Jurista e historiador, António Araújo foi consultor nos dois mandatos de Cavaco Silva em Belém, e transitou para a equipa de Marcelo Rebelo de Sousa. Autor de alguns dos mais mordazes e acutilantes textos da blogosfera portuguesa, no seu multifacetado Malomil vem há anos aguçando um enfoque de grande amplitude cultural e histórica a par de uma vigorosa intervenção crítica, na linha do que se esperaria de um distinto e elitista suplemento de cultura, como não há hoje um só na imprensa tradicional portuguesa.
É um dos intelectuais portugueses que se sentem confortáveis tanto na alta como na baixa cultura, atento à realidade e aos fenómenos de massas, um dos últimos que tentam responder aos desafios do seu tempo, seja nos textos em que destrói a hipocrisia e o vazio dos mental coaches portugueses, seja quando ataca impiedosamente escritores que se confundem com socialites, seja ainda nos escrupulosos e inspirados ensaios, como o que dedicou, nas páginas da revista Ler, a Philippe Petit, o funâmbulo que nos anos 70 fez a travessia entre as Torres Gémeas de Nova Iorque. Acaba agora de publicar Da Direita à Esquerda, um retrato da direita portuguesa na sua evolução e afirmação dos anos 80 aos nossos dias, analisando as principais clivagens bem como «muitas afinidades ocultas» que têm levado a uma certa pacificação das tensões no debate e na convivência com a esquerda. O livro aborda ainda uma série de tendências contemporâneas, «como a proliferação do lifestyle, do trendy, a revisitação light do salazarismo, os livros de autoajuda e outras taras atuais».
Este livro parece estar entre uma série de géneros. Não é bem um ensaio, não é sociologia pura, a espaços aproxima-se da reportagem, do comentário ou análise… Como chegou a este modelo e como é que o identifica?
O modelo é relativamente inidentificável. A proposta foi feita pela editora, a Saída de Emergência, para fazermos, eu e o João Pedro George, um livro só, que não se chamaria assim, mas antes A Cultura de Direita e a Cultura de Esquerda, e deste livro seria só a primeira parte a integrá-lo, talvez a mais ensaística, e que ficaria pelos anos 80. O João Pedro irá publicar o livro dele mais tarde. Alarguei a análise a um período temporal mais vasto. Mas não quis que o meu livro se chamasse por si só A Cultura de Direita. O Pedro Mexia, na apresentação, sugeriu que se chamasse De Alto a Baixo. Acho que seria demasiado laudatório… Relativamente ao género, não procurei um. Talvez o excesso de informação de que eu o carrego seja um defeito, mas é também para que o leitor se aperceba da dimensão do fenómeno. O leitor tem de ser encerrado numa espécie de claustrofobia da realidade. É claro que por aí acabou por se impor um género que foi definido à medida da própria escrita. Na primeira versão, eu tinha um aviso a dizer que «este livro não é sério». Por razões óbvias, a editora pediu-me que passasse para «este livro não é académico».
Em vários momentos do livro senti que deixa transparecer um certo tom jocoso. Como se parodiasse o seu objeto, identificando uma cultura que se reduz a manifestações algo epidérmicas.
Infelizmente não me excluo dessa visão. O livro poderia ir por dois caminhos. Um de lapidação da realidade, a apedrejá-la, numa abordagem declaradamente marginal… Mas acho que na marginalidade há também um sentimento de superioridade. Pelo contrário, podia prosseguir por um caminho suavemente jocoso, mas assumindo que também me integro nessa realidade, que, como diz, é muito epidérmica.
Até que ponto põe em causa esta dicotomia esquerda/direita? Não sente que muitas vezes se reduz mais a tiques de classe do que propriamente a diferenças ideológicas?
Acho que a diferença entre esquerda e direita mantém-se do ponto de vista ideológico, mas há muitas clivagens que são bastante encenadas apenas num dispositivo que pretende continuar a festa. E a festa significa que há um conjunto de animadores, de djs intelectuais, que depois combatem num ringue de wrestling das ideias, com uma legião de pessoas, sempre ao nível da elite, que vão assistindo, aderindo ou descartando aquilo consoante a etiquetagem das pessoas. Portanto, não venho pôr em causa a diferença entre esquerda e direita no plano cultural ou político – ela existe objetivamente –, agora que há muita encenação do confronto e que há uma busca incessante de pontos de atrito de um lado e do outro, penso que isso é inegável. Quando eclode uma questão, seja a construção da mesquita da Mouraria, seja os casos do Colégio Militar, as pessoas, em vez de se interessarem a fundo para perceber verdadeiramente o que se passa caso a caso, ativam o dispositivo sentencioso de acordo normalmente com os seus rótulos ideológicos.
