Estamos na época dos prémios e das galas. Há prémios para todos os gostos e galas para os apresentar com grande aparato. Galas para os prémios de cinema, para os prémios de literatura, para os prémios de jornalismo, para os prémios de futebol, para os prémios de restaurantes, etc. Uma fartura.
Há duas semanas realizou-se em Espanha uma gala para anunciar as estrelas Michelin 2017. Não me lembro de que as estrelas fossem anunciadas numa cerimónia pública – mas admito que tenha andado desatento. O certo é que esta gala teve para nós, portugueses, significado especial, pois vamos ter 26 estrelas Michelin no próximo ano: 5 restaurantes com duas, e 16 com uma.
Portugal encheu-se de orgulho. Mas não nos precipitemos: entre os 21 restaurantes contemplados não há um único que sirva cozinha tradicional portuguesa. Aliás, entre os 20 chefs distinguidos, há 6 estrangeiros: Benoit Sinthon, Hans Neur, Dieter Koschina, Joachim Koerper, Miguel Laffan, Willie Wurger e Sergi Arola.
Apesar de Bruno Martins dizer no último B.I. que «a identidade de cada país parece ter ganho importância aos olhos dos inspetores do Guia Michelin», eu penso exatamente o contrário. Os inspetores do Michelin desprezam olimpicamente a identidade de cada país.
Conheço alguns restaurantes premiados com estrelas e devo dizer que não guardo de nenhum deles boas recordações. Num, serviram-me como sopa um caldo incolor com um fígado de pato a boiar. O líquido não tinha qualquer sabor e pensei que o segredo estaria no fígado. Meti-o na boca, trinquei-o, mastiguei-o, mas aquilo parecia sola de pneu. Por mais que fizesse não consegui destruí-lo. Como era um jantar de cerimónia, não podia devolver o fígado ao prato. Engoli-o então inteiro e tive uma sensação horrível: pensei que ia sufocar. Vi-me aflito – mas finalmente o fígado lá passou pela garganta, qual Cabo das Tormentas, e pude sossegar.
Noutro restaurante premiado pedi um borrego assado. Veio uma pasta apresentada como se fosse um pudim, feita numa forma, colocada no centro do prato. Julgo que era carne de borrego desfiada aglutinada com uma matéria que não identifiquei. Em cima do ‘pudim’, dois pedacinhos mínimos de borrego mal passados e um pé de hortelã a enfeitar.
Noutro restaurante de nouvelle cuisine – este não premiado – pedi um caldo verde, que aliás estranhei ver na lista. Trouxeram-me o dito, acrescentando que depois viria o chouriço. Qual não é o meu espanto quando se aproxima uma empregada com uma lata de spray na mão e deita um esguicho para dentro do prato. De facto sabia a chouriço. Mas com franqueza, um chouriço em spray…
Nestes restaurantes, antes da refeição, vem geralmente um empregado apresentar uma ‘sopa’ com grande pormenor. Após cinco minutos de conversa, põe à nossa frente um dedal – rigorosamente um dedal – com um líquido que mal conseguimos saborear mas que, de acordo com as boas maneiras, temos de dizer que é bom.
Portugal tem uma cozinha riquíssima, das melhores do mundo.
E não digo isto por patrioteirismo. Vivi em França vários períodos e conheço boa parte da Europa, estive no Japão, estive na Índia, estive no Paquistão, estive em Macau, estive na Costa Leste e Oeste dos EUA, estive no Norte de África e no Sul de África, estive no Brasil – e experimentei muitas cozinhas. E digo: a cozinha portuguesa é excecional. É muito variada – tem marisco, tem peixe, tem carne – e é muito inventiva. Basta ver as 100 maneiras de cozinhar bacalhau. Temos pratos cozidos, fritos, grelhados, guisados, assados no forno… Temos legumes que proporcionam excelentes saladas frescas. Ora, com isto, será normal que os inspetores da Michelin venham cá e só premeiem a nouvelle cuisine, a cozinha francesa, muito sofisticada mas muito menos genuína e variada do que a nossa?
É certo que são franceses – mas o Guia não pretende ser universal? Ou é um guia para franceses em viagem pelo estrangeiro?
Peço desculpa, pela afirmação, mas: o Guia Michelin é um insulto à nossa cozinha. Alguns restaurantes que conheço e servem ótima cozinha portuguesa – O Polícia, o Gambrinus, o Solar dos Presuntos ou o Pabe em Lisboa, o Porto de Santa Maria no Guincho, o Fialho, a Tasquinha do Oliveira ou o Botequim da Mouraria em Évora, a Maria no Alandroal, o Xana na Aldeia da Serra (Redondo), o Isaías em Estremoz, a Bolota na Terrugem (Elvas), o Capelo ou o Baixa-Mar em Santa Luzia (Tavira) – são pura e simplesmente desprezados pelos inspetores.
Para já não falar no Gigi, da Quinta do Lago, onde nunca fui mas que já me ofereceu inigualáveis iguarias na sua casa de Lisboa
Mas o Guia Michelin nem é bom para os franceses. Quando eles vêm cá, o que querem: conhecer a cozinha portuguesa ou comer a comida francesa que conhecem de ginjeira?
Julgo que os portugueses, em vez de exultarem com as 26 estrelas Michelin, deviam desprezar este guia – que nos despreza. Com a marca Michelin, bons só são os pneus.