Frantumaglia é um estado de alma, uma selva de fragmentos, sentimentos contraditórios que se tornam um martelar persistente. A mãe usava a palavra em dialeto sempre que lhe dava esse mau estar repentino, ou o estar de repente ficava esmagado por esse ruído de sensações desconexas. “Lixo a boiar na água lamacenta do cérebro”. Ficava tonta, a boca sabia-lhe a ferro. Desta mãe da misteriosa Elena Ferrante, pseudónimo da autora que se tornou famosa nos quatros cantos do mundo com a tetralogia “A Amiga Genial”, ficamos a saber em “Frantumaglia” que foi costureira, o que Ferrante também gostava de ter sido se não se tivesse encontrado em criança com as letras. O livro, editado pela primeira vez em Itália em 2003, chegou em novembro às bancas numa versão alargada, com cartas, ensaios e entrevistas da autora entre 1991 e 2015, mais de 20 anos de um sucesso crescente marcado pelo anonimato. As quase 400 páginas devoram-se, à procura não se sabe muito bem do quê. No final, até a última reivindicação de que a identidade da italiana foi finalmente revelada – e que será Anita Raja – se torna repugnante. Adere-se à causa. Ferrante diz que não escolheu o anonimato, mas a ausência.
O trabalho não é anónimo, tem o nome que escolheu ser público. A ausência permite-lhe descolar-se do livro, deixar que ele siga o seu caminho. A ausência é o espaço de criatividade absoluta, onde a verdade não tem de ser “domesticada” para soar bem, para não ferir. Ao ponto de ficar um aviso: se alguma vez tiver de quebrar esse princípio, Ferrante não deixará de escrever. Mas deixa de publicar.
Da timidez ao manifesto da ausência
“Acredito que os livros, quando são escritos, não precisam dos autores. Se tiverem alguma coisa a dizer, mais cedo ou mais tarde vão encontrar leitores. Se não tiverem, não encontram.” “Frantumaglia” (Escombros, Relógio d’Água) está organizado de forma cronológica e começa nas primeiras cartas entre Ferrante e os pacientes editores – que hoje podemos assumir que estão bem na vida à conta dela, mas no início adotaram uma mulher difícil, que dizia ter livros terminados mas não os enviava, dava respostas de páginas às perguntas dos jornalistas. E também não as enviava. Nas primeiras páginas há essa mulher (é quase certo que será mulher) meticulosa, obstinada. As primeiras entrevistas chegam quando “Amor Molesto”, o primeiro livro publicado depois de muitos escritos, é adaptado ao cinema em 1992. Ferrante mede palavras, faz de cada sim ou não um testamento, recusa ir ver a estreia do filme a Roma por recear que um qualquer acidente, onde se incluem principalmente os acidentes emocionais, a impeça de escrever.
Por detrás da ausência, há o desejo neurótico da intangibilidade, ideia que repete. “Na minha experiência, o difícil prazer da escrita toca todas as partes do corpo. Quando terminas um livro, é como se o teu ser mais íntimo tivesse sido pilhado e tudo o que queres é recuperar distância, voltar a ser um todo.”
A visão do livro terminado como a expulsão de algo orgânico, um filho num parto violento, produto do ordenar da selva de fragmentos da experiência pessoal, das ideias próprias e dos outros, dos lugares reais transpostos para a verdade crua da narrativa, percorre o pensamento de Ferrante desde os primeiros tempos em que lhe pedem para justificar a sua decisão de não aparecer, de não dar autógrafos. “Escrevi o meu livro para me libertar dele, não para ser sua prisioneira”. Quando um livro fica pronto, porquê continuar a misturar “a minha respiração com a dele”?, questiona a certa altura.
Com o tempo, e depois da publicação de “Dias do Abandono” e dos dez anos de interregno antes da edição de “Amiga Genial”, as respostas vão-se tornando mais sucintas, mas também sarcásticas. Ferrante faz da ausência, que nasce nessa visão orgânica do livro e na timidez do seu temperamento, um manifesto contra a lógica editorial e a presunção dos media ao quererem, a todo o custo, inventar um autor, preencher esse vazio que está convencida interessar pouco ou nada ao leitor. Testemunhar contra a “autopromoção obsessivamente imposta pelos media” torna-se um imperativo, a razão central de insistir em ser Elena Ferrante, nada mais que estas 13 letras. Por que o exigem aos autores de hoje se não o fizeram com Shakespeare, com os clássicos? “Até Tolstoi é uma sombra insignificante se for passear com Anna Karénina”.
Pistas da mulher napolitana
Nas entrevistas, porém, não faltam respostas que a vão revelando e a autora assume que os livros são a forma de a encontrar, mesmo não sendo autobiográficos, lutando para que não sejam. Só admitindo que a história o é quando se separa do autor. Tem duas irmãs mais novas, fala de uma despensa que tinham em casa e como era este o lugar para onde fugia à procura da atenção de uma mãe bonita, de quem o pai tinha ciúmes, que chegou a pensar que um dia fugiria e não voltava. Mas voltou. Começou a escrever na adolescência, devorava livros. Devora: anda sempre com um livro e com um bloco de notas. “Menzogna e sortilégio” (1948), de Elsa Morante, é a obra que mais influenciou a sua escrita.
