Criado “num universo de rudes valores cristãos e rurais, onde todo o prazer era considerado pecado e equivalia à condenação”, embora Tennessee Williams provavelmente não acreditasse em Deus, segundo o amigo, Gore Vidal, da noção do pecado nunca conseguiu livrar-se. Só “nervosa e tardiamente” iniciou a sua vida sexual. As primeiras experiências foram heterossexuais, e só depois admitiu para si mesmo a verdadeira inclinação da sua natureza insaciável. Se manteve os “ares de grande senhor sulista” e não sacudiu completamente a moral de um pequeno burguês WASP (branco, anglo-saxão e protestante), recuperou extravagantemente o tempo perdido, e não só os parceiros foram em grande número ao longo dos anos, mas havia nele a inquietação de um espírito “mutilado”, que, por ser incapaz de se saciar, de amar definitivamente alguém, remendava esta ausência no excesso, nos prazeres acessíveis, na satisfação dos impulsos.
“O que se tornou evidente é que ninguém tem grande importância para mim”, admitiu Williams numa entrevista em 1945. “Sou gregário e gosto de ter pessoas à minha volta, mas quase qualquer um serve.” Esta mesma desordem colocava-o depois como um severo juiz em relação a si mesmo, sentindo alguma da repulsa que sentia pelo mundo. E ele era um homem que, se pôde desistir de Deus, não desistiu do Bem, desejava a purificação buscando um mundo melhor. Isto provocou nele, como refere Vidal, “um complexo esquizofrénico”, algo que, se o torturou toda a vida, provou ser-lhe bastante útil enquanto escritor.
“A Noite da Iguana” começou por ser um conto, antes de se tornar a sua última grande peça de teatro. Escrito em 1940, num período em que Williams sofreu um grave colapso nervoso, passaram mais de duas décadas até ser transformado num texto para teatro, que teve a sua primeira encenação em 1961. Comparando-os é notório, como disse ao i Jorge Silva Melo, que a história ficou com ele, andou a “remoê-la” aquele tempo todo.
Na escrita de Williams “os abismos são ecos de soluços” (um verso que podia também ser dele, mas é de Juan Eduardo Cirlot). Tanto nos contos como nas peças, o dramaturgo procurou ir além do exorcismo de alguns demónios, confrontou-se com a corrupção e podridão no mundo, e, como nota Vidal, tentou “desmascarar a orgulhosa demência da sociedade que tanto o feriu”.
É revelador ler o conto e perceber que o que importa não são as personagens mas a crise e o estado de desespero que leva Williams a partir-se como a um espelho, a servir-se reflexos para poder confrontar-se e lidar com o que o atormenta, num muitas vezes nada subtil meio de se recriar literalmente como “um drama em gente”, e através da compaixão alcançar para si nem que seja um perdão parcial.
Comparando conto e peça, vemos o autor remeter a protagonista para um papel secundário, tirando-lhe a costela que dá origem ao reverendo T. Lawrence Shannon, um tipo de boas famílias que se vê caído em desgraça e afastado da igreja depois de se envolver com uma noviça, menor de idade. A pouca acção da peça desenrola-se num hotel cheio de manhoso encanto, situado sobre a enseada de Puerto Barrio no México. Estamos em 1940, e o Costa Verde também não nasce da imaginação de Williams, mas foi um dos hotéis que o teve como hóspede num período em que sentiu a demência passar tão perto que o levava.
Esta quarta-feira “A Noite da Iguana” sobe ao palco do São Luiz, e esse será o culminar de um projecto que Jorge Silva Melo concebeu com vista a “agregar as grandes instituições” do nosso teatro. “Poder fazer uma digressão grande, uma vez que são espetáculos de grande elenco, com textos célebres mas pouco vistos em Portugal. Foi um projeto que desenhei para três anos, demorou seis a ser feito. E algumas das instituições foram abandonando, como o CCB, onde estreou “A Gata em Telhado de Zinco Quente”, o Viriato também abandonou. O São Luiz apareceu a certa altura. O TNDMII não quis…” Mesmo tendo sucedido no esforço de materializar muito daquilo a que se propôs, com a “Iguana” a marcar a quarta estreia de uma peça de Williams nos nossos palcos desde 2014, exausto, o responsável do grupo Artistas Unidos, garante: “Nunca mais me vou meter noutra deste género. Foi uma carga de trabalhos conseguir as estreias.”
Quanto à razão que levou Silva Melo a escolher dedicar um ciclo a Williams, diz-nos que se é verdade que todos os filmes que se fizeram a partir das suas peças são maravilhosos, e as interpretações neles muitas vezes intimidam os actores desafiados a devolver aquelas personagens ao palco, o encenador nota que estes são muito diferentes das peças. “Descobri que há nele uma escrita mais desarrumada, mais febril, frenética, mais angustiada e tremida do que aquilo que nos aparece nos filmes. Os filmes estão muito bem construídos – sobre as peças dele trabalharam uns cinco ou seis argumentistas, e arrumaram aquilo tudo em efeitos dramáticos. Ele não, ele parece estar sempre num delirium tremens ao escrever. Um escritor clássico, mas que deixa uma obra imprecisa. Acho isso muito bonito.”
