leitor voraz e passava muito tempo a escrever poesia.
«Quando um dos antigos colegas de escola», escreve Peter Longerich na imponente biografia que acaba de ser publicada em Portugal pela D. Quixote, «descobriu, décadas depois, que aquele colega de turma conhecido por todos como Himmler era, na realidade, o ‘homem do terror’, inicialmente não acreditou».
A II Guerra Mundial e a Alemanha nazi têm-se revelado um filão editorial inesgotável e a obra de Longerich, simplesmente intitulada "Heinrich Himmler", surge apenas alguns meses após a publicação da correspondência de Himmler (pela Bertrand) e de A Verdadeira História das SS (Casa das Letras). Datada de 2008, tem sido aclamada pelos principais historiadores da II Guerra: Ian Kershaw, o principal biógrafo de Hitler, considerou-a «impressionante»; Richard J. Evans, autor de The Third Reich, uma das grandes sínteses sobre aquele período na Alemanha, fala numa «obra-prima»; e Max Hastings, antigo repórter de guerra, historiador militar e o mais popular autor de livros sobre a II Guerra Mundial, também não lhe poupou elogios.
O leitor português poderá colocar, no entanto, uma questão muito pragmática: merecerá esta figura uma biografia ‘maximalista’, a ponto de rivalizar em extensão com a biografia definitiva de Hitler assinada por Kershaw?
«Prometo esforçar-me por ser um bom homem»
«Não há nada na infância e na adolescência de Himmler, passadas na casa paterna, católica, conservadora e bem protegida de formação burguesa da ‘época guilherminiana’, que possa apontar para uma pessoa com evidentes traços anormais de caráter», resume Longerich na ‘Conclusão’ do seu livro. A infância e juventude não explicam como o filho de um professor do ensino secundário se tornou, como se lê na capa, «um dos carrascos mais brutais de Hitler». Alguns acontecimentos dessa época ajudam, ainda assim, a compreender melhor o seu comportamento ao longo da vida.
Um dos motivos por que sabemos tanto sobre Himmler resulta de um hábito adquirido em pequeno: «Em 1910, quando estava em Lenngries, o pai encarregou Heinrich de escrever um diário durante as férias de verão. Ele mesmo tratou de escrever a primeira entrada, para que o filho tivesse um exemplo a seguir. A partir daí, o pai lia e corrigia o que Heinrich escrevia e preocupava-se com que, nos anos seguintes, ele mantivesse diários semelhantes», escreve Longerich.
Durante a adolescência, os diários de Himmler estão escritos num tom ingénuo e idealista: «Sempre amarei Deus, rezarei, seguirei e defenderei a Igreja Católica»; «Prometo esforçar-me sempre por ser e permanecer um bom homem». Promessas e sentimentos nobres que são dificilmente compatíveis com o seu comportamento ulterior.
Himmler fez a recruta durante o final da I Guerra, em 1918, mas devido à idade não pôde participar no conflito. De forma algo surpreendente acabaria por se formar em Agronomia. Mas «no verão de 1924 Himmler tomou a grave decisão de fazer do seu papel de ativista político a sua profissão e o verdadeiro objetivo da sua vida». Começou na área da propaganda, a fazer trabalho administrativo, para o qual tinha evidentes aptidões, seguramente graças à educação rígida dada pelo pai. Fazia também palestras para os membros do NSDAP, o partido nazi, em que misturava o apelo à vida no campo com invetivas contra os judeus.
O ano de 1927 foi decisivo: no final do verão, durante uma viagem, conheceu a sua futura mulher, Margarete, e em Setembro tornou-se Reichsführer adjunto das SS. Fundadas em 1925 como «guarda pessoal de elite» do partido, estas eram ainda uma pequena força subordinada às SA. Foi a capacidade organizacional de Himmler que, nos anos seguintes, as transformou numa força temida em toda a Europa.
«O ser humano mais honesto que existe na Alemanha»
Em junho de 1934, já com o partido nazi no poder, as SS tornaram-se definitivamente dominantes, com a detenção e execução de centenas de membros das SA, entre os quais Ernst Röhm, o seu líder. Com a concorrência posta de parte, em 1935 Himmler «assume o controlo de toda a Polícia alemã». Dedicado e «meticuloso ao extremo», ocupava-se não apenas da organização geral, mas também dos mais ínfimos detalhes, definindo ao pormenor, por exemplo, como deviam ser as fardas dos guardas. E também se imiscuía na vida pessoal destes, controlando os seus hábitos e repreendendo-lhes os vícios. «O homem das SS é o ser humano mais honesto que existe na Alemanha», costumava dizer. «Os conceitos mais importantes eram a lealdade, a obediência e a camaradagem, e sublinhava frequentemente a coragem, a honestidade, a dedicação e o cumprimento do dever», recorda Longerich. «Mas exigia repetidamente, e acima de tudo, uma coisa aos seus homens das SS: decência!».
Alargando cada vez mais o leque das suas competências, Himmler reativou o complexo de campos de concentração, preparando estes para receber as centenas de milhares ou mesmo milhões de prisioneiros que resultariam da guerra que se adivinhava. E inspecionava-os com regularidade. «Todos os anos visito pessoalmente um campo […] e chego sem aviso para dar uma vista de olhos». Enquanto o conflito com os territórios a Leste não chegava, os campos iam-se enchendo de potenciais inimigos do Reich: bolcheviques, vagabundos, proxenetas, maçons, ciganos, homossexuais e, claro, criminosos vulgares.
