É preciso repensar na forma como lidamos com o fim de vida, até para ajudar as pessoas a partir mais serenamente. Manuel Luís Capelas, enfermeiro de formação, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e investigador nesta área na Universidade Católica Portuguesa, onde já ajudou a formar mais de 600 profissionais de saúde em cuidados paliativos, fala dos desafios, da morte e dos cuidados de saúde. E diz que a forma como esta semana a imprensa acompanhou o internamento de Mário Soares, mostra como a sociedade ainda precisa de mudar o chip.
Os cuidados paliativos são uma escolha ou é-se escolhido?
Para mim foi uma escolha. Quando acabei o curso trabalhei doze anos numa unidade de queimados onde o que podíamos fazer a muitos doentes era apenas aliviar o sofrimento para que morressem o mais serenamente possível. Acabou por ser o pontapé de saída para fazer formação e dedicar-me à investigação e ao ensino. Dito isto, acho que é uma escolha, mas é preciso ter perfil, maturidade de vida.
Que imagem tem da primeira vez que entrou na unidade?
Fiquei impressionado com a exigência. Tinha acabado de sair da escola e senti que tinha de estar a mais de 100%. É um lugar de muito sofrimento, os doentes têm de estar isolados por causa das infeções. Muitas vezes éramos só nós e eles.
Foi imediato perceber a atitude com que se deve estar num serviço desses?
Não houve um momento, mas perde-se depressa a ideia, se alguma vez a tive, de que somos omnipotentes e conseguimos controlar a vida. Quando nascemos sabemos inevitavelmente que vamos morrer, como digo aos meus alunos, temos todos um “prognóstico de vida limitado”. Felizmente tive uma formação na juventude cristã, em grupos de jovens, que acredito que me ajudou a ter sempre a ideia da importância de estar para outros, de gerir o sofrimento e a dor.
Qual foi o seu primeiro contacto com a morte?
Foi com o meu avô. Morreu com a serenidade possível na altura, mas junto da família.
No passado as pessoas morriam mais serenas?
Havia menos meios técnicos para ajudar no alívio da dor, mas as pessoas morriam em casa, junto da família. Hoje morrem nos hospitais, quando muitas gostariam de estar em casa junto dos seus.
Pela sua experiência em cuidados paliativos, acreditar em Deus ajuda a enfrentar a morte?
Acreditar em qualquer Deus. A componente da espiritualidade é fundamental. Não há grandes conversões, mas há uma procura de sentido e a fé ajuda as pessoas nesse processo. O sofrimento sem sentido é uma coisa parva. Mas entre quem acredita, muitas vezes até há um sentimento de revolta: porquê eu, porquê o meu filho, se fiz tudo bem, se até tive uma vida regrada. Deus tem isto de ser saco de boxe, refilamos e não temos castigo, não é como protestar em casa. Mas o essencial é encontrar esse sentido, que tem muito de espiritual. Claro que para isso as pessoas não podem ter dores, não podem ter falta de ar. Dou aulas numa universidade católica e costumo dizer a brincar aos alunos que até Deus quando pregou primeiro fez a multiplicação do pão e do peixe. Matou a fome e depois falou.
O sofrimento não é para aceitar, como muitas vezes se atribui ao catolicismo?
Não sou teólogo, mas João Paulo II foi muito claro ao dizer que o sofrimento é para retirar das pessoas. Uma coisa é encontrar sentido num determinado sofrimento. Um peregrino que vai a pé sofre. Mas se lhe perguntar, perante aquilo que o movia, desvaloriza esse sofrimento.
O que expressam as pessoas no final?
Há cinco grandes tarefas de encerramento da vida. Dizer às pessoas de quem se gosta que se gosta delas, perdoar, ser perdoado, agradecer e a despedida. São coisas que as pessoas vivem de forma intensa e de que muitas vezes nos esquecemos ao longo da vida. É uma experiência de reencontro pessoal que pode ser gratificante não só para o próprio.
Teve algum caso que o marcou?
