Na autobiografia “O Diabo na Cozinha (ed. Quetzal), Marco reconstitui o seu percurso, revelando histórias picantes de pancadaria e sexo na cozinha.
Em 2006, quando Marco Pierre White era já uma celebridade em Inglaterra mas não tanto fora dela (ainda não tinha participado em concursos televisivos), o jornalista Bill Buford apresentou-o assim ao público americano: “Era tão emotivo, tão imprevisível e ficava tão excitado (em 1990 foi internado depois de um ataque de pânico com hiperventilação lhe ter paralisado o lado esquerdo) que as pessoas vinham ao restaurante na esperança de que acontecesse algo inesperado. […] Quando alguém pediu batatas fritas, ficou tão ofendido que foi ele mesmo a prepará-las e cobrou 500 dólares. […] Atirava com coisas; partia coisas; insatisfeito com um prato de queijo, atirou-o contra a parede, onde ficou agarrado e foi a escorregar à medida que a noite avançava”, escreveu Buford no livro “A Ferver” (ed. Sextante).
Já Mario Batali, chef, empresário de restaurantes, amigo de Marco e o protagonista de “A Ferver”, chamou-lhe “um génio maligno”. “Da última vez que falámos, atirou-me uma panela quente com risoto para o peito”. Conhecido pelo brilhantismo, mas também pelo temperamento irascível, pela forma impiedosa como tratava os empregados e por insultar e expulsar clientes, Marco Pierre White apresenta agora a sua versão dos factos na autobiografia “O Diabo na cozinha” (ed. Quetzal). Mas não se esperem dele meias tintas nem paninhos quentes.
A morte da mãe
Marco Pierre White nasceu em Leeds, no Norte de Inglaterra, a 11 de dezembro de 1961. O seu pai, que “era chef e filho de chef”, trabalhava como gerente de cantina e era viciado nas apostas de corridas de galgos. A mãe era italiana, de Génova. “Passava os dias a cozinhar e a fazer colchas de retalhos na sua querida máquina de costura Singer”.
Um dia, tinha Marco seis anos, a mãe sentiu-se mal e foi levada numa ambulância. “Dia 20 de fevereiro, a terça-feira seguinte a ela dar entrada no hospital, os médicos desligaram a máquina que a mantinha com vida. Nessa noite, o pai chegou a casa, acordou-nos a todos e mandou-nos sair da cama e descer. Reunimo-nos na sala, onde poucos dias antes a mãe tinha dito que não se sentia bem, e o pai sentou-se na cadeira. Eu fixava-lhe o rosto, por onde escorriam lágrimas. Então, disse-nos: ‘A vossa mãe morreu esta noite.’” Craig, o bebé de 13 dias que deixava para trás, seria entregue a uns tios que viviam em Itália, enquanto Marco e os seus dois irmãos mais velhos continuariam com o pai.
Chef estrela
Rebelde e com pouca paciência para os estudos, Marco ganhava dinheiro a fazer biscates como recolher garrafas de leite ou a servir de caddie a jogadores de golfe ricos. Na véspera da Páscoa de 1978 abandonou a escola sem fazer os exames e, a conselho do pai, candidatou-se a um lugar como aprendiz de cozinha no melhor hotel de Leeds, onde aprendeu os fundamentos da profissão. Seguiu-se o Box Tree, um dos restaurantes mais caros e requintados de Inglaterra, propriedade de um casal gay. “A abarrotar de industriais, tipos que tinham feito dinheiro no setor têxtil, nas décadas de 50 e 60. À noite, ouvia os carros estacionarem, as portas baterem. E não só uns carros antigos quaisquer: enfileiravam-se Bentleys nas ruas em volta. Enquanto bulia, tentava sempre manter um olho nas portas de vaivém entre a cozinha e o restaurante. Quando se abriam, tinha um vislumbre dos clientes – radiantes, impecavelmente vestidos, com ar rico, glamoroso e sofisticado”.
A partir daí, Marco tinha carta-branca para trabalhar em qualquer restaurante de Inglaterra: passou pelo Gavroche, pelo Chez Nico e pelo La Tante Claire, os três melhores restaurantes de Londres. E ainda trabalhou no Le Manoir, em Oxford, antes de abrir o seu primeiro restaurante, o Harveys, que define como “o restaurante que lançou a minha carreira, mudou a minha vida e me transformou no chamado ‘chef estrela rock’”. As coisas não correram bem durante os primeiros tempos. Até que recebeu uma chamada do crítico do “Sunday Times” a dizer que “tinha comido no Harveys e que adorara a refeição”. “Em cheio! As reservas nunca mais pararam”. Daí em diante, o Harveys tornou-se um ponto de encontro de “celebridades e políticos, supermodelos, estrelas pop e jornalistas cor-de-rosa”.
Pequeno-almoço pouco saudável
Marco, que tivera de aguentar “ensaboadelas” monumentais e um ritmo alucinante nos restaurantes onde trabalhara, tornou-se viciado em adrenalina. “Estava no restaurante das nove da manhã às duas da manhã seguinte; voltava para casa e dormia três ou quatro horas. Não havia trégua. Circulavam rumores de que eu dava na coca. Dado o remoinho à minha volta, era compreensível. Acontece que, sob o efeito de drogas, eu não conseguiria dar conta do recado nem trabalhar tantas horas. Consciente dos boatos, diverti-me uma vez no Harveys a pôr uma linha de sal no antebraço e a snifá-la”.
“Eu corria incessantemente, como um dos queridos galgos do meu pai. Imaginem que correm uma maratona toda… em sprint. Imaginem com que aspeto ficarão a meio do percurso, e terão uma ideia do meu próprio aspeto nos tempos do Harveys: escanzelado, arrasado e exausto”. O seu dia, de resto, começava com pequeno-almoço peculiar – e não particularmente saudável. “O meu pequeno-almoço, a propósito, consistia sempre em três coisas: tossir, beber um café, fumar um cigarro”.
Fumo na penthouse de Michael Caine
“Eu era, então, uma espécie de cozinheiro a soldo”, conta Marco Pierre White. Corria o ano de 1992 e o ator Michael Caine, que ia financiar um restaurante seu contratou-o para cozinhar na sua penthouse para um grupo seleto, que incluía também o primeiro-ministro John Major. “Como já disse, o Michael é daquelas pessoas que gostam de comida sem mariquices. Por isso ninguém estranhou quando pediu frango assado no forno, devidamente guarnecido”.
O problema foi que o chef se distraiu à conversa com o anfitrião e os convidados. “O fogão começou a deitar fumo e o ar condicionado não estava a funcionar. Num piscar de olhos, estávamos todos a tossir, envoltos num nevoeiro de fumo, e o alarme de incêndio disