Sandra Felgueiras esteve recentemente no centro das atenções depois de ter entrevistado Pedro Dias. Numa conversa com o i, falou sobre vários aspetos da sua vida, incluindo o escândalo judicial que envolveu a sua mãe.
Qual é a primeira imagem que tem de si própria?
O meu tio-avô Toneca, que vivia com a minha avó materna, foi uma pessoa muito importante na minha vida. Tinha os meus cinco anos quando ele me disse: “Um dia vais trabalhar na televisão”. Nunca dei demasiada importância a esta afirmação, achava que era uma daquelas coisas que se diz a uma neta por achar engraçado ela gostar de contar histórias. Com o evoluir da minha vida percebi o quão intuitivas algumas pessoas conseguem ser.
Como foi a sua infância?
Convivi muito com o lado da minha mãe, os pais do meu pai morreram muito cedo. O pai da minha mãe viveu sempre no Brasil, só regressou a Portugal quando já estava doente. Tanto que a minha avó casou com ele, foi para o Brasil e a minha mãe nasceu lá, no Rio de Janeiro.
Tinham uma padaria?
Não (risos). O meu avô, segundo reza a lenda, tinha um hotel e tinha coisas ligadas ao comércio, mas não era uma padaria. E não se chamava Zé, era Bernardino (risos).
Acha que o facto de a sua família ter saído de Portugal teve algum impacto na forma como encara o mundo?
Conscientemente não, inconscientemente talvez. Sempre fui criada tendo em conta estes horizontes muito largos, que o mundo é um só e o céu é o limite. Apesar de ter vindo para Portugal muito tarde, a verdade é que o meu avô já tinha regressado a Portugal quando eu nasci. A minha vida é preenchida por duas coisas: cheiros e músicas. Viajo no tempo com isso. E ainda hoje adoro mocambo, não consigo sair de casa sem isso, porque esse cheiro faz-me lembrar o meu avô… Lembro-me dele sentado junto à porta e sempre a falar com sotaque brasileiro. Recordo-me do fascínio que tinha por ele falar um português diferente do meu, mais adocicado. Acho que o português do Brasil tem mais açúcar, é mais doce, mais leve, menos duro.
Qual foi a sua primeira frustração?
Não vencer uma prova de natação. Não gosto de perder nem a feijões. Nessa prova, 50 metros costas, perdi por milésimos de segundos. Bati com a mão e estava convencidíssima de que tinha ganho, mas quando olhei para o placard da pontuação vi que tinha ficado em segundo lugar por milésimos de segundo. Saí da piscina, fui ter com o professor Bezerra. Naquele dia olhei para ele com um ar frustrado a pensar “tu não foste capaz de me fazer ganhar”. Então, saí da piscina direta a ele, tirei a touca e atirei-a para o chão e disse “não nado mais”. Tinha oito anos. Voltei a nadar quando pratiquei polo aquático, mas natação livre nunca mais fiz.
Acha que a vida é ganhar ou perder?
Não acho, mas naquela idade achava.
E nesse aspeto da sua personalidade sai a quem?
Toda a gente acha que eu sou muito parecida com a minha mãe, mas sou muito mais parecida com o meu pai, em quase tudo. De feitio sou igual ao meu pai. Ele é muito impulsivo e faria algo deste género. O que não conseguimos fazer bem, não fazemos. Esse é se calhar um dos nossos maiores defeitos.
Quando começa a sentir que é a filha da presidente de câmara?
Com 11 ou 12 anos. Coincidiu com a minha entrada no liceu. A minha mãe entrou na vida política primeiro na assembleia municipal, depois foi convidada para ser vereadora da Educação quando era presidente o Júlio Faria. Além disso, tinha sido professora em Felgueiras. Às vezes as pessoas perguntam-me por que uso o apelido Felgueiras se não é o meu último nome. É uma inevitabilidade do sistema, a minha mãe era a pessoa mais conhecida da terra. Eu era a filha da Fátima Felgueiras. Quando me dizem “podias assinar Sandra Oliveira” penso “podia, mas eu própria não me identificava com outro nome. Eu era a Sandra Felgueiras, sempre me trataram assim”.