Cuidei de um amigo durante 21 anos com esclerose múltipla, faria agora 66 anos. Foi um acompanhar diário, ia a casa, lavava-o, falávamos. Ele teve a particularidade de até ao fim saber agradecer tudo o que lhe aconteceu. Tinha duas filhas, uma família espetacular e perdeu as capacidades físicas ao ponto de ficar completamente dependente, mas ouvia os outros, dava. Acompanhou as diferentes fases da minha vida e mesmo no fim muitas vezes era ele que me consolava nas minhas coisas. Os cuidados físicos eram o menos, era a relação e a comunicação que importava.
É esse o ideal dos cuidados paliativos?
Considero-o o ideal dos cuidados de saúde: os cuidados paliativos só vieram mostrar que é preciso dizer “alto, por detrás de uma doença há uma pessoa e esta pessoa não fica bem só porque lhe damos comprimidos para baixar a tensão ou lhe tiramos a dor”. A medicina evoluiu muito, hoje conseguimos manter as pessoas vivas muito mais tempo, mas com que qualidade? Falamos muito de doentes com cancro nos cuidados paliativas, mas muitas vezes num doente oncológico, quando a doença evolui, a trajetória é curta. Quantos anos está uma pessoa com demência com o seu estado a deteriorar-se? Que impacto tem isso na família? Quantos anos vive uma pessoa com esclerose lateral amiotrófica? Vivia-se ano e meio, hoje vive-se seis, sete, algumas vezes mais, veja-se Stephen Hawking.
Os serviços de saúde foram pensados para pessoas que ou eram curadas ou morriam depressa?
Sim, não para lidarem com pessoas que vivem tantos anos assim, a precisar de apoio. Mesmo nas faculdades há esse paradigma. Ensinam-nos a curar e a não cuidar dos doentes até à morte. Formam-nos para ressuscitar os doentes. Não há nenhum profissional de saúde que não tenha formação em suporte básico e avançado de vida, mas quantos têm apoio e formação para o que é preciso a cuidar dos doentes até à morte, a enfrentar todas as dimensões de doenças incuráveis. Muitos aprendem por auto recriação, outros procuram formação por sua conta.
Preservar a vida não é o objetivo central?
Não pode ser a todo o custo. É aí que o chip tem de mudar. Temos de preservar a vida enquanto vale a pena ser vivida.
Não vale sempre?
Vale sempre, mas quando a doença não tem perspetiva de cura temos de ajudar o doente e a família nesse processo.
Como tem acompanhado o internamento de Mário Soares?
Vi ontem na televisão o boletim clínico e pelas perguntas feitas pelos jornalistas nota-se bem a dificuldade que se tem numa situação destas.
Disse-se que estava inconsciente, mas começou a reagir a estímulos.
O que é uma reação a estímulos? Ouvi que começou a alimentação entérica por sonda nasogástrica. Claro que um doente tem de ser alimentado: se não se sabe a evolução não se deixa de alimentar. Não sabemos naturalmente tudo, mas encara-se uma situação de uma pessoa de 92 anos internada que se sabe que tem vindo a ter um estado involutivo ao longo do tempo com uma perspetiva de cura, de recuperação. Fazem-se as mesmas questões que se faria se alguém de repente tivesse tido um acidente inesperado. Não digo que não seja normal o interesse e naturalmente é uma figura mediática, mas reflete bem essa dificuldade que temos em encarar o final de vida.
Uma vez numa unidade de cuidados paliativos diziam-me que por vezes as pessoas parece que esperam por alguma coisa e só depois morrem.
Não há evidência científica, mas sim. Pensa-se até que aquela morte agitada que muitas vezes vemos tem a ver com as pessoas, no seu subconsciente, sentirem que há algo por resolver. É como aquele clique de quando vamos viajar. Estamos preparados quando sentimos que tratámos de tudo: as malas estão no carro, certificamo-nos que fechámos a água e o gás.
Assistiu a alguma situação dessas?
Uma vez na unidade de queimados recebemos um doente de Viana de Castelo, de uma explosão gravíssima nos estaleiros. Dissemos na altura que vinha morrer a Lisboa: pouco podíamos fazer. Este homem clinicamente instável, em que sabíamos que a morte podia acontecer a qualquer momento, esperou 24 horas pela mulher. Ainda sei dizer-lhe o quarto. A unidade tinha um formato em “u” e os familiares tinham na altura de ficar no corredor e falavam por um intercomunicador. Não sei o que lhe disse, respeitávamos esse momento de privacidade. A esposa ainda não tinha chegado à porta do serviço, a uns dez metros, quando o doente faleceu. Penso também na minha avó. Fui despedir-me dela num fim de semana e ela disse à minha mãe “não volto a ver o Manuel Luís”. Morreu depois de ver o meu primo, o outro neto. Será um ato consciente?
