Éramos tão felizes em 1995, quando António Guterres foi eleito primeiro-ministro. O mundo piorou bastante, disse ontem o novo secretário-geral das Nações Unidas na tomada de posse.
“Há 20 anos, quando prestei juramento como primeiro-ministro português, o mundo estava a surfar uma onda de otimismo”, lembrou Guterres para contrapor esses anos dourados ao estado atual das coisas. “Pensava-se que se viveria para sempre num mundo de prosperidade para todos.” Mas não. “O final da Guerra Fria não foi o fim da História. A História foi congelada e voltou com força renovada.”
Não foi um discurso otimista, o primeiro de Guterres como secretário-geral da ONU. Não podia ser. O mundo nunca foi um lugar pacífico, mas parecia mais fácil em 1995. “Os conflitos tornaram-se mais complexos e interligados do que antes. Foram feitas violações horríveis dos direitos humanos.” Guterres apontou “o terrorismo global, a instabilidade mais generalizada”, concedeu que “nos últimos 20 anos muitos indicadores sociais melhoraram e diminuiu o número de pessoas a viver abaixo da pobreza absoluta”, mas aconteceu a maior crise económica depois da Grande Depressão.
Foi assim, perante o olhar atento de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa, que Guterres inaugurou o mandato de cinco anos – que começará formalmente no primeiro dia de 2017 – como secretário-geral daquela instituição, criada em 1945.
O antigo primeiro-ministro prometeu que, com a sua liderança, chega a “hora de mudar”. Numa mensagem claramente alicerçada na necessidade de os líderes mundiais porem a mão na consciência, Guterres falou numa cada vez maior e mais óbvia “incapacidade” da comunidade internacional e da própria ONU para impedir e prevenir os conflitos e a guerra, num mundo cada vez mais “complexo” e “fragmentado”. “Hoje, a paz não existe”, admitiu.
Guterres focou-se na necessidade do aumento da capacidade da ONU em matéria de prevenção de conflitos. Deu os exemplos do Sudão, da Síria e do conflito israelo-palestiniano como casos que espelham essa imprescindibilidade. O antigo primeiro-ministro prometeu igualmente “reformas profundas” na administração e gestão da ONU, nomeadamente nos procedimentos “excessivamente burocráticos”. O novo secretário-geral da organização defendeu que a atuação das Nações Unidas deve estar direcionada para os “resultados e não para os processos”, pelo que apelou ao apoio dos Estados-membros na liderança de uma reforma de “simplificação de procedimentos”.
No seu discurso, Guterres deu importância central aos Acordos de Paris sobre as alterações climatéricas, para que o “mundo a ser herdado pelas crianças” se baseie nos valores da Carta das Nações Unidas – sobre a qual o ex-ministro pousou a sua mão esquerda, antes do discurso, jurando perante a assembleia “exercer com toda a lealdade, em consciência, todas as funções (…) confiadas enquanto secretário-geral da ONU”.
Interrogado sobre quais poderão ser as relações da ONU com o novo presidente americano, Guterres revelou-se cauteloso. Na conferência de imprensa a seguir ao discurso da tomada de posse, Guterres afirmou que “falar é a única forma de estabelecer confiança entre instituições. Só assim se consegue trabalhar”. Guterres registou que “os Estados Unidos mostraram vontade de cooperação neste desafio” de fazer da ONU uma organização “que seja um valor acrescentado para todos, principalmente para as principais potências, incluindo a que nos acolhe aqui em Nova Iorque”.
Na Síria, “é preciso acabar com a guerra que ninguém ganha”: “Hoje, nas guerras, não há vencedores. A crise da Síria é exemplo disso.” Será umas das prioridades imediatas: “A crise síria é absolutamente essencial e é crucial mobilizar os esforços para pôr em prática uma diplomacia para a paz”, afirmou Guterres, que diz ser necessário “criar pontes entre as partes envolvidas no conflito”. O novo secretário-geral comprometeu-se a ser “um mediador honesto”: “Só assim é possível.”