Quando vem para Lisboa, aos 18 anos, tenta ‘libertar-se’ da sua mãe?
O facto de ser a Sandra Felgueira nunca foi mau para mim. Foi sempre uma coisa da qual me orgulhei muito. Mas tenho plena consciência de que quando fiz a escolha de vir para Lisboa, fi-la porque tinha a noção de que fazer um curso em Lisboa me abria outras portas, mas também queria e tinha necessidade de fugir daquele sítio pequeno, onde era a filha da Fátima Felgueiras. Tive a necessidade de me autonomizar, de ter uma identidade que fosse só minha, de me obrigar a ver-me nos olhos dos outros pelo que sou capaz de fazer e não pelo que os outros perspetivam que sou capaz por ser filha de quem sou.
Mais tarde, sentiu isso?
Houve um episódio em particular que me magoou: quando estava no “Expresso” e o Henrique Garcia, casado com a Margarida Veloso, que tinha sido juíza em Felgueiras, era na altura o diretor do Jornal 2. Houve uma saída em massa de pessoas para a TVI e ele precisou de contratar – terá perguntado a algumas pessoas quem é que elas achavam que pudesse ir para a RTP fazer política e falaram em mim. A Margarida conhecia-me muito bem, conhecia os meus pais e também lhe terá dado boas referências minhas. Recordo-me, anos mais tarde, de ouvir uma conversa em que diziam que eu só tinha ido parar à RTP porque a minha mãe teria pedido ao Jorge Coelho [esse favor]. Isso é algo que guardo com mágoa, porque quem me conhece de origem sabe que eu fui parar ao “Expresso” porque participei num concurso chamado 20 Novos Valores, aberto por José António Saraiva [diretor do Expresso na altura]. Ninguém sabia quem eu era. Na altura em que me candidatei, em 1999, a minha mãe era uma mera presidente de câmara de uma terra pequena no interior do país, sem qualquer relevância para o panorama político nacional. Candidatei-me, ganhei e foi assim que fui para o “Expresso”.
Voltando um pouco atrás, como é que a menina que vem de Felgueiras chega à cidade grande?
Tinha uma vida em Felgueiras muito boa, mas muito alicerçada numa rede de amigos, muito além da minha mãe. Ela sempre foi uma pessoa muito ausente e muito participativa na vida política, sempre vivi e sobrevivi comigo própria, com a minha avó, com os meus tios avós, com o meu pai, a saber qual era o lugar da minha mãe, sem despeito nenhum em relação à sua escolha. Na vinda para Lisboa, o contraste maior não foi a ausência da minha mãe. O pior foi a total disparidade de ambientes. As pessoas que eram de Lisboa e estudavam na faculdade regressavam a casa no final das aulas e eu ficava num quarto alugado em frente à universidade. Faltava-me os meus amigos, as minhas raízes.
Chorou?
Chorei muito, tornei-me anorética…
O que aconteceu?
Essa é uma parte que não gosto de falar muito… Também na altura havia os estereótipos da beleza: a Kate Moss foi das que mais me influenciou. Mas quando vim para Lisboa foi muito duro, na altura tinha um namorado – de Felgueiras, com quem namorei sete anos. Não veio comigo e isso foi muito traumático. Perdi a minha rotina, perdi a minha matriz básica, que eram as minhas emoções, as pessoas de quem gostava, a falta de conforto. Tudo aquilo foi mau porque eu não me integrei. As pessoas da faculdade… não eram frias, mas eram diferentes de mim. No Norte são muito frontais, muito abertos, muito disponíveis e aqui as pessoas tinham as suas vidas. E compreendo isso, mas não me senti amada como era no Norte. Era gozada na faculdade, chamavam-me a menina do troley, porque às sextas-feiras ia para as aulas do José Rodrigues dos Santos com a minha mala para apanhar o comboio. Ainda hoje odeio passar por Santa Apolónia, dá-me uma espécie de ‘friozinho na espinha’. Passo em Santa Apolónia e lembro-me daquele sentimento que tinha ao voltar de Felgueiras e não querer regressar, era tudo muito claustrofóbico ao contrário. Aquele primeiro ano foi tão traumático que a minha mãe inscreveu-me na Universidade do Minho e pediu a transferência à minha revelia. Quando me apercebi disso fiquei zangadíssima. “Pesas 38 quilos…”, dizia-me.
