Da safra de 2016 no que toca à publicação de originais de poesia portuguesa, só uma cega obstinação virá dizer que muito se fez. Face a anos anteriores não faz grande figura, e é difícil mesmo amarrar-lhe um gosto ou um fardo, sendo cada vez mais clara a sensação de que tudo parece difuso, tudo o que se passa já encontra as costas viradas, e há uma saturação pelos muitos nomes e títulos que mal dançam de tão compenetrados em agarrar uma cadeira assim que cortem a garganta à música. Com a devida vénia que houve já oportunidade de fazer às duas ou três excepções mais honrosas, merece destaque também “Estrada Nacional”, o quinto e último de um ciclo que Rui Lage iniciou há mais de uma década, e que reclama uma “consequência do lugar” remontando uma geografia candente, como se aproveitasse da memória uma dicção e através dela recontasse a história íntima do próprio olhar.
“Se é possível conservar a juventude/ Respirando abraçado a um marco de correio” – lê-se à cabeça de uma série de ses no poema de Alexandre O’Neill, imagem que veio além do sentido que fazia, veio cumulando um suave anacronismo que hoje já lhe desenraíza as fundações para ir a caminho das fábulas nostálgicas. Este e outros poetas mais e menos vivos, fazem-se companhia no modo um tanto perplexo, e às vezes áspero, de ser também sentimental, que é o de Lage. É gratificante ler uma poesia que leu, e que disso também se faz sabendo ir muito além dos envios, porque trazem os especiais defeitos da fala, modos que se confundem com o embalo de uma identidade que nos parece quase muito antiga, a do vínculo rural, que tinha um desassombrado sentido de pertença à terra. Essa quase consanguínea qualidade que levou João Miguel Fernandes Jorge a gravar na pedra versos tão singelos como estes: “Os portugueses, os de cabelo castanho,/ divididos/ por comunidades/ de marinheiros e comerciantes,/ e populações agrícolas do interior”.
Merece correcção uma achega que, mesmo se leviana nem por isso é menos grosseira, feita por Pedro Mexia ao recensear “Estrada Nacional”, quando afirma que este encerra o tal ciclo de elegias rurais como o título mais memorável. Ser o editor de “Rio Torto” não deve ser factor de inibição tal que me impeça de notar a imensa injustiça feita a este livro, que passou tão discreto (ou ignorado) quanto um excelente livro de poemas pode passar. De resto, seria estranho que o livro em que o poeta se ocupa tão centralmente da infância não vencesse a quadrícula, não soubesse torcer bem a memória e enxugá-la dos lugares comuns de toda a gente, para redescobrir essa verdade pela qual enfim vale a pena dizer que a infância é uma invenção insuperável.
“Rio Torto” é precisamente o livro em que a tentação programática que faz do percurso de Lage um dos mais coerentes e seguros da poesia portuguesa actual, consegue extravazar um enunciado, e mostrar a “carnadura concreta” de uma audaz poética, que se aprende da pedra, de “frequentá-la;/ captar sua voz inenfática”.
Rui Lage nasceu na cidade do Porto em 1975
O triunfo desta poesia está nesse golpe nos rins, mais do que no golpe de asa, pelo modo como nos habitua, como os seus primeiros passos envenenam as expectativas que tivéssemos e as leva a enterrar, para não fazer de ânsias o seu caminho. Para que não lhe perguntem sempre se já chegámos, se é isto a poesia. Pode ser, logo vemos, mas há mais coisas neste mundo que merecem atenção. E mostrando que a coisa aqui se faz, um pouco como insistiu João Cabral de Melo Neto, que a música pode ficar calada, o silêncio também tem gradações, até ritmos, também faz o ouvido: “Eu vi que era possível escrever uma poesia áspera (…) uma poesia que não embalasse o leitor, uma que não fosse um carro a deslizar num pavimento de asfalto, aquela coisa lisa, mas que o leitor – que é carro – passasse em cima de uma rua mal calcetada, em que o carro fosse sacolejado a todo o momento. Uma poesia em que o leitor ao passar de uma palavra para a outra tivesse que pensar”.
Vejamos como o faz Lage: “Escavo as trevas à força de faróis:/ aponto à estrada florestal/ esses dois minúsculos sóis/ com que inauguro galerias provisórias,/ claustros, arcadas, naves arbóreas,/ e de halos breves conjuro cancelas,/ muros velhos veredas, levadas.// O seu clarão torna visível o invisível,/ traz as coisas para a existência (…). Com faróis ilumino porque não tenho luz própria:/ cego viajo, como a traça,/ às voltas, às voltas,/ tão negro como a noite que lá fora me cerca,/ peixe dos abismos, toupeira,/ cometa.”
Se 2016 foi um ano sem abalos significativos, isso não apaga a abertura e desafectação que está em curso na poesia portuguesa, algo que se deve tanto à perda de influência da crítica hebdomadária como à sua inépcia em firmar ali ou noutros lados qualquer juízo actuante, que relance os dados e sirva à eternidade um furioso acaso.
Pressente-se a morte por desgaste e desgosto de uma poesia que se deixou tolher rente a um registo biográfico, e condescente nisso. De novo emerge um enorme cansaço de toda a moleza que se dobra em sarcasmos. Há um desejo de mais que agressão, ultrapassagem face a uma realidade que cada vez mais embosca, apouca, garante que não há outra via. Não há mais paciência para a baixeza orgulhosa dos que vêm para os versos para nos dizer onde foram, fazer o quê, e com quem, e ainda nos dão opiniões. “É por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser/ escrupulosamente electrocutadas vivas/ para não termos de atirá-las semi-mortas à linha”…
E aquilo em que isto se relaciona com a poesia de Rui Lage é o quanto, mesmo num percurso que não vai em deslumbramentos, se percebe esse reforço dos sentidos, essa vida verdadeira a despontar sobre uma terra devastada: “Faço escala em passagens de nível/ com papoilas de guarda/ a comboios fundeados no campim// metálicos bovinos ruminando o sol jacente/ no meio das ervas/ e da barba amarela dos carris// ciclovias que entram pelo poente,/ vazias, e sardões a tostar nas travessas,/ zeladores do pó// estações de comboio chefiadas por andorinhas,/ fantasmas de crianças que atravessam,/ de mochila às costas, as férreas linhas.”