Cresceu em Nápoles, cenário dos romances, viveu em muitos outros sítios (os últimos rumores dizem que viveu em Portugal). Estudou literatura clássica. Tem medo de alturas. Desde que pequena escreve todos os sonhos de que consegue lembrar-se. “Sujeitar a experiência do sonho à lógica do estado de vigília é um exercício extremo de escrita. O sonho tem a virtude de nos mostrar de forma clara que reproduzir algo de forma exata é sempre uma batalha perdida”.
Tem uma vida privada e pública de que gosta. Dá aulas e faz traduções, não sabemos de quê nem onde. Trata das coisas da casa quando se quer distrair. Escreve com perfeccionismo, quando o quer fazer, num espaço pequeno ou no recanto de um espaço maior. Tem pelo menos duas filhas.
Numa entrevista diferente de todas as outras, em que não se repetem as perguntas sobre por que se esconde, se algum dia mudará de ideias, se não sente que a ausência se tornou precisamente o contrário e se sobrepõe hoje à qualidade dos livros na narrativa também ela tão absorvente do seu sucesso, Ferrante fala da arte que a rodeia quando escreve. Uma reprodução de um quadro de Henri Matisse com uma mulher a ler numa mesa com uma criança, uma ilustração de Mara Cerri, um seixo que parece uma coruja, um leque pintado do início do século XIX dobrado na caixa antiga e uma carica vermelha gasta “que apanhei na rua quando tinha doze anos e consegui guardar toda a vida.”
Os estudos feministas, que percorrem os seus livros, libertaram-na da primeira ideia com que se deparou ainda em miúda sobre os caminhos da literatura, a de que só homens conseguiam, podiam escrever grandes histórias. As heroínas clássicas Dido e Medeia tornaram-se os seus modelos da identidade feminina, inspiraram as protagonistas do seus romances, mulheres que sofrem e encontram forma de à sua maneira recusar ou aceitar o sofrimento. O desaparecimento, como emancipação definitiva, é um tema recorrente.
Lénu e Lilla, as protagonistas da tetralogia napolitana de “Amiga Genial” (que era para ser um único livro mas saiu em quatro grandes volumes) são, porém, as personagens que melhor a retratam. As duas, juntas, como se esse pedaço de frantumaglia da autora se arrumasse na história das duas meninas que constroem uma amizade, uma ligação indestrutível, ao deixarem as suas bonecas brincarem uma com a outra num pátio sujo de Nápoles. “Não nos acontecimentos específicos das suas vidas, não na sua concretude de pessoas com um destino, mas no movimento que caracteriza a sua relação, na autodisciplina de uma (Lénu) que de forma contínua e brusca é despedaçada quando colide com a imaginação indisciplinada da outra.”
Ferrante revela que Lilla foi inspirada numa amiga de infância, que já morreu, uma daquelas pessoas boas em tudo e com uma curiosidade sem limites, daquela que o tempo e a disciplina tendem a roubar. Mais não diz. Está a escrever outro livro, está sempre a escrever outro livro. Se tivesse publicado tudo o escreve saía um livro seu a cada seis meses, não o faz porque escreve para dominar o jogo das palavras, a arte da narrativa, que ao mesmo tempo sabe que corre o risco de se tornar artificial ao menor deslize, perder o tom verdadeiro que acredita ser o segredo da empatia que geram os seus livros em pessoas de todo o mundo, que não têm a violência e o machismo de Nápoles no sangue.
Nunca baixar a guarda
Os livros só são publicáveis, conta, quando quis fugir deles, quando sentiu que nunca seria capaz de contar as histórias que encerram, mas contou. Com o tempo, diz ter aprendido a gostar mais das páginas em bruto do que da escrita aperfeiçoada, mas mesmo assim continua a escrever como exercício de procurar as verdades mais difíceis, como a corda que puxa a água do fundo do poço – com a proteção de o poder fazer sem ter expor-se, de vender-se com o livro. Como vamos viver sem Lilla e Lénu? Ferrante já seguiu para outra, mas elas continuam. São a luta interna de todas as raparigas, a fronteira íntima entre o que queremos ser e o que somos, o jogo de espelhos das amizades que escolhemos ter umas com as outras, que nos espicaçam, que nos frustram, com que nos medimos, que nos dão colo, que são lugares seguros, que muitas vezes não conseguimos perceber por que insistimos nelas. E as coisas que não se percebem são as mais difíceis de escrever, diz Ferrante. O que de melhor podem levar os leitores dos seus livros?, perguntou-lhe uma jornalista do “The New York Times” em 2014. “Mesmo que sejamos constantemente tentadas a baixar a guarda – por amor, por cansaço, por simpatia ou bondade – nós, mulheres, não o devemos fazer. Podemos perder de um momento para o outro o que alcançámos.” Frantumaglia termina com um capítulo “Sobre o autor”. Há sete linhas com os livros que escreveu, incluindo a história infantil “A Praia de Noite”. Seguem-se cinco páginas em branco. Sacana. Obrigada.