Fascínio pelo oculto, testemunha de execuções
«Himmler evitava trazer a lume o fascínio que sentia pelo oculto desde os tempos de estudante», conta Peter Longerich. Com o tempo, o Reichsführer foi transformando a sua formação católica por uma crença numa religião ancestral germânica. Fundou a Sociedade Herança Ancestral Alemã para o Estudo da Pré-História Intelectual, financiou expedições e escavações arqueológicas e patrocinou teorias extravagantes, como a Teoria do Gelo Cósmico. Acreditava que os teutões vinham do Tibete e, ele que chegara a cantar no coro da igreja, via o Cristianismo, a que chamava «destruidor de todos os povos», como um inimigo a abater.
O seu fascínio pela história alemã resultou na aquisição do castelo de Wewelsburg, «um castelo triangular construído no século XVII» que estava previsto tornar-se uma espécie de centro espiritual das SS. Ao contrário do que Himmler preconizara, «nem cerimónias, nem festas nem rituais de culto chegaram a ter lugar no castelo», revela Longerich. Só por uma vez foi utilizado para uma reunião das SS, nas vésperas da invasão da União Soviética, em junho de 1941.
Com a guerra, Himmler passou a ter a seu cargo várias frentes: a gestão dos campos, a deslocação das populações dos territórios ocupados, a polícia política e ainda a rede industrial que ajudava a suportar os custos de toda esta enorme estrutura.
«Durante toda a sua carreira, Himmler esteve constantemente em viagem […]. Era exatamente assim que o Reichsführer SS queria ser visto: comunicativo, omnipresente, um chefe que toma conta de tudo, que tem tudo sob controlo, que partilha as privações de seus homens».
As constantes deslocações iam deteriorando a relação com a mulher, Margerete. Ainda assim, mantinham uma intensa correspondência e ele enviava provisões, doces e outros presentes para casa. «Espero que não vejas demasiadas coisas horríveis», escrevia-lhe a mulher. A realidade, porém, era bem diferente. Himmler não apenas se dedicava a planear o terror como continuava a visitar os campos de concentração, onde se assistia a uma tragédia sem precedentes, e nem se escusava a estar presente em execuções. «Após a primeira saraivada de balas Himmler veio colocar-se ao meu lado e olhou para dentro da cova. Então percebeu que um ainda estava vivo. E disse: ‘Tenente, atire naquele!’, e foi o que o encarregado fez», descreveu uma testemunha.
«Animais em forma humana»
O que levou um filho da burguesia que na adolescência garantia «sempre amarei Deus» e que, mais tarde, a toda a hora pedia «decência» aos seus homens a comportar-se desta forma? Por um lado, o facto de considerar que as suas vítimas eram «animais em forma humana» e devia lidar-se com eles em conformidade. Por outro lado, Himmler achava que a guerra tinha de ser travada até às últimas consequências, de forma a não comprometer o futuro da Alemanha. Isso levou-o a arquitetar o mais ignominioso plano de assassínio em massa da História: a Solução Final. «Não me senti no direito, e isso refere-se naturalmente às mulheres e crianças judias, de deixar que nas crianças cresçam os vingadores que um dia matarão os nossos pais e os nossos netos. Acharia isso cobarde».
Após o suicídio de Hitler, quando a guerra já estava irremediavelmente perdida, o Reichsführer SS viu-se «de mãos vazias». «Não tivera a possibilidade real de fazer preparativos efetivos para uma fuga ou uma vida na clandestinidade». Restava-lhe disfarçar-se e tentar passar despercebido. Dos seis homens que o acompanharam nessa tentativa, apenas um conseguiu «desaparecer sem deixar rasto». Himmler foi detido a 21 de maio e sujeito a vários interrogatórios para confirmar a sua identidade. «Uma vez em Lüneberg, foi submetido a um exame rigoroso no qual o médico, o capitão Wells, descobriu na boca de Himmler, que ele abrira com relutância, a ponta azul de um objeto. Enquanto Wells tentava remover o corpo estranho, Himmler sacudiu a cabeça com força para se desviar, mordeu a cápsula e tombou. Ao fim de 15 minutos, todas as tentativas para retirar os restos de veneno e o reanimar cessaram».
Durante os julgamentos de Nuremberga, todos os principais responsáveis nazis, excluindo o orgulhoso Hermann Göring, sacudiram a água do capote, alegando estar apenas a executar ordens. Ordens vindas de quem? Evidentemente de Hitler, o líder supremo, mas talvez sobretudo de Himmler, o n.º 2 do Terceiro Reich, o autor do plano de genocídio dos judeus e o homem que detinha verdadeiramente o poder executivo. E assim regressamos à pergunta formulada no início: precisamos de uma biografia tão extensa desta personalidade?
É certo que a história definitiva dos campos de concentração já estava disponível em português no insuperável KL – A História dos Campos de Concentração Nazis, de Nikolaus Wachsmann (editado no ano passado também pela D. Quixote). Mas a biografia de Longerich comprova sem margem para dúvidas a importância do homem que montou esse sistema de repressão, explica com clareza como ele açambarcou tanto poder e mostra como alguns dos seus traços de personalidade influenciaram o curso da História. Para o fazer com a clareza e o grau de detalhe com que o fez, Longerich não poderia ter-se alongado menos.
Heinrich himmler
Peter Longerich
D. Quixote
911 págs., 32,90 euros