O funcionalismo público como calvário; «desimportantizar» como programa – de vida e de escrita; o dicionário pequeno-burguês do nacional lugar-comum como instrumento de trabalho poético, tão inesgotável quanto eficaz; o humor, aquele que alia a alma fadista à melhor tradição satírica da literatura portuguesa (Nicolau Tolentino, o abade de Jazente) como dispositivo assíduo.
Alexandre O’Neill, que assinou sempre com o apelido irlandês, nasceu em Lisboa (escrevia-se nesse ano o Primeiro Manifesto do Surrealismo) para ser metido na pele do «causídico», mas virou do avesso os desígnios familiares, pela falta de vocação para os estudos, manifestada em notas de exames liceais continuadamente mal sucedidos. Diz a sua lenda biográfica, literariamente mitificada, que, decidido a fazer carreira no mar, frequentou a Escola Náutica, em Lisboa, mas a cédula marítima que lhe permitiria exercer funções de piloto negou-lha a miopia, tremenda e companheira de todas as horas: «Talento? Tolentino? Tolos!». Um logro.
Estava em maré baixa o jovem Alexandre O’Neill, também pela desilusão que foi, por esta altura, o chumbo na admissão ao Serviço Militar: falta de robustez física. Mas havia ainda a aventura surrealista, em que embarcava em 1947. Com ele, automatismos e provocação ao leme, seguiam outros do chamado Grupo Surrealista de Lisboa, como Mário Cesariny, António Pedro ou José-Augusto França, junto de quem descobre a família boémia para que propendia. Estava-lhe na «papoila do sangue». A empresa haveria de naufragar, porém, nas vagas nem sempre elevadas dos conflitos estético-ideológicos e a família de desagregar-se. O’Neill, que tivera já a sua estreia literária com o «poema gráfico» A Ampola Miraculosa (1949), um ‘romance’ de substância diegética claramente surrealista, recolhe as velas e afasta-se, desencantado, em 1951, não sem «Um Pequeno Aviso do Autor ao Leitor», inserido em Tempo de Fantasmas.
Bem menos exaltante e libertador é o primeiro emprego, conseguido em 1946 na Caixa de Previdência dos Profissionais de Comércio – Secção de Processamento de Abono. O homem dos ousados slogans publicitários (inventor do «Há mar e mar, há ir e voltar») obtinha assim, em terra, o lugar de observador bem colocado do grotesco e do absurdo quotidiano, «que o absurdo – escreveu –, mesmo em curtas doses,/ defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!». Conservá-lo-ia até 1952. No Reino da Dinamarca (1958) é o livro do reconhecimento literário e dos ecos públicos, espécie de bóia de salvação da rotina burocrática em que passara os anos surrealistas.
À distância de mais de 30 anos do desfecho de uma «vidinha» intensa de enredos lusitanos (e versões várias) que tantas vezes emerge nos seus poemas de forma mansamente torturada, já o autor de «Um Adeus Português» dava despacho ao seu epitáfio: «Aqui jaz Alexandre O'Neill/ Um homem que dormiu muito pouco/ Bem merecia isto». Muito havia ainda para fazer: pôr um grande ponto final no «modo funcionário de viver», colaborações múltiplas em revistas e colunas de jornais, organização de antologias poéticas (Gomes Leal, João Cabral de Melo Neto, entre outros), traduções, tomar a seu cargo a Biblioteca Itinerante n.º 17 da Gulbenkian, consultadoria literária, publicidade, crítica de televisão, sob o pseudónimo de A. Jazente. E poemas, claro, nunca aceitando a profissionalização da poesia. A década de ’60 revelou-se particularmente produtiva.
Ao livro que o sagrou como poeta (mais justo seria escrever, popularizou, no melhor sentido), seguem-se, num estilo reconhecível a uma milha náutica de distância, Abandono Vigiado (1960), Poemas com Endereço (1962), a famosa Feira Cabisbaixa (1965) – livro onde exercita, com especial desenvoltura, a consciência de uns Lusíadas findos e de inventários triunfantes, a que contrapõe, sem dramatismos, a vida mesquinha, o relato da dor e da mancha do quotidiano –, A Saca de Orelhas (1979), As Horas já de Números Vestidas (1981). Memorável é também a sua prosa, leve, ágil e irreverente. As suas crónicas, pequenas ficções, reflexões e devaneios encontram-se reunidas nos volumes As Andorinhas Não Têm Restaurante (1970), Uma Coisa em Forma de Assim (1980; 1985; ressurgido em 2004, numa edição de Maria Antónia Oliveira, a sua mais dedicada biógrafa) e Já Cá Não Está Quem Falou (2008).
A biografia explica muita coisa, «até a azia!», aditou o poeta. O Surrealismo, por si só, manifesta-se insuficiente para explicar uma poesia indelevelmente presa à circunstância nacional e a um destino colectivo que Alexandre O’Neill, o poeta capaz de tropeçar de ternura, assumiu: «Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,/ golpe até ao osso […] meu remorso,/ meu remorso de todos nós».