Quando estamos a falar destas divergências ideológicas, vemo-las confrontar-se num plano que é, apesar de tudo, o do mainstream.
A esquerda dita radical começou a entrar no centro. Antes de o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista apoiarem a coligação que levou o PS ao poder, já há muitos anos que o Daniel Oliveira, para dar um exemplo, escrevia no Expresso. Isto é, a adesão e perceção da utilidade dos mecanismos do centro sempre foi algo muito óbvio para a esquerda radical. A esquerda radical teve uma perceção de que tinha de entrar na lógica do espetáculo e entrar no centro irradiador das ideias. Depois, mais tarde, em vários pontos da Europa, passou para o centro político em si mesmo.
Sente falta de um dinamismo de barricadas, não algo violento nem desrespeitoso, mas em que os campos em oposição estivessem claramente definidos?
O problema não é a necessidade de separação das águas, é mais a necessidade de ancoragem num pensamento e num ideário originais e estruturados. Não sou favorável a que haja um extremar ainda maior de posições. Importante é que as opiniões sejam apoiadas num conhecimento da realidade. Se entrarmos no circo mediático, apercebemo-nos de que isso raramente acontece. Ou as pessoas não conhecem a realidade ou distorcem-na a favor dos seus pontos de vista.
Hoje fala-se muito de esquerda e direita. Consegue gizar um fronteira decisiva entre o que representa uma e outra no nosso contexto?
Tenho uma grande dificuldade em ser maître à penser ideológico de uma e de outra, até porque seria um bocadinho difícil. Acho que um dos aspetos curiosos da crise económica e do pós-crise é que, da mesma maneira que nos anos 80 uma certa direita saiu do armário, alguma direita do Independente, agora, no pós-crise, já vemos uma série de intelectuais e opinadores a afirmarem-se como de direita. Coisa que há 15, 20 anos era quase impensável. As pessoas quando muito diziam que não eram de esquerda. Agora, quanto a traços característicos da direita ou esquerda cultural, não vou procurar fazer um retrato. Até porque dependerá muito da capacidade de cada uma delas definir o seu posicionamento. 90% da realidade não se pauta por coordenadas de esquerda e direita. Nós é que tentamos sempre afunilá-la nessas coordenadas. A grande linha de divisão cultural e política entre a esquerda e a direita continua a ter que ver com o peso ou a dimensão do Estado na economia.
Não lhe parece que a fronteira entre esquerda e direita acompanha hoje mais uma diferença de classes? Figuras que destaca neste livro como Pedro Mexia, João Pereira Coutinho ou Pedro Lomba não tiveram que dar muitos passos para ganhar protagonismo no espaço mediático.
Referiu esses nomes, pessoas que já escreviam nos jornais antes de terem o blogue, mas a blogoesfera democratizou o acesso a figuras como um Rogério Casanova, que se notabilizou lá. A blogoesfera teve esse efeito, que hoje já não tem tanto, porque já está cada vez mais tribalizada, em grupos, blogues de direita, blogues de esquerda, etc. Portanto é muito difícil no meio desta fratura digital haver uma emergência, como se diz em linguagem futebolística, de talentos individuais.
Há em Portugal especiais condições que põem em risco a afirmação da meritocracia?
A massificação em si pode revelar-se, paradoxalmente, um fator destruidor da meritocracia. Não defendo restrições no acesso ao ensino superior, mas se houver uma explosão e uma indústria de licenciaturas e mestrados e doutoramentos, etc., é muito difícil, mesmo para um observador, para um docente, conseguir discernir o mérito individual de cada aluno. Mas isso é um efeito da democratização. O ruído criado pela proliferação de informação ao nível da internet torna mais difícil às pessoas, que estão tão saturadas de informação, descobrirem a verdadeira qualidade. Por isso não se entende como é que a imprensa que se dedica a temas culturais pode estar numa fase de declínio, quando a sua importância é cada vez maior.
Dada a proliferação de opções e obras julga que caberia à imprensa dita cultural fazer uma seleção?
Não apelo a um darwinismo intelectual, mas é necessário que a imprensa cumpra o seu trabalho no sentido de separar aquilo que são fenómenos típicos de massas, que devem ser respeitados como tal, e aquilo que são fenómenos dignos de registo, e que devem perdurar. Não é o caso, desde já, do livro que escrevi, mas há factos culturais que são marcantes. Tenho pena que não haja da parte da imprensa uma atenção em relação a fenómenos como os livros do José Rodrigues dos Santos ou este da Cristina Ferreira.
Porquê?
Porque isso cria um desfasamento entre a realidade efetiva, dos tops de vendas, aquilo que as pessoas compram, leem…
É dever da imprensa analisar o teor e a qualidade dessas obras?