Não comia?
Comia uma folha de alface e bebia dois ou três litros de água.
Recorreu a psicólogos?
Não. A minha mãe levou-me uma vez a um endocrinologista, mas eu disse-lhe logo “pode dizer o que quiser, eu não vou comer na mesma. Não quero ser gorda”. Mas pesava 38 quilos…Estava anorética. Olhava para o espelho e via-me gorda. Qual é a explicação? Não tenho. A não ser o facto de me ter sentido tão desenraizada… Acho que um dos maiores problemas da vida é a falta de amor. Não me sentia amada, sentia-me carente. Tinha namorado, sim, mas estava longe. Não tenho fotografias dessa altura, a minha mãe incumbiu-se de as rasgar todas.
Não acha que é bom vermos as coisas que não queremos voltar a ser?
Sou uma pessoa com muita autoestima, gosto muito de mim. Acho que as pessoas quando perdem a autoestima perdem o controlo sobre si próprias. E acho que esse foi o único período em que não tive autoestima. Não posso ter tido.
Como se livrou da anorexia?
A minha anorexia durou um ano ou dois. Quando me dizem que a anorexia é uma coisa que fica lá gravada, acho que não fica. Eu como muito bem, não me privo de nada, lido bem com a minha imagem. Deu-me o ‘clique’ em Cabo Verde, durante umas férias com a minha mãe. Estava tristíssima e disse-me “eu não consigo conceber que tu peses isto, que tu não gostes de ti ao ponto de não comeres”. O meu pai fazia o jogo ao contrário: íamos a um restaurante e pedia para ele e dizia “para a minha filha não é nada”, mesmo para me fazer sentir que eu estava errada. Ficava com um prato vazio à minha frente. E a minha mãe fez-me o contrário. “Dói-me na alma que tu não gostes de ti própria”, dizia. Até aquela altura, nunca me tinha apercebido que não comer e fazer o que eu fazia a mim própria significava não gostar de mim. Eu achava o contrário, achava que estava a preservar-me, que estava a cuidar da minha imagem. Quando a minha mãe tem aquela conversa comigo… tive um clique: naquela noite comi, na manhã seguinte voltei a comer, e assim sucessivamente. Comecei a comer e não fiz nenhum tratamento para isto.
O que aconteceu depois?
Fui para Barcelona e engordei vários quilos. Cheguei a pesar 55 quilos, o que é muito para mim, hoje em dia peso 49. Para quem mede 1,59m era bastante. Quando fui para Barcelona, fui numa espécie de ato de contrição para uma vida aberta. Foi o ano da minha libertação, vivi coisas que nunca tinha experienciado em Portugal, fui com duas grandes amigas e saí de lá só com uma.
Porquê?
Porque é fácil desentendermo-nos. É fácil seres amigo de alguém com quem apenas partilhas o espaço exterior. Quando estás a partilhar casa, as coisas alteram-se. Mas foi o ano mais extraordinário que vivi, foi o ano da descoberta. Em Barcelona encontrei-me com esse outro mundo, muito maior do que aquele em que vivia, em Portugal. Tive amigos de Itália, Argentina, Bolívia Equador, França. E quando regressa a Lisboa, vem com uma visão muito mais alargada…
E triste, vim triste.
Porquê?
Não queria vir.
Mas já vinha com um objetivo: trabalhar no “Expresso”.
