São como navios fantasma atracados em portos incertos, com o porão cheio de histórias, o cochicho dos séculos num tráfico entre diversas tradições, idiomas, geografias e saberes. A humidade rumorejante das livrarias antigas, com os seus fundos de catálogo hoje raros, desprezados. A carga mais valiosa e indesejada faz de espaços como a Ulmeiro lugares abandonados na memória de cidades europeias que gozam do prestígio da sua antiguidade, mas que não usam essa luz. Lisboa vê-as afundar, e dia 31, no Bairro de Benfica há uma livraria que já não fará meio século de existência. Fica-se pelos 47 anos, mas todos à mostra, ao contrário do que acontece em livrarias como a Bertrand do Chiado, que goza do título da mais antiga livraria do mundo mas que tem pinta de posto turístico. Fundada em 1969, a livraria alfarrabista situada na Avenida do Uruguai terá o seu canto do cisne meio soterrada nas décadas que fazem a sua vénia ao tempo que durou.
O livreiro e editor José Antunes Ribeiro não desiste ainda assim do seu precário e desaconselhável ofício. Ele e os milhares de livros vão-se mudar em 2017, e enquanto se dá esta migração de aves, os clientes poderão continuar a participar do seu destino, adquirindo os livros através de leilões online. Haverá ou não uma nova casa, se o livreiro descobrir um espaço com “renda mais aceitável”. Nestes últimos dias, os livros lá estão, uns consternados, outros fazendo as malas, e alguns ansiosos, com o polegar levantado como quem na berma da estrada pede boleia. Esperam os últimos clientes com preços reduzidos, muitos tentadores como viagens à volta e além do mundo, viagens ao fim da noite ou da lucidez, temporadas ou cervejas no inferno, o paraíso perdido das melhores mentes de todos os tempos.
“Os últimos quatro anos foram absolutamente desastrosos. Quando a classe média perdeu poder de compra, aquilo que já era difícil tornou-se insustentável”. E a isso juntou-se o aumento das rendas, contava o livreiro em Fevereiro, em entrevista à agência Lusa, quando alertou para o perigo do espaço Ulmeiro ter de fechar. Mas se tudo parece uma questão de dinheiro, a verdade é que o que mais falta é um dos seus sinónimos: o tempo. Quem tem tempo para ler num futuro prometido à iliteracia?
Mais três dias em que os clientes poderão despedir-se cruzando-se com os turistas do fim de tudo, aqueles que gostam de antecipar já a nostalgia, inventar netos a quem dizer tristemente: “Houve ali uma bela livraria?” E os netos: “Avôzinho, o que é uma livraria?” E o avô, com um ar compenetrado, num futurismo de quem viveu no passado: “Imagina a Fnac, imagina que aquelas ilhas de livros, as estantes cercadas pelos gadgets, assaltadas pelo futuro, reconquistavam o espaço, e em vez de um ar de nave, toda iluminada, o espaço assumia um ar sóbrio, sereno, convidando o tempo a parar em vez de fugir.”
Com José Antunes Ribeiro e os livros, irá Salvador, o gato arruivado que não lê mas provavelmente imagina, do muito convívio que tem com os livros, de tanto dormitar na montra, ouvi-los ronronar. Em certo sentido, pode dizer-se que a culpa é do gato, já que, como explicou o livreiro na entrevista que deu à Lusa, é ele “o director de marketing”. É fácil de perceber que o felino não estará por aí além preocupado em ver-se a engordar os números do desemprego. Como dizia Cesariny, “os gatos são os únicos burgueses/ com quem ainda é possível pactuar –/ vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!/ Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…/ Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato/ mas de gato para cima – nem pensar nisso é bom!”
Esta e outras verdades são privilégios hoje de uma classe tida por inútil, e por isso custam mais estas mortes em vida, o passado que se encerra para dar lugar a um futuro cada vez mais sem saída.
Ulmeiro. 2016 reserva-nos uma última morte
No ano célebre pelos grandes nomes que fez desaparecer, resta a morte anunciada de mais uma livraria