Não parece muito, se for contado em anos de gente normal, da que cose o seu fio no emaranhado do mundo, vive e morre, passa, deixa algumas saudades. Mas 53 anos à George Michael é outra coisa inteiramente. Só os títulos para começar: mais de 100 milhões de álbuns vendidos, uma série de hits monstruosos que dominaram as tabelas da música entre os anos 80 e até ao início do século, prémios suficientes para arrastar atrás de si um museu, e a Academia de Rádio britânica revelou em 2004 que entre 1984 e esse ano, tinha sido ele o artista mais tocado pelas estações do Reino. Nas quase quatro décadas da sua carreira, Michael soube comandar o seu sucesso, e fez parecer canja a transição de ídolo adolescente para um respeitado artista adulto, uma das mais complicadas metamorfoses no Olimpo da cultura popular. Muitos anos a ponderar a altura certa para sair do armário, acabou por ser forçado a assumir a homossexualidade depois de um episódio numa casa de banho pública em Beverly Hills, mas uma vez mais transformou uma situação embaraçosa numa das mais geniais e memoráveis “saídas”, que viria a revelar-se um momento encorajador para a comunidade LGBT, de quem foi um dos maiores apoiantes.
Agora, baixemos o volume entre o harpejo soturno, para dizer que George Michael teve o seu último Natal. Foi encontrado morto, em casa, no Oxfordshire, em Inglaterra. Segundo um comunicado da polícia, uma chamada foi recebida pouco depois das duas da tarde, e o músico foi encontrado sem vida, numa morte cujas causas estavam ainda por apurar mas sem sinais que levantassem quaisquer suspeitas. De resto, coube ao manager de Michael anunciar que este tinha deixado o mundo na sequência de uma falha cardíaca, mas foi como muitos tantos sonham: deitado na cama, na pose da paz.
Neste caso, foi por falta de aviso que a morte causou choque. O publicista do músico afirmou que Michael não estava sequer doente, e é assim de forma abrupta que o cantor, que se tinha já cruzado com a morte, em 2011, a meio de uma tournée mundial, desaparece sem mais. O susto de há cinco anos, ocorreu entre datas de concertos na sua Symphonica tour, tendo passado uma semana internado nos cuidados intensivos em Viena, devido a uma pneumonia que obrigou a equipa médica a realizar uma traqueotomia para lhe salvar a vida. Dois dias antes do Natal, pouco depois de lhe ser dada alta hospitalar, o cantor fez um discurso à porta da sua casa, em Londres, num tributo emocional à equipa do hospital de Viena que o segurou vivo “no pior mês” da sua vida. Quando lhe perguntaram o que é que lhe deu forças para resistir, Michael respondeu: “O facto de ser um sortudo e de ter imensas razões para continuar vivo. Tenho uma vida espectacular.”
Filho de um cipriota dono de um restaurante e de uma dançarina inglesa, Georgios Kyriacos Panayiotou nasceu a 25 de Junho de 1963, em Londres, e não passou a adolescência nem boa parte da juventude pasmando quanto ao que haveria de fazer com a vida. Não teve de tomar grande balanço, e em 1979, com 16 anos ele e um amigo da escola, Andrew Ridgeley, tocaram pela primeira vez juntos numa banda de ska chamada Executive. O projecto não foi mais longe, mas os rapazes formaram um duo imbatível, com Michael a emergir cedo na dianteira, tanto na composição como enquanto a voz dos Wham!, e começaram a aparecer os singles em que a imagem de putos rebeldes combinava com uma voraz inquietação nas asas de canções vibrantes e infecciosas que se tornaram hinos à primeira vista superficiais, mas que continuam a ser revisitados décadas depois. Neles sente-se uma especial ironia, um modo de reinar gozando. E se em muitas sentidos os Wham! são tidos como a encarnação musical do Thatcherismo, o duo esteve entre as bandas que apoiaram os mineiros com espectáculos de beneficiência durante a greve de 1984-85.
O álbum de estreia, “Fantastic”, de 1983, chegou ao trono no top britânico, e o single “Wake Me Up Before You Go-Go” foi muito além fronteiras, tornando-se uma febre inescapável no ano seguinte, ficando como um dos sinónimos da geração MTV. Em 1985, foram a primeira banda ocidental a levar a sua tour mundial até à China. Mas a fama global não era o céu para Michael, que cedo manifestou sinais de que tinha aspirações para além da imagem laroca dos Wham! com esse ponto de exclamação que garantia bons momentos em cima de diversão, e nada de mais complicado. Nesse mesmo ano. no concerto solidário Live Aid, transmitido pelas televisões de todo o mundo, deixou Ridgeley com as vozes de apoio, e juntou-se a Elton John para cantar a canção deste “Don’t Let the Sun Go Down on Me” – êxito que na versão em dueto ganhou uma segunda vida.