Fiquei em Barcelona de outubro de 1999 a julho de 2000. Julgo que em fevereiro abre o concurso 20 Novos Valores. O objetivo era recrutar 20 novas pessoas e candidataram-se mais de 1000. Regressei a Lisboa, tive duas semanas de curso intensivo e foram selecionadas duas pessoas. Fui uma delas. Mas quando voltei de Barcelona tinha duas coisas: um estágio curricular, que me tinha calhado na SIC, e o estágio no “Expresso”, que tinha ganho pelo concurso. Recordo-me que o que tinha de começar primeiro era o do “Expresso” e perguntei ao José António Saraiva se podia começar na SIC para viver as eleições legislativas no ambiente televisivo e ele disse-me que não havia qualquer problema. Tenho a melhor consideração e a melhor imagem do José António Saraiva porque foi naquela altura para mim uma espécie de pai – foi ele que, quando tive de escolher entre o “Expresso” e a RTP, disse “vai para a RTP, tens muito sangue na guelra e jeito para a televisão. Tens tempo para voltar ao Expresso”. E assim foi.
Quando entra numa redação com um peso histórico, o que sentiu?
Senti-me no jornal mais importante do mundo. Cada vez que subia aquela escadaria na Duque de Palmela sentia-me importante. A primeira vez que vi o José António Saraiva e o José António Lima senti que estava perante os dinossauros da comunicação, pessoas importantes.
Porque foi logo para a política?
Porque me puseram lá. É uma incógnita que tenho na minha vida. Eu era para ir para a secção Vidas, mas quando regressei do estágio na SIC, puseram-me a trabalhar na política.
E o papel da sua mãe não terá tido uma influência nessa decisão?
A minha mãe era uma política do interior. Entretanto começa a assumir algumas funções mais importantes, porque o Guterres chamou-a para o secretariado do PS. E foi precisamente nessa altura, em 1999, que começa a ter uma relevância que antes não tinha. Ela só se torna presidente da câmara quando o Júlio Faria saiu – isso terá sido em 98 ou 99 e coincide com a minha ida para o “Expresso”. Do ponto de vista da minha capacidade de ação ao nível jornalístico, [a política] era uma área que era fácil, eu conhecia os dossiês, lia jornais todos os dias, as conversas em minha casa eram muito políticas, a minha mãe falava de política ao almoço, ao jantar, quando estava connosco… – discutíamos o que acontecia no país, as derivações, os impostos… não eram temas estranhos.
E a seguir?
Em maio de 2000, dá-se a debandada da RTP para a TVI. O Henrique Garcia precisa de preencher algumas vagas no Jornal 2 e convida-me.
E aí lida com as acusações feitas contra a sua mãe. Como reagiu?
Estava no início da minha carreira, com vontade de aprender o máximo, de me autonomizar como ser humano, de me afirmar como a Sandra Felgueiras que existe para lá da Fátima Felgueiras. Estava no “Expresso” – durante quatro meses trabalhei no “Expresso” e na RTP ao mesmo tempo – e disseram-me que estavam a mandar umas denúncias anónimas sobre a minha mãe.
Quando o percebeu?
Nesse dia à noite, quando cheguei a casa, vejo uma reportagem na SIC em que um dos melhores amigos da minha mãe dizia as maiores alarvidades sobre a minha mãe: que tinha um saco azul, que era corrupta… E nesse instante dá-se um clique muito estranho na minha cabeça – como é possível um amigo próximo da minha mãe dizer uma coisa sobre ela que não corresponde à verdade? É o primeiro sintoma de intrusão: há qualquer coisa estranha na minha vida que me persegue. Vim para Lisboa para ser eu própria e, de repente, vou ter de passar a perceber o que se passa com a minha mãe e a não viver a minha vida. Comecei a olhar para a minha carreira e para as minhas possibilidades de ser jornalista de forma completamente diferente. Achava que tinha todo o mundo à minha frente e naquele instante percebi que não tinha nenhuma hipótese de progressão no meu caminho.
Como se sentiu?
Muito amargurada, senti que a minha vida profissional podia acabar ali. A minha mãe foi a primeira grande ‘cabeça de cartaz’ na luta anticorrupção. Da forma mais injusta possível, porque se há coisa que tenho certeza absoluta sobre a minha mãe é que é a pessoa mais honesta do mundo. O termo ‘cabala’ costuma ser evitado, mas as palavras têm de ser usadas com propriedade – a minha mãe foi vítima de uma cabala terrível, num ambiente muito mesquinho e machista. Este foi o momento mais trágico e que mais mudou a minha vida. Gostava de ter tido filhos mais cedo, de ter tido uma vida diferente e não a tive porque primeiro tive de resolver a vida da minha mãe. E muito fui criticada por ter dedicado tanto tempo a resolver os problemas que eram dela.