Será?
Não sei. Mas que nos habituamos a ver isto habituamos, parece que há um apaziguar. Nas crianças é muito notório. Quando os pais assumem aquelas cinco tarefas e as ajudam, partem serenamente. Quando há uma luta da criança e dos pais, que é perfeitamente normal pela situação dolorosa, a agitação é maior.
Um profissional pode envolver-se emocionalmente nestas situações?
Pode e deve, é o que se chama ter compaixão. Não podemos ser máquinas.
Mas isso não é demasiado desgastante?
Ganhamos defesas, mas claro que muitas vezes cheguei a casa e não consegui dormir. Saí da unidade de queimados há 14 anos e algumas situações foram tão marcantes que consigo relatar tudo o que fiz nesses dias. Foram murros no estômago. Jovens da minha idade que por fazerem asneiras que todos fazemos ficaram incapacitados para o resto da vida.
Asneiras?
Não andei a saltar em cima de comboios, mas saltei fogueiras nos santos. Mas vemos muito nos queimados. Casos dramáticos de pessoas que estavam a trabalhar e de repente muda tudo, por erros de outros ou descuidos dos próprios. E aprendemos muito, também porque nos aproximamos. Lembro-me de uma rapariga que estava noiva. O namorado teve de amputar os dois braços, dizia que nem ia conseguir fazer festas a um filho que viessem a ter. Podíamos pensar que acabava ali, mas foi ela a levá-lo para a frente, a ir buscar um deficiente das Forças Armadas para lhe falar. E perante isto uma pessoa pensa: “caramba, chateamo-nos por tão pouco”. Se chegamos ao carro de manhã e está avariado dizemos não sei quantos nomes. É emocionalmente exigente, mas acabamos por aprender a dar outro valor à vida, a relativizar. A dar aquele abraço mais vezes porque amanhã pode ser tarde.
Passa-se mesmo a viver assim?
Não passei a sair de casa a pensar que posso não voltar. Não digo isso. Mas tenho presente que isso é uma realidade. Os exemplos de final de vida são muito marcantes, vimos isso publicamente com o António Feio. As pessoas redirecionam as suas vida. E por isso é fundamental uma boa comunicação com os doentes, até para que percebam que aquele é o momento para o fazerem. Se não falamos e as pessoas percebem que, de alguma forma, havia uma “conspiração de silêncio”, podem ficar ainda mais revoltadas.
Como se gere essa verdade?
Há muitas técnicas, mas acima de tudo temos de perceber o que é que o doente quer saber, quando e por quem. Não é à americana: “o senhor tem um cancro por isso são seis meses de vida”. Os profissionais têm uma tendência terrível para sobrestimar a vida dos doentes. Se dizemos tem seis meses e depois não tem? E há o reverso da medalha: hoje sabe-se que bons cuidados paliativos aumentam o tempo de sobrevivência, o que também pode ser um golpe na família. As pessoas começam a pensar que se calhar também nos enganámos no diagnóstico, que se tivesse sido feita mais uma intervenção a pessoa tinha ficado curada.
O que mais custa responder?
Os doentes são muito espertos e quando veem que não estamos a responder questionam-nos abertamente. O meu sogro teve uma neoplasia da pele, vi o diagnóstico na peça da biópsia. Foi excisado e depois foi para minha casa e ficou sob vigilância. Não lhe dissemos grande coisa naquele primeiro momento, tinha noção de uma ferida estranha. Uma vez chego do trabalho e ainda à entrada diz-me: “o que eu tenho é um cancro”.
Mas porque é que o médico não disse ao seu sogro que ele tinha cancro?
Tem a ver com um paternalismo que ainda existe.
Os médicos não dizem às pessoas que têm cancro?
