Os pais de família não precisam de ser – e muitas vezes não são – figuras consensuais. Os pais da pátria também não. Soares era o pai da pátria, aquela que hoje conhecemos, forjada depois do 25 de Abril de 1974. Quando chegou a Santa Apolónia, a 28 de abril de 1974, sabia precisamente o que queria para o país – uma democracia à maneira europeia, nórdica. Poucos portugueses, naqueles anos incríveis, poderiam dizer o mesmo.
A pátria perdeu o pai. É possível dizer que era esperado, porque o pai tinha 92 anos e a sua fragilidade já era evidente. Mas não tem substituto porque ninguém substitui os pais. Os portugueses ficam mais sozinhos. É o fim de um tempo, uma época que se fecha.
No verão, Soares sonhava em voltar a fazer uma viagem. Queria ir a Paris. Numa altura em que a sua saúde já não era o que tinha sido, o sonho de Paris podia ser o sonho de regresso a um lugar onde foi incrivelmente feliz, mesmo no exílio. A questão é que Soares sempre foi incrivelmente feliz, mesmo na ditadura, na prisão ou no exílio.
Na prisão escreveu um romance – que abandonou e nunca chegou a publicar porque quando o começou a ler ao seu amigo Joaquim Barradas de Carvalho, pai de Arons de Carvalho, este adormeceu. No exílio em São Tomé, divertiu-se imenso. Mesmo a descrição do seu dia-a-dia enquanto advogado sob a ditadura, na entrevista que deu a Maria João Avillez, está repleta dos pequenos prazeres da vida: a conversa com os amigos, a paragem nos cafés, os passeios pela Baixa, as noitadas de conspiração.
Soares diz que entrou em conflito com o PCP quando o quiseram obrigar a ir para a clandestinidade. A ideia de uma vida clandestina era-lhe insuportável. Ele queria poder passear onde lhe apetecesse, conversar com os amigos, viver a vida. Nunca foi dado a depressões. Contou-me que das vezes em que se sentiu próximo da depressão foi a seguir à morte do seu pai, João Lopes Soares, em 1970. Soares estava exilado em Paris, conseguiu autorização para regressar a Portugal para assistir ao funeral. Mas no dia seguinte toda a família partiria para Paris, de automóvel – os quatro, Soares, Maria Barroso, e os filhos João e Isabel revezaram-se na condução. Soares ia triste. Mas contou-me que, passada a fronteira de França, pegou no “Le Monde” e viu uma pequena notícia sobre o seu regresso a França. A leitura da notícia deu-lhe um enorme prazer naquele momento e a depressão, quase instantaneamente, se desvaneceu.
Até ao fim, Soares amou a vida profundamente. As coisas boas. Os passeios. A conversa. A boa comida. O vinho branco. Os seus livros. A biblioteca monumental, que se espalhava por toda a casa, de uma sala ao lado da cozinha ao escritório, do corredor ao andar de cima, totalmente forrado a livros, era um dos seus grandes orgulhos. Mário Soares era um homem incrivelmente culto. Tinha orgulho nos livros como nos quadros – principalmente nos de Júlio Pomar, o amigo de juventude, com quem esteve preso e é o autor do retrato oficial de Soares enquanto Presidente da República.
Soares contava histórias deliciosas da prisão. Parece uma contradição. Como é possível contar histórias deliciosas da prisão? Mas isso era o otimismo dele a funcionar. Ria às gargalhadas a contar como dormiu quase um dia inteiro a seguir a um interrogatório na cela da prisão. Apareceu o guarda e disse: “Ó homem, acorde! A dormir assim tanto até apodrece”.
Havia outra história que adorava contar, de outra prisão, em jovem. Soares era asmático em criança e ainda na juventude. É preso, mas um tio, irmão da mãe – o “tio Nobre” – lembra-se que o jovem Mário está na esquadra sem a bomba de ar. E então entra de rompante na sala e diz: “Mário, toma a bomba!”. E de repente os pides cercam o tio, pensando que tinha mesmo uma bomba a sério pronta a explodir a esquadra.
Mário Soares gostava de falar do passado, cada vez mais à medida que envelhecia, o que é normal na vida. Nos últimos tempos, principalmente depois da morte de Maria Barroso, falava mais do passado do que do futuro.
Até à morte de Maria Barroso, o futuro era o seu principal interesse. Antes da encefalite, em janeiro de 2013, nunca tinha pensado na morte. Era como se fosse eterno – e transmitia essa ideia de eternidade, a do pai da pátria que nunca haveria de morrer.
A pátria hoje está de luto. Ninguém compreende a história portuguesa dos últimos 60 anos se não compreender Mário Soares. Soares era incrivelmente português, da ala anti-macabúnzia que se encontra por todo o país. Ele conhecia a pátria de que foi pai como as palmas das suas mãos e com um amor extremo.
Nunca ninguém sabe como se faz um luto assim. A morte de Soares é o fim do nosso princípio enquanto país democrático.
“Sou um homem de esquerda. Sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata. E, antes ainda, sou português” “Sou uma pessoa naturalmente conciliadora e dialogante. Como tal, negoceio até poder, com paciência, boa-fé, persistentemente. Mas quando me convenço que a situação está bloqueada e sinto que não é possível avançar, quando me vejo encostado à parede, então, luto. Luto até ao fim, sem tergiversações. Porque sou também, como sabe, um homem de convicções e de caráter, que conhece bem o caminho que deve percorrer. Como se viu – contra o fascismo, o marcelismo, o gonçalvismo e por aí fora…” Mário Soares ex-Presidente da República“Sou um homem de esquerda. Sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata. E, antes ainda, sou português”