Na altura falou-se que era um amante da sua mãe que estava envolvido nas denúncias…
A minha mãe tornou-se presidente de câmara e era presidente do PS local. Tinha como chefe de gabinete uma pessoa, Horácio Costa, e tinha ao mesmo tempo o tesoureiro do partido, Joaquim Freitas. Disse-se mais tarde que o Joaquim Freitas tinha um fetiche por ela. A minha mãe estava divorciada e nunca teve nada com esta pessoa. O que se disse e o que se percebeu na altura é que estas duas pessoas se juntaram, congeminaram ali uma estratégia e fizeram crer ao Ministério Público que a minha mãe beneficiava as empresas que davam dinheiro ao partido.
E o que era o saco azul?
Uma conta bancária aberta no nome dos dois, enquanto responsáveis do PS local, no antigo Banco Espírito Santo.Era lá que depositavam os fundos angariados pelo PS para a campanha eleitoral. A minha mãe era presidente no partido – o presidente não controla os fluxos das campanhas, delega. São os tesoureiros que vão buscar o dinheiro. Estes homens criaram um crossfire, dizendo que as pessoas às quais iam buscar dinheiro eram as que tinham processos de licenciamento em curso e que só davam dinheiro para mais tarde terem os seus dividendos. Isto não era verdade: era fácil identificar pessoas que não tinham dado dinheiro ao partido e tinham visto os seus processos aprovados. Não faz sentido que uma pessoa aprovasse a quem deu dinheiro e também a quem não deu. Qual é a construção maliciosa do processo saco azul? É dizerem que a minha mãe o tinha criado para enriquecer quando ela não era beneficiária, pois a conta não estava aberta em seu nome. [Os tesoureiros] teriam aberto conta mas quem mandava na mesma era ela.
Então e como recebia o dinheiro?
Aqui entra o fator perverso e que nunca mais vou esquecer: os meus pais estavam em fase de divórcio, separaram-se antes deste episódio, mas nunca se divorciaram no papel até às imediações deste episódio. Os meus pais hoje estão juntos, sempre tiveram uma relação muito forte, mas a política acabou por os afastar naquela altura. A Justiça demorou 12 anos a ilibar a minha mãe. E este é o problema em Portugal: o tempo da justiça não é o tempo mediático. O tempo em que demoras a fazer prova efetiva da verdade absoluta dos factos não é o tempo dos jornais – este faz com que o mundo inteiro crie uma imagem sobre nós que não é a nossa.
Hoje apresenta um programa em que se faz justiça na hora. Como vive com isso?
Tenho a consciência plena de que nunca farei aos outros o que me fizeram a mim. Essa é a principal razão por que faço o Sexta às 9. Tenho a certeza absoluta de que aquilo que faço semanalmente é a antítese do que me fizeram a mim. Se no primeiro momento em que uma denúncia horrorosa caiu sobre a minha mãe o jornalista a tivesse questionado sobre o que estava a ser dito sobre ela e ela pudesse ter falado, nada disto tinha assumido estas proporções.
Após a entrevista com o Pedro Dias disse “esta pessoa tem um ar tão inocente”…
Não disse isso. Disse “esta pessoa tem um ar tão tranquilo”.
A questão é esta: não acha que essa história [da sua mãe] marca o seu percurso como jornalista – por estar sempre tão preocupada com o facto de ser uma justiça ou uma injustiça – que tende a defender mais do que possa ser justo?
Não acho. Se analisarem aquilo que fiz, já ataquei mais do que aquilo que defendi. Não tenho de todo essa necessidade de defender à viva força aqueles que estão a ser atacados e que são colocados na mira das autoridades. E muito menos com o Pedro Dias. Se acharem que naquele direto posso ter sido excessiva… Eu não sei se fui, não revisitei vezes sem conta para aferir aquilo que disse.
Voltando à fase da tua mãe. Ela acaba por fugir…
Não gosto da palavra foge…
Porquê?