Já no ano anterior, a balada amorosa “Careless Whisper” tinha sido assinada por Michael, como se de algum modo sentisse que não encaixava totalmente na marca que ele tinha criado antes. Os últimos hits da banda foram costurando influências cada vez mais seguras no campo do soul, e quando os Wham! anunciaram o seu fim num concerto de despedida no Estádio de Wembley – que teve 72 mil pessoas na audiência –, já o cantor estava à muito a preparar o terreno para uma carreira a solo.
O single seguinte foi um passo de mestre, chamando Aretha Franklin para um dueto. “I Knew You Were Waiting (For Me)”, escalou as tabelas dos dois lados do Atlântico, e a canção venceu um Grammy como melhor performance R&B. Tendo provado que não lhe faltava a mestria para dominar os ouvidos e a pulsação nas pistas de dança de todo o mundo, Michael entrou de rompante no palácio das lendas da música com a Rainha da Soul pelo braço. E para vincar o corte com o passado, o seu álbum de estreia a solo, “Faith”, abria com um órgão de igreja a tocar as notas do hit dos Wham!, “Freedom”. Era a sua forma nada subtil de tocar no funeral dos velhos tempos, e dar um passo livre de bagagem para os novos. Só esse álbum vendeu 25 milhões de cópias, o mesmo número que tinha vendido a banda dos dias de juventude. Assim, em 1987, Michael avançou para a idade adulta sem ser forçado a olhar para trás, aproveitando todo o balanço da pop, mas explorando uma fronteira entre o gospel e o rockabilly.
Foi no álbum seguinte, “Listen Without Prejudice Vol. 1”, lançado em 1990, que o cantor deu o passo mais ousado no sentido de levar a sua antiga persona para trás do estábulo e pô-lo para dormir. “Não sou estúpido ao ponto de pensar que posso aguentar outros 10 ou 15 sujeito a toda esta exposição”, disse então numa entrevista. “Parece-me ser essa a grande tragédia da fama: pessoas que simplesmente perdem todo o controlo, perdem-se a si mesmas. Vi tantos casos desses, e não quero ser mais um cliché.”
Mesmo depois de se ter tornado a maior estrela pop do mundo, Michael nunca se contentou e em “Waiting”, canção desse álbum, cantava: “Procuras os teus sonhos no céu, mas o que te resta senão o inferno depois destes se realizarem?”. O segundo álbum a solo seria um sucesso bestial na carreira de qualquer outro músico, mas por comparação com as vendas do anterior, os 8 milhões que este vendeu souberam a pouco. Foi nessa altura que Michael se envolveu numa batalha legal com a editora Sony, de que o cantor se quis libertar, sentindo-se escravo do contrato e ao mesmo tempo descontente por a promoção do segundo álbum ter ficado aquém das suas expectativas. Acabou por perder o caso.
Os estádios nunca deixaram de se encher para Michael, mas a carreira sofreu à medida que a vida se impôs, e o cantor não era nenhum menino de coro. Foi preso, a justiça teve de o chamar à razão algumas vezes, mas noutras mostrou-se conservadora, metediça, patética. Segundo admitiu em 2005, ao longo de 12 anos, começando em 1991, sentiu-se emboscado pela “depressão o medo e muitas outras merdas. Eu juro por Deus que parecia que havia uma maldição em mim”. O namorado de anos, Anselmo Feleppa, morreu de uma hemorragia cerebral, em 1993, num estado de fragilidade provocado pelo vírus da Sida. Isto num período em que o cantor nem podia admitir publicamente o seu sofrimento porque queria proteger a mãe dos ataques da imprensa, caso assumisse a homossexualidade.
Depois foi a vez da mãe morrer, e ainda, para lhe pisar a dor, um cachorro a que se tinha apegado muito. “Tinha dentro de mim a sensação esmagadora de que os melhores anos da minha vida tinham ficada para trás”, disse Michael anos mais tarde, assumindo que, no desespero, se virou para o Prozac e a cannabis. Nos momentos piores, chegava a fumar 25 charros por dia.
Em 1998, deu-se o tal incidente na casa de banho em que acabou preso por cometer um “ato lascivo”. Houve uma série de outros episódios de descontrolo no Reino Unido, muitos relacionados com o uso de drogas, álcool… Várias vezes foi apanhado bêbado, a conduzir ou já desmaiado. Era a um anjo a cair de muito alto. Mas vamos voltar ao episódio na casa de banho, e terminamos nesse que podia ter sido o fim, a desgraça final. Não foi porque não só Michael aproveitou para deixar finalmente o armário como nunca pediu desculpa pela sua homossexualidade, mandou-os foder aos da moral conservadora, metê-la no sítio onde o sol não brilha. E ainda voltou ao assunto com a canção “Outside”, cujo videoclip se passa numa casa de banho que se torna uma discoteca, agora com o polícia a juntar-se à festa. O outro, o que o deteve, veio dizer que aquilo lhe estava a provocar “danos emocionais”. Pobrezinho, ainda tentou ir para os tribunais a ver se pingava algum. Era a vida a tentar lixar a arte em vez de imitá-la. Não pingou nada, o caso foi arrumado.