O curso de Direito, concluído na Universidade de Lisboa, não foi um erro, foi um exercício de disciplina interior que lhe permitiu esclarecer o que do seu futuro queria excluir: ditames e formatos exaustos, procedimentos capazes de avolumar a nossa perplexidade, atilhos a que não saberia dar nós, a odiosa figura da repetição, mas sobretudo a rigidez das estruturas, trocada pela liberdade formal e expressiva que marca a sua premiada carreira de jornalista – construída nas redacções do «Jornal de Letras», da revista «Ler», da «Marie Claire», da «Visão» – e que caracteriza o seu trabalho ficcional.
Ana Margarida de Carvalho, que prefere o Outro àqueles «comigos de mim» de que fala Álvaro de Campos, não chegou ao terreno da ficção narrativa num desses dias triunfais que tantas vezes fazem da literatura mais um produto de uma cultura tendencialmente pobre. A autora ensaiou a mão para o romance na escrita de guiões para cinema, em crónicas e contos, dispersos por revistas e colectâneas. O último acaba de ser publicado na revista «Egoísta».
Que Importa a Fúria do Mar (2013), o seu livro de estreia, finalista do Prémio Leya 2012 e distinguido com o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, produziu um generalizado aplauso crítico cujos ecos ainda não se extinguiram. Vieram, aliás, juntar-se aos que entretanto gerou a publicação do segundo livro, «Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato» (2016). É um romance admirável onde o ritmo cardíaco e o vagar dos milénios se revezam. Apostado, tal como o anterior, na crueza das representações realistas, aliada a um lirismo fulgurante, põe de lado luvas e pinças. Tem a dureza de uma tábua de anatomia onde seria preferível morrer uma única vez.
Em ambos se revela um pessoalíssimo modo ficcional dominado por um trabalho de escrita em cuja constituição entram, como tónicas, o cuidado construtivo, a vontade subversiva, a qualidade imagética, um registo estilístico de versáteis variações, uma ironia da resistência. Mas mostram também o domínio dessa «arte escura de ladrões que roubam a ladrões» (assim definia Manuel António Pina a literatura), manifestando-se, desde logo, nos títulos: o primeiro, surripiado à canção «Maio, Maduro Maio» de Zeca Afonso; o segundo, tomado ao «Poema do Desamor», de Alexandre O’Neill («Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te/ Não se pode morar nos olhos de um gato/ Beija embainha grunhe geme/ Não se pode morar nos olhos de um gato»).
Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, Pessoa, Torga, Saramago são outros nomes de uma constelação literária que participa de um jogo alargado de reenvios, alusões, ressonâncias, efeitos de eco. Um dos méritos da autora é conseguir mergulhar em profundidade num universo de referências literárias sem se deixar neutralizar por um culturalismo oco e exibicionista. Bem ao contrário: a densa memória literária converte-se, ela própria, numa espécie de personagem tentacular verdadeiramente original.
E interessante é verificar que a Santa de pau que a escritora fez embarcar no navio negreiro do seu mais recente romance, «Nossa Senhora de Todas as Angústias», diz bem da assunção plena e desinibida dessa memória literária. Toda a pele lhe veste, da da Dona feia das cantigas de escárnio, à da Fermosíssima Maria de Camões, passando pela Linda Inês de manto, da Fiama de «Barcas Novas».
Dois romances publicados, duas pedradas no charco. Poderosas, de qualidade visualmente cinematográfica, regidas pelo desenvolto impulso para contar. E passam muito ao largo do muito que actualmente se publica no campo da ficção nacional, sem mossa nem alcance.
A primeira atinge o fundo lodoso do nosso passado recente, avivado pela memória de quem se achou a caminho do campo de concentração do Tarrafal, no irónico lugar de Chão Bom, em Cabo Verde, então ainda por estrear, e desceu ao «inferno tropical». E passou fome e mastigou pó ao acordar e ao deitar e viveu a tortura da «frigideira», essa invenção cruel dos primórdios do fascismo. A segunda acerta no coração dos humanos a contas com o Outro e consigo mesmos.