Muitas vezes não dizem. Há esta atitude de que a verdade faz sofrer. Há pessoas que foram operadas, tiraram-lhes o estômago e pensam que tiveram uma ferida, não sabem que tiveram uma neoplasia. Claro que depois percebem se tiverem de fazer quimio ou radioterapia. Os doentes para irem para unidades de cuidados paliativos da rede nacional têm de assinar o consentimento informado a dizer o que têm e para onde vão. E o que vemos é que muitas vezes os doentes não sabem que têm uma situação paliativa.
Isso quer dizer o quê?
Não sabem que estão a morrer, não sabem que têm uma doença incurável. E lá está: se a pessoa não souber a verdade, como começa a preparar-se? As coisas não têm de ser ditas de chofre, mas têm de ser ditas. Foi o que fizemos com o meu sogro. Ele dizer-me aquilo foi dizer “quero falar sobre isto”. É isto que nós profissionais temos de perceber, o que os doentes querem. É como quando um doente diz “mate-me”, temos de perceber o que quer dizer.
Já teve pedidos desses?
Nunca tive, mas não podemos ter a leviandade de dizer que em cuidados paliativos não há pessoas que pedem para morrer. Claro que há. O que temos de perceber é que muitas vezes pedir para morrer é dizer eu tenho direito a falar sobre este assunto. Os relatos que temos é que são uma franca minoria, e dentro dessa franca minoria há uma grande maioria que depois de conversar muda porque precisava de outras coisas.
Mas faz sentido negar a eutanásia a essa pequena minoria?
Isso é uma resposta que ainda hoje me leva a refletir. O que digo é: não devemos discutir a eutanásia como um problema major do país antes de dar às pessoas a oportunidade de terem direito a cuidados paliativos especializados, o que hoje não acontece.
O que acha que vai acontecer no parlamento quando a eutanásia for discutida no início de 2017?
Espero que haja o bom senso de não decidir na Assembleia da República. Não se fez ainda um amplo debate, nenhum partido o propôs em campanha. Claro que vai haver sempre uma franja da população a quem os cuidados paliativos no seu melhor não resolvem a situação, mas temos de pensar nisso com calma. E primeiro tem de haver um debate transparente e claro, com reforço das respostas de cuidados paliativos em número e qualidade. Em Leiria não há unidade de cuidados paliativos. Tem-se reforçado as equipas domiciliárias, mas é uma ilusão pensar que resolvem tudo, porque para isso é preciso haver cuidadores em casa.
Consegue medir a falta de acesso?
Fizemos um estudo na universidade que concluiu que 50% dos doentes nos hospitais são doentes paliativos, doentes com um prognóstico de vida inferior a um ano. Estão em serviços agudos, quando deveriam ter uma intervenção diferente. Destes doentes, 15% tinham prognóstico de vida inferior a 15 dias.
Precisavam de cuidados intensivos?
Não. Estavam a ocupar uma cama às vezes nos cuidados intensivos quando precisavam de cuidados paliativos.
Mas deve ser difícil assumir isso à família e mudar a pessoa. Pode acontecer um milagre…
Os milagres são milagres. Só 10% dos doentes estavam referenciados mas quando perguntámos aos médicos por que motivo não referenciavam os doentes, a resposta não foi a família. A resposta foi que o doente ainda não estava a morrer, ainda o podiam curar. Isto em contextos de doença incurável e dito pelos médicos que indicaram que os doentes tinham um prognóstico de vida de 15 dias. Quando os médicos não conseguem assumir isto, só se pode entrar naquilo a que se chama obstinação terapêutica.
Não há muitos estudos sobre obstinação terapêutica em Portugal.
Não há. O custo dos últimos 30 dias de vida é brutal em todo o mundo. Nunca fizemos esse estudo em Portugal porque incomoda. Os profissionais não sabem quando têm de substituir tratamentos curativos por tratamentos que garantam conforto e estabilidade.
Diz-se que medicina não é matemática.
Mas vamos dar uma transfusão de sangue a um doente que está a morrer? Não vai beneficiar esse doente e vai fazer falta a outro.
Pensaria o mesmo se fosse o seu pai?
Sim. O meu pai morreu com uma insuficiência renal e hepática. Foi ressuscitado em três sessões de hemodiálise e a médica veio falar comigo uma vez e disse-me que da próxima vez não o reanimavam. Eu disse: “já não o deviam ter reanimado antes, só se está a prolongar o sofrimento. Se ele já nem aguenta fazer a diálise…”
Mas imagine que chegava um dia e não o tinham reanimado.