Exactamente. Os críticos selecionam os livros que consideram merecedores de atenção a partir de uma certa fasquia, que é a ponta do icebergue. Por baixo, há toda uma série de coisas que ficam sem resposta. Quando faço algum post em que me refiro ao Rodrigues dos Santos, uma reação frequente é as pessoas perguntarem por que estou a perder tempo com aquilo. Acho obviamente que vale a pena porque faz parte da realidade. Há uma espécie de desatenção à realidade dos agentes culturais. O que é que nós vemos? Opinadores relativamente desinformados em relação a tudo aquilo sobre o qual opinam e vemos também agentes culturais extremamente elitistas em relação àquilo a que prestam atenção.
A opinião não tem contribuído para a meritocracia cultural?
Essa faz-se não apenas selecionando e louvando os melhores mas também sendo impiedoso ou crítico perante aqueles que considera menores. Há um grande pudor da parte da nossa crítica em ser violenta ou ser impiedosa perante aquilo que merecia ser escrutinado de uma forma mais severa. As pessoas não querem criar problemas, não querem atritos. Não defendo que os agentes culturais tenham de ser pistoleiros e justiceiros em relação aos objetos culturais de massa, mas que há uma desatenção enorme… Não vi uma crítica ao livro da Cristina Ferreira, que está em primeiro lugar nos tops.
A sensação que se tem muitas vezes é a de que uma abordagem crítica não colhe favor dos leitores.
A questão é que, com uma ou outra exceção, não há uma tradição verdadeiramente crítica na nossa imprensa. Não sei se isto acontece porque ela não vai de encontro aos interesses dos leitores, se não há leitores para o exercício da crítica porque esta não se debruça sobre os livros que têm dezenas e até centenas de milhares de leitores. Acho que fenómenos que vendem 100 mil exemplares mereciam um escrutínio e uma atenção que não é dada pelos media. A imprensa cultural considera-se a si própria como um objecto de cultura. Sendo que a realidade da cultura não é apenas aquilo sobre o qual gostamos de escrever, e sobre o qual nós gostamos de ler. A realidade da cultura é aquilo que as pessoas leem e veem. Foi aquilo que eu procurei neste livro salientar.
Lemos hoje nos jornais pessoas que andam pelos 40 e que ganharam espaço nos jornais quando andavam pelos 20, mas atualmente é difícil, sobretudo ao nível da cultura, encontrar vozes de pessoas com menos de 30 ou até de 40 anos.
Pois, muitos começaram no DN Jovem, no DNA ainda escrevi ao mesmo tempo que também lá escreviam o Pedro Lomba, o Pedro Mexia… Depois havia pessoas mais velhas. Misturavam-se pessoas de diferentes gerações. Mas esse fenómeno reflete o que se está a passar nas universidades. Houve uma geração que hoje tem trintas e muitos, 40 ou até mais, que ocupou os lugares e vai ocupar durante muito tempo, impedindo a ascensão de pessoas mais novas. É uma pena.
Enquanto conselheiro do Presidente da República, Cavaco Silva, como foi ver esta figura que esteve sempre debaixo de fogo enquanto era primeiro-ministro, e ainda mais no segundo mandato em Belém, quando houve uma rutura com a generalidade dos opinadores?
Ainda é cedo para me pronunciar sobre o período em que tive a honra de servir o Presidente Cavaco. Mas é sabido que quer nos tempos enquanto primeiro-ministro, quer enquanto Presidente da República, teve a hostilidade da imprensa, o que não obstou a que conquistasse quatro maiorias absolutas. Nisso, julgo que é porventura um case study interessante do que é o divórcio entre a opinião escrita e televisionada, e a opinião expressa nas urnas.
Não lhe parece que, sobretudo desde a crise, se tem assistido a uma direitização dos órgãos de comunicação social portugueses?
Não diria que a imprensa está mais à direita, mas a partir do momento em que existe um governo que tem o apoio do Partido Comunista e da esquerda radical, não sobra espaço à esquerda alternativa e crítica. Portanto, a imprensa reflete-o. Não diria uma direitização, mas antes reconheço que a imprensa é situacionista. Depois há um ou outro ponto de atrito, como a administração da Caixa Geral de Depósitos, mas isso são controvérsias ou micro-causas para dissimular uma aproximação política ao centro do poder. A partir do momento em que quer o PC, quer o BE, estão no centro do poder, não sobra alternativa seja do ponto de vista política, seja da opinião e do comentário. Aqueles que outrora foram críticos alternativos do sistema, e que queriam até substituir o sistema, hoje em dia estão dentro do sistema.
Quais são as conquistas da direita na sociedade portuguesa e o papel social mais relevante de algumas das suas figuras?