Porque foges quando tens um mandado de captura, tomas conhecimento disso e vais. Outra coisa é não saberes do mandado de captura e decidires livremente que não estás disponível para uma situação destas. A fuga da minha mãe, se quiserem chamar-lhe assim, é algo que advém da minha cabeça. O caso foi tão abjeto que ela nunca percebeu as proporções que isto podia assumir. E assumiu. Com o recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação, que pedia a prisão preventiva, comecei a perceber que aquilo não era uma coisa corriqueira. Tinha de haver algo mais denso por trás e falei várias vezes com o Artur Marques, na altura advogado da minha mãe, sobre isto. Ele dizia-me que não podíamos hostilizar, que não podíamos pôr em causa os juízes, tínhamos de deixar as decisões correrem. Naquela fase da minha vida, com os meus pais divorciados, com a minha tia avó sozinha… Não tínhamos condições para a ter presa. Pior que isso: ela não tinha condições para se defender. Aconteciam coisas tão anormais quanto nós recebermos peças processuais à porta de casa a dizerem “isto também já chegou à PJ”. No processo da minha mãe vi coisas a acontecerem que se me contassem diria imediatamente que era mentira. Mas eu vi-as, eu vivi-as. E vivi-as tão de perto que hoje em dia se me perguntares se tenho uma confiança cega no sistema, não tenho.
Aí aconselha a sua mãe a ir embora.
Não a aconselhei. Nesse dia preparei uma viagem. Marquei várias viagens. Fiz pior que isso: viajei de Lisboa para o Porto, cheguei a Felgueiras e disse-lhe “agora vens comigo”. E fomos as duas para Madrid. Comprei o voo de Barajas para o Rio de Janeiro e ela não sabia de nada – só soube na noite em que cheguei a Felgueiras, na véspera da partida. Foi a viagem mais longa, mais dura que fiz na vida, mas da qual nunca me arrependerei. Estávamos a cruzar a fronteira, em Vilar Formoso, e ouvimos na TSF “Fátima Felgueiras em prisão preventiva” e foi nesse momento que a minha mãe teve a certeza de que o que eu tinha pensado como uma possibilidade era afinal uma realidade.
Como é que ela iria viver para o Brasil? O que está à espera dela?
Nada. Ao contrário de muito do que foi dito, a minha mãe não conhecia propriamente ninguém no Brasil. A minha mãe nasceu no Brasil, o meu avô ficou lá, mas o contacto da família da minha mãe com o meu avô foi muito incipiente.
O que levava?
Ela não tinha nada consigo. A imagem que tenho da minha mãe é uma mala lilás pequeníssima com a qual foi para o Brasil. Dizerem que a minha mãe queria ir para o Brasil é a maior mentira do mundo.
E quando chega lá, o que decide fazer?
A minha mãe não tinha qualquer contacto com o Brasil. Naquelas horas que mediaram o regresso de Barajas até Portugal, fui ligando a alguns familiares que sabia que tinham contacto com outros familiares no Brasil a pedir-lhe encarecidamente que os avisassem que a minha mãe ia chegar ao Brasil. Quando chegou lá, tinha duas pessoas que nunca tinha visto na vida à espera dela no aeroporto do Rio de Janeiro. Ao contrário do que foi dito, a minha mãe não tinha nada pensado, montado, não foi ela que edificou plano algum. Ela podia ficar presa 18 meses e acabou por se provar o que se provou 12 anos depois – a minha mãe foi integralmente absolvida. Onde é que se tinha feito justiça se a minha mãe tivesse sido presa por algo que não cometeu? E podem dizer-me “és filha dela e defendê-la-ias até ao limite”…
E isso é verdade?