E em relação à diferença de a “Iguana” para o filme de John Huston, que contou com Richard Burton no papel de Shannon, Silva Melo diz que naquele “domina sobretudo a pulsão sexual, aqui é a inquietação existencial” que assume relevo. “Ali é a besta sexual que não sabe como resolver os seus problemas, aqui é um herói do Dostoiévski – depois da morte de Deus, depois da fé perdida… Aqui há mais contradição.”
Se ninguém contesta o carácter biográfico das suas peças, Williams, que revelou que tinha já vinte e tal anos quando começou a masturbar-se, coloca Shannon perante o mesmo dilema, com o Deus em que lhe fizeram acreditar como essa figura que usa a sua omnipresença para manter uma vigilância cerrada entre os animais e os seus ‘defeitos’ instintivos. A peça é um extenuante braço-de-ferro em que o reverendo se debate com o mundo e a sua culpa. Um alimentando o outro, e entre o perder e sentir-se incapaz de manter-se à superfície, este personagem ora se desfaz ora exprime uma raiva de mil homens (ou mulheres) esmagados pela bestial assombração que é essa mortificante presença constante de um Deus que se mata uma e outra vez, mas renasce de um sentido moral que nos foi inculcado, e da nossa necessidade de preservar algum Bem. Quando vê os rostos da congregação encherem-se de censura depois de se ter sabido que meteu as mãos na rapariga, Shannon é acometido do mesmo ódio contra aquele Deus que o impedia de masturbar-se, mesmo que não fizesse mal nenhum a ninguém, mesmo que tenha sido ela a procurá-lo, a entregar-se-lhe. Ele vira-se, não propriamente a Deus, antes diz-se “farto de sermões de adoração a um delinquente senil”.
O reverendo que percebe a hipocrisia não consegue evitar a forma como esta deformou a sua própria consciência, e enquanto guia de grupos turísticos, entre o estupor alcoólico, a boiar no limbo da solidão, revive de alguma maneira a originalidade do seu pecado, com as raparigas em flor, o que quer que o dane, para repetir até ao fim do mundo aquele momento em que sente ter perdido o rumo, e mesmo aqui, junto a uma praia mexicana, o mais longe que sabe ir, a moral persegue-o. Sejam as velhas que até ali guiou e que se recusam a sair da carrinha, lixadas porque ele se meteu com uma miúda, um prodígio com uma voz de anjo que numa récita se virou para ele declarando-lhe todo o seu amor, danando-o. As velhas que juntaram todo o ano e exigem os paraísos artificiais moldados para servir as imagens que os turistas já traziam na cabeça. E ele ainda a bater-se, mesmo como guia a tentar conduzir o seu rebanho, tenta levantar um pouco a cortina, dar-lhes algo mais que o postal… Tudo é em vão, e há um momento em que paraíso e inferno parecem duas ficções mancomunadas para desgraçar até ao último coitado na face da Terra.
A encenação de Silva Melo tem como principal fragilidade o desejo de dar a maior liberdade aos actores para que estes se encontrem com papéis de uma vida, ou seja, aqueles que lhes exigem que vão ao fundo de si mesmos, e mais longe ainda. Que se ultrapassem e mais do que figuras e expressões, gestos ou tiques, para lá das situações e do inesperado que possa servir de gatilho à acção, virem a própria pele do avesso, sirvam estados interiores, existam dentro de limites terríveis. Há algo de drástico e barroco nesta peça, camadas umas sobre as outras, muito já se passou, não resta inocência. A morte como solução não serve, é um ímpeto para quem não amou verdadeiramente a vida, esses não sabem largar.
As variações não chegam a cumprir um estado de vertigem terrífica compensadas em momentos breves de suspensão. Nuno Lopes no papel de Shannon, como Joana Bárcia no de Hannah Jelkes, lutam que se desunham, mas no ensaio para a imprensa ainda estavam entre cá e lá, numa peça traiçoeira, que por não ter acção obriga os actores a transportar cada cena numa tensão emocional esgotante. Numa peça que não se deixa representar, em que não há modo do actor dar dois passos atrás, alhear-se por um momento que seja, a queda é sempre real. Pelas entrevistas que deu, nota-se que Nuno Lopes está bem ciente de que encontrou o maior desafio da sua carreira. De que ele é um dos poucos actores portugueses com fibra para uma empreitada destas, não duvidamos. Mas Shannon é a própria demência.