Desde logo conquistou o direito a existir e se afirmar, que é um direito que lhe era negado. Mesmo antes do 25 de Abril, quem, como a Agustina Bessa Luís, não alinhasse pelo diapasão do neo-realismo tinha grandes dificuldades em afirmar-se. Mesmo antes da democracia já existia na cultura uma hegemonia da esquerda que abafava essas vozes. A direita dizia que esquerda era hegemónica no meio cultural e que havia até um duplo critério em que a mesma ação, se fosse levada a cabo por um indivíduo de direita, este seria fustigado e apedrejado, se fosse por um indivíduo de esquerda, era louvado e enaltecido. Que a hegemonia da esquerda no meio cultural hoje é mais ténue parece-me óbvio.
A opinião parece ter começado a competir com o espaço da informação e até a impor-se-lhe, sendo já difícil destrinçar uma da outra. Concorda?
O problema maior é que parece haver uma apetência do público para só consumir opinião confrontacional. Tenho essa experiência no blogue Malomil, que edito. Se colocar um texto que, na minha perspetiva, tenha mais qualidade, mais informação, esse texto não gera grande interesse nem repercussão. Mas se colocar algo que seja agressivo, contundente, quase no limite do insultuoso, aí sim acaba por suscitar logo alguns ânimos. Acho que a imprensa escrita acabou por ceder a este modelo confrontacional, mesmo no âmbito da informação. Em Portugal precisamos sempre de ter de um lado o Daniel Oliveira e do outro o Henrique Raposo. Esta ideia do prós e contras. Se for ver noutros jornais, basta ver aqui no El País, basta-lhe ler um artigo do Vargas Llosa, ou do Timothy Garton Ash. As pessoas leem-nos e não precisam de ter o seu contraponto. Em Portugal há sempre essa necessidade. As pessoas gostam de comentadores como Vasco Pulido Valente, pela elegância da escrita, mas também pelo seu estilo muito cáustico. Mesmo que não se revejam e achem que ele está duas ou três oitavas acima, como quando chamou a António Guterres um «pedaço de carne baptizada», seguem aquilo para verem qual é o grau de insulto a que se consegue chegar.
Considera-se uma pessoa de direita ou tem algum outra categoria mais específica na qual prefere ver-se representado?
Fiz um grande esforço para que as minhas convicções de esquerda ou direita não perpassem para este livro, não em nome do mito da objetividade, porque este livro não pretende ser científico, mas porque acho que isso é absolutamente irrelevante. Sou uma pessoa bastante low-profile e procurei muito um desvanecimento do meu próprio eu. Não posso estar a criticar a tirania da opinião e da notoriedade, e acabar por entrar nesse jogo do vedetismo ou da personalidade.
Sente que há um pensamento crítico por trás das nossas manifestações culturais?
A manifestação cultural hoje já pressupõe uma lógica feérica que, em si mesma, é incompatível com o pensamento. Não que eu tenha uma visão demasiado carregada do que é um pensamento mas, sem dúvida, quando se investe no espetáculo, este ganha predominância. Isto nota-se, por exemplo, na presença televisiva de um opinador, em que o que as pessoas admiram é a performance, as suas qualidades cénicas, a colocação de voz, se esteve bem ou não, e é muito difícil conciliar isso com um pensamento… Para lhe dizer as coisas muito simplesmente: sobre questões tão complexas como a crise no Médio Oriente, a eutanásia ou a eleição do Trump, acho que é quase necessário ter uma cultura enciclopédica para ser capaz de opinar com um pensamento estruturado e informado. Mas é o que nós vemos diariamente: os tudólogos a opinar sobre uma quantidade infinda de questões relativamente às quais me custa às vezes ter uma opinião sobre uma só delas. Hoje, como há uma grande escassez de informação da parte de quem opina, os que o fazem têm de criar um superavit, uma overdose de opinião, precisamente para camuflar a sua ausência de saber e de cultura. E acho que o problema é mais grave entre nós do que noutros países. Não há um sedimento cultural que permita às pessoas opinarem à velocidade e na quantidade com que o fazem.
Mas há alguma razão que justifique o agravamento dessa tendência no nosso país?
O paroquialismo acaba por afunilar tanto que… Para lhe dar um exemplo, no outro dia telefonaram-me para ir à televisão falar. Eu não podia, não era algo em que estivesse interessado. E quando estiveram a percorrer a lista das alternativas, eram sempre os mesmos nomes que ocorriam sempre. Era quase difícil arranjar alguém que não tivesse já o seu espaço. Se eu sugeria, ‘porque é que não falam com A?’, diziam ‘porque esse já fala no programa de terça-feira’. ‘E porque é que não falam com B?’, ‘porque esse já tem um lugar cativo ali’… Portanto o paroquialismo faz com que o corredor seja muito estreito.