É verdade. Eu, Sandra Felgueiras, defendia qualquer um dos meus até ao limite. Mas acima de tudo, tinha outro conhecimento dos factos. Tinha a certeza absoluta – porque convivi de perto com a realidade política da minha mãe – que nada daquilo que era dito era verdade. Conhecia de ginjeira as duas almas que inventaram uma história paranoica sobre a minha mãe. Pior do que isso: percebi a motivação. Percebi o envolvimento que eles tinham com agentes da Polícia Judiciária. Dizerem-me que não há cabalas, não é verdade. Há pessoas que podem pegar na tua imagem e para te destruírem, só para terem o teu lugar, por terem inveja de ti, inventam uma parangona tão grande que consegue convencer meio mundo que tu és aquilo que não és. Isto é possível. Isto aconteceu. Eu podia ter sido capaz de me resignar a isto, podia ter sido capaz de cruzar os braços e dizer ‘ok, vou ficar à espera com a minha mãe presa’. Mas não me arrependo de um milímetro de cada quilómetro que fiz sozinha naquela autoestrada, a sofrer por dentro a imaginar o que seria a chegada da minha mãe ao Brasil, com uma mão à frente e outra atrás.
Ela volta em 2005 e é a Sandra que a vai buscar.
Sim. Propus várias vezes à minha mãe que ficasse no Brasil e ela respondeu-me sempre a mesma coisa: “eu irei a Portugal enfrentar os tribunais e defender-me. Porque é aí que tenho de estar”. Eu dizia-lhe que podia ser presa e ela respondia que ia na mesma. Não tenho qualquer problema em partilhar isto publicamente pela primeira vez: dizerem que a minha mãe fugiu é a maior injustiça que podem cometer com ela. Ela nunca quis ir para o Brasil, eu levei-a para lá. Eu não tinha condições – nem eu, nem ninguém da minha família – para ter uma mãe presa a defender-se do indefensável.
Acha que ficou demasiado marcada por isso?
Talvez a minha mãe fique chateada com o que vou dizer agora… Mas acho que a minha mãe é uma pessoa que hoje olha com muita dificuldade para todas as acusações. Olha inevitavelmente para todos as condenações com renitência. Eu não. Tenho a presunção de inocência muito vincada em mim, nunca olho antecipadamente para alguém como culpado. Se consequência houve do processo da minha mãe em mim é que eu acredito nisso.
Como vive a partir de 2005 até chegar aqui?
Acho que começa a haver uma afirmação gradual. Houve ali um momento em que houve uma viragem que foi o caso Madeleine McCann. Acho que estava a boiar e de repente apareceu uma boia de salvação, agarrei-me a ela com os dois braços e as duas pernas e fiz uma travessia rápida.
E quando começa o Sexta às 9?
Há cinco anos. Mas antes disso comecei por fazer o Hoje, que desenhei de raiz, um projeto que o José Alberto Carvalho, que na altura estava na direção de informação da RTP, me lançou para mudarmos o Jornal 2. As pessoas hoje não se lembram disso, mas foi a primeira vez na história da televisão portuguesa que fizemos o jornal de pé. Hoje vês todos os telejornais com os pivôs em pé e não te recordas que a origem disso foi um jornal chamado Hoje, que começou na RTP2 em 2010. E depois o Nuno Santos chegou à RTP – disse-me que gostava que eu tivesse um programa meu e disse-lhe que queria fazer investigação. E assim foi.
Acha que o seu trabalho no programa é influenciado pelo que passou com a sua mãe?
Nunca direi o contrário: vivo marcada pelo que aconteceu, não só o que aconteceu com a minha mãe. Acho que as pessoas têm de ser intelectualmente honestas para saberem que aquilo que somos profissionalmente deriva inevitavelmente da pessoa que somos. Mas não acho que me tenha tornado uma pessoa demasiado benevolente, acho que a única consequência efetiva é ter-me tornado uma pessoa muito mais justa e criteriosa.
O que lhe passou pela cabeça quando Mónica Quintela, advogada de Pedro Dias, lhe liga a pedir para estar presente no momento da detenção?
Não pensei em nada. Estava no exterior da RTP e recebi uma chamada da Mónica Quintela, que conheço há vários anos por causa do processo da Ana Saltão, inspetora da PJ. A chamada não terá durado mais de 30 segundos e ela disse me para estar em Coimbra às 15h00 – o assunto é Pedro Dias e será um exclusivo. Confesso que encarei a chamada com alguma perplexidade porque nunca tinha feito uma notícia sobre o Pedro Dias. Como era um caso que estava com tanta atenção mediática por parte dos jornalistas dos diários, não fazia sentido eu estar ali a investigar o que quer que fosse. Informei a direção da RTP e fui com um câmara da minha total confiança.
