O ‘Velho Leão’ teve 92 anos e uma longa vida de luta pela liberdade e pela democracia.
Humanista, socialista, republicano e laico, Soares é um animal político de excelência e figura fulcral do Portugal democrático.
De muito méritos e de muitas vitórias, teve também deméritos e amargas derrotas.
Algumas mesmo humilhantes, como quando perdeu a corrida à presidência do Parlamento Europeu para uma ‘dona de casa’ – como ele próprio apelidou Nicole Fontaine, com o machismo marialva e retrógrado que o caracterizava à época e que afinal persiste, qual moda, no século XXI –, aniquilando qualquer ambição de uma carreira maior na cena internacional. Ou, cá dentro, quando se sujeitou a uma terceira candidatura à Presidência da República, perdendo não só e esmagadoramente para Cavaco Silva, mas especialmente a amizade do seu companheiro de estrada Manuel Alegre, que também o relegou para terceiro plano nas urnas.
Enfim, guerras políticas quase insignificantes para quem, para a História, ficará como pai da democracia em Portugal. Porque não foi só compagnon de route de Álvaro Cunhal (chegou a militar no PCP), foi sobretudo e também porque no período revolucionário desempenhou papel central na resistência aos desvarios comunistas e militaristas e na consolidação da liberdade e do regime democrático.
As suas prestações como primeiro-ministro não são particularmente brilhantes, antes pelo contrário (desastroso mesmo em sede de processo de descolonização e da relação com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), em matéria de sustentabilidade e desenvolvimento económico e financeiro do país.
Mas é também a ele, e à sua invulgar visão de futuro, que se deve a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, crucial para o progresso de uma Nação com cinquenta anos de obscurantismo e atraso cultural, social e económico.
A adesão à CEE – embora alicerçada num racional de desenvolvimento económico e social – foi a melhor forma de construir e de consolidar o regime democrático e de suster de vez qualquer tentativa de subversão. E Soares soube percebê-lo como ninguém e antes de quase todos os outros.
Soares, primeiro-ministro ou Presidente da República, ficou conhecido por se marimbar para os dossiês. Lessem-nos os ministros ou seus ajudantes ou técnicos. Ele… era político.
Reconhecendo méritos e deméritos, Soares tem uma outra qualidade particular que é admirável e muito, mesmo muito rara nos dias que correm: é amigo do seu amigo. Não falha nos momentos em que os amigos estão na mó de baixo. Sim, nas alturas em que o telefone deixa de tocar, nas alturas em que do outro lado o único retorno possível é uma voz necessitada e amiga.
Politicamente, ficam para a história os cortes de relações com Manuel Alegre e com Salgado Zenha (sendo todos da mesma família política e adversários em presidenciais separadas por 20 anos), como fica a relação de amor-ódio com Cunhal e as coabitações tensas – carregadas de ações ou ataques conspirativos ou até guerrilheiros – com Ramalho Eanes ou Cavaco Silva.
Soares voltou costas a Zenha e a Alegre e combateu Cunhal, Eanes e Cavaco. Mas quando todos se encontravam na mó de cima.
A quem em momentos pessoalmente críticos Soares nunca voltou as costas.
Foi assim desde jovem advogado, indo à barra dos tribunais plenários defender pro bono presos políticos, foi assim quando defendeu e ajudou os perseguidos do COPCON ou os spínolistas, tendo chegado a ajudar a passar a fronteira quem, ideologicamente, estava do outro lado da barricada.
Foi assim quando retribuiu o apoio que lhe foi dado por Carlos Andrés Perez quando teve de prestar contas à Justiça da Venezuela, foi também assim com Bettino Craxi quando envolvido em escândalos de corrupção em Itália ou com son ami Mite(r)rand quando acusado em França.
Mas foi também assim por cá, com Abílio Curto (condenado a prisão efetiva pelo tribunal da Guarda) ou, mais recentemente, com José Sócrates – foi vê-lo a Évora por diversas vezes – e com Ricardo Salgado – com quem não deixou de estar nem de falar quando o presidente do BES e do GES caiu em desgraça e deixou de ser dono disto tudo.
Soares marcou sempre presença. E de forma clara e pública. Com a coragem de quem tem a impunidade de não dever nada a ninguém.
Tive o privilégio, por razões profissionais, de conviver de perto com Mário Soares. Muitas horas com a sua equipa em Belém, passando secas em acontecimentos ou sessões públicas daquelas em que o via passar pelas brasas sem perder pitada do que se passava ao seu redor, muitas presidências abertas pelo país, muitas visitas de Estado, oficiais e oficiosas pelos quatro cantos do mundo.
Na baía de Guanabara, numa lancha a caminho da Ilha de Paquetá, olhando para o Corcovado e para a cidade maravilhosa, David Mourão Ferreira comentou para Mário Soares: «Isto é realmente bonito, mas não há nada na Natureza mais belo do que a mulher». «Ai isso não há», retorquiu Soares.
Soares é um romântico. Um bon vivant mas romântico. Amante dos prazeres da vida e, como assim, da literatura latino-americana dos seus amigos Jorge Amado, Neruda, Garcia Marquez, Vargas Llosa…
Poética é a sua dependência de Maria de Jesus – a quem prestou homenagem na sua última aparição pública antes deste internamento.
Diga-se o que se disser, Soares é a prova de que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher.
Com todos os defeitos e virtudes, com todas as vitórias e derrotas, Mário Soares é uma figura maior da História e um homem grande.
Por ter sido quem foi. Para a Democracia, para a Liberdade, para Portugal.