Com certeza, mas por isso as coisas têm de ser faladas, tem de ser trabalhadas em equipa, com o doente e a família, não ao fim de três reanimações.
O testamento vital não vinha resolver essa lacuna?
Fizemos um outro estudo sobre as diretivas antecipadas e concluímos que a maioria das pessoas desconhecia o testamento vital e quem conhecia era pela comunicação social. Deviam ser os profissionais de saúde a falar disso aos doentes. Não digo a toda a gente, mas se há uma pessoa com uma doença incurável, era importante abrir espaço para esse diálogo. Que lhe dissessem “agora que está bem, quer deixar alguma decisão para que um dia quando puder tomar decisões sabermos o que quer?” A lei é boa mas não houve o investimento necessário. Fez-se do testamento vital um ato administrativo quando devia ser um ato médico.
Coordena pró-graduações, uma sobre perda e luto. São momento de descoberta para os profissionais?
Temos tido médicos que dizem que na faculdade lhes ensinaram tudo sobre a molécula tal, a interação do citocromo do fígado, mas pouco sobre comunicação. Não tinham pensado em coisas simples: se se sentarem na cama com o doente, a pessoa apreende mais do que se ficarem em pé ou à secretária, num patamar superior.
É na comunicação que há mais falhas?
Sim. Às vezes o médico fez tudo espetacularmente mas não comunicou bem. Há uns anos houve um caso público de uma senhora que fez queixa porque tinha uma dor na perna e foi operada às costas. O único erro do médico foi não ter explicado à pessoa que a tinha operado às costas porque era um problema na coluna que estava a gerar a dor. Agora a comunicação é difícil porque gera emoções. E exige tempo, o que com consultas de cinco em cinco minutos e ter de estar a escrever tudo no computador ao mesmo tempo é difícil. Mas está longe de ser uma dificuldade só dos médicos, é de todos os profissionais, de enfermeiros, de psicólogos. Ouvem-se as maiores barbaridades, sobretudo em fim de vida ou no luto. Não posso dizer a uma pessoa que perdeu o marido há seis meses “então a senhora ainda vem de preto e está a chorar pelo seu marido?”
Somos maus a lidar com o luto? Há serviços que já ligam às famílias.
Sim, mas não definimos um plano de intervenção nacional e não há uma avaliação do que funciona e não funciona. Se a pessoa estiver em casa, completamente desmazelada, como é que ao telefone se vê isto? O luto na maioria das pessoas passa normalmente mas em alguns casos torna-se patológico.
E esses casos passam despercebidos?
O que acontece é que podiam ter sido despistados e acabam por cair na medicina familiar com depressões. E depois? Antidepressivos, porque não há logo uma rede de encaminhamento.
Não há só problemas psicológicos associados ao luto. Está provado um maior risco cardiovascular, que só volta ao normal passado um ano.
É o síndrome do coração partido. O luto é talvez o maior turbilhão das nossas vidas. E o luto não é só para a morte, por isso falamos de perda. Há muitos lutos: do divórcio, a perda de uma gravidez, de um emprego, de um braço. Os profissionais também fazem o luto dos seus doentes, precisamos de estar mais atentos a isto.
Defende que os cuidados paliativos se têm centrado demasiado na resposta a doentes oncológicos.
Os cuidados paliativos surgem a partir de um programa oncológico da Organização Mundial de Saúde mas hoje sabemos que a maioria dos doentes não são doentes oncológicos, são doentes com insuficiência cardíaca avançada, doentes com doença pulmonar crónica obstrutiva, doentes a fazer diálise, doentes com sida, os grandes idosos, os doentes com Parkinson e Alzheimer, com esclerose múltipla. Temos de melhorar a resposta.
Quando deve começar a intervenção?
Temos quatro conceitos: cuidados paliativos, doentes paliativos, doente terminal e doente em morte iminente. Um doente paliativo é um doente em que a sida progrediu e já não é controlada pela medicação, mas esta pessoa beneficia dos cuidados paliativos desde o diagnóstico, para gerir o sofrimento que acarreta, os efeitos secundários. Em alguns países já se fala de cuidados de suporte e paliativos, para tornar estas duas dimensões claras. O mesmo no cancro da mama: uma mulher que é diagnosticada tem uma grande probabilidade de se curar, mas não deixa de sofrer, vai ser amputada. Não a posso mandar para uma unidade de cuidados paliativos, mas a equipa pode visitá-la.
Esse suporte não é já garantido?
Devia ser mas não é sempre. Só se há uma queixa, se a pessoa começa a ficar deprimida, é que se intervém. Em Espanha está-se a experimentar fazer as primeiras consultas de oncologia com o médico e uma pessoa da equipa de cuidados paliativos. Se há uma cura, a equipa sai. Se não há, o doente passa de um tipo de cuidados para o outro de uma forma mais natural e atempada. Isto é ainda importante nos doentes não oncológicos, em que temos o problema da adição a opioides. Pessoas com esclerose que só fazem opióides durante anos vão ficar com um problema de dependência quando se podia gerir mais cedo a dor de outras formas.
Este ano foi aprovada a primeira estratégia nacional para os cuidados paliativos. Em que pontos estamos?
O plano tem aspetos positivos, outros negativos. Criticávamos uma rede de cuidados que funcionava mal, agora vamos ter três redes. Uma nos hospitais onde os doentes podem estar 15 dias. Depois, mantém-se a rede de unidades integrada nos cuidados continuados mas impõe-se que os doentes só podem estar lá 30 dias, prolongáveis por mais 30. Não estamos a trabalhar com base nas pessoas mas em timings.
Quer dizer que só quando a pessoa estiver a 30 dias de morrer é que é referenciada? Como se operacionaliza isto?
Nem mais, contraria tudo. Se passarem os 60 dias, têm de ir para outras unidades da rede de cuidados continuados onde não há pessoas com formação em cuidados paliativos, a “terceira rede”.
É um retrocesso?
Um tiro nos pés completo, que vai trazer mais burocracia e mais custos.
Fez parte do grupo de peritos que apoiou a Comissão Nacional de Cuidados Paliativos nesse trabalho.
Pedi para o meu nome sair porque não me revi no resultado. O documento inicial foi alterado e saiu publicamente sem as pessoas externas à comissão saberem de nada. Várias coisas suscitam dúvidas, não só a mim. A exigência de formação é importante, mas quem vai pagar? Propõe-se a fazer um “roadmap” dos profissionais com formação especializada quando nenhuma escola está autorizada a dizer quem formou. Nem o Estado tem esse direito: não lhes pagou a formação.
Estando desencantado com o plano, o que gostava que acontecesse em 2017?
Percebo que há limitações políticas, financeiras, mas sendo os membros da comissão pessoas que conheço bem e que estão no terreno, esperava mais. Se fosse presidente da comissão tinha-me demitido. Era importante de uma vez por todas dar prioridade à integração destes cuidados ao longo do percurso do doente e garantir os recursos adequados.
O governo anunciou um investimento de um milhão de euros para criar cem equipas nos centros de saúde. Não é uma boa medida?
Sim, mas são só paradoxos. Diz-se que os cuidados paliativos são uma especialidade, mas depois determina-se que as equipas devem ser lideradas por pessoas preferencialmente com formação especializada. O que é que isto significa na prática? Que podemos ter unidades geridas por não especialistas. Além disso, não se define o mínimo de profissionais mas o equivalente a tempos completos. Como é que uma equipa que funciona com 20 médicos ou 50 enfermeiros cada um a fazer duas horas pode assegurar trabalho em equipa? Os rácios de tempo podem bater certo, mas não funciona. Há muitas incógnitas e temos de manter a perspetiva positiva, mas há muitas questões que não vemos como se vão resolver. Acho que a historia e o tempo se vão encarregar de mudar o plano.
Estamos numa altura de balanços. O que lhe deram os cuidados paliativos?
A oportunidade de contribuir para o bem-estar de outros. Como lhe disse, tive uma formação cristã. O meu filho é escuteiro e Baden Powell tem uma frase que faz sentido: “procurar deixar o mundo um pouco melhor do que o encontrámos”. É isto que tento fazer.
E sente-se mais preparado para a morte?
Se me perguntar se estou preparado para morrer… sinto que tenho muito que quero fazer. Mas encaro o fim de outra forma.