Mónica Quintela disse que a entrevista não estava nos planos e que acabou por surgir.
Exatamente. Ela achava que o Pedro Dias podia ser assassinado porque, como tinha alegadamente matado um GNR e tentado matar outro, podia ser alvo de um homicídio. Tinha de se entregar em condições mediáticas, em que estivesse exposto que ele estava desarmado, indefeso, que se queria entregar voluntariamente à Judiciária. Isso são condições dela, não minhas, a minha única intenção foi cobrir um acontecimento. Quando vi o Pedro Dias, disse-lhe que o queria entrevistar. Ele foi para uma reunião com os advogados, a Mónica Quintela e o marido, e decidiu falar. A entrevista que lhe faço é a possível nas circunstâncias criadas. Podem dizer que faltaram perguntas.
Faltaram?
Faltou muita coisa! Eu não avalio os outros jornalistas por aquilo que fazem bem ou mal quando isso é criado em circunstâncias limites. O que achei valioso no testemunho que tinha recolhido era, por um lado, a versão dele sobre os factos e, por outro, todos os dados do chamado elocutório, da intenção, dos gestos, da aparência com que ele se apresentou perante mim. E foi isso, eventualmente não muito bem conseguido mas foi o melhor que consegui e quis transmitir: à minha frente está uma pessoa que se vai entregar à Judiciária, mas que está perfeitamente tranquila. Não sei se o disse com as melhores palavras ou com as mais adequadas, mas o que queria ter dito às pessoas era que, apesar da angústia que uma situação de entrega às autoridades pode criar em qualquer ser humano que vai ser preso, este homem em momento algum se mostrou assim.
Há quem a acuse de falar sempre na sua mãe nestes casos, dizendo que foi alvo de grandes injustiças.
Se me perguntam se disse isso ao Pedro Dias, disse. Há pessoas que acham que isso pode ser criticável, eu não acho. Eu queria que ele desse uma entrevista, queria saber da boca dele que justificação tinha para o que aconteceu. E naquele momento o que eu lhe disse, e assumo com todas as letras, foi: “você tem duas formas de sair disto – ou dá uma entrevista e explica o que aconteceu aqui no último mês ou é preso e nunca mais diz aquilo que aconteceu, até porque você vai recolher-se ao silêncio por questões processuais. O tempo mediático não é o tempo da justiça, isso eu também aprendi”. Se eu disse ao Pedro Dias que eu própria já vivi um momento de injustiça, que já senti na pele que há verdades que são ditas por nós e que às vezes não correspondem à verdade, disse. Disse-lhe que achava importante explicar o que aconteceu e obviamente aventei os argumentos que achei que eram devidos para que ele soubesse que tipo de pessoa que sou, que tipo de confiança poderia ter naquilo que lhe ia perguntar e que tipo de reportagem iria fazer a seguir. Mas não fiz nenhuma negociação que considere ilegítima: nunca lhe prometi nada que não pudesse prometer, nunca fiz nada do ponto de vista jornalístico que não pudesse ter feito.
Sentiu que ele era um sedutor?
Senti. Senti que era uma pessoa que procura, sem responder a tudo o que lhe é perguntado, que compreendam a forma como ele interpreta a sua realidade. E é uma pessoa que cria à vontade, que cria conforto, não é alguém que crie distância. Mas também já tenho alguma experiência nestas coisas e consegui perceber qual era a atitude dele e porque estava a assumi-la. O que tentei transmitir ao público no direto que fiz logo a seguir foi exatamente a ausência de sentimentos de angústia em relação à detenção e, por outro lado, a consciência que ele tem de uma certa inocência. E nada disso invalida que ele seja ou não psicopata.
Voltou a ver essas imagens?
Voltei. Em relação à forma como me expressei e como passei a mensagem, sei que fiz o que pude fazer. Nunca foi intenção minha inocentá-lo. Como nunca foi intenção minha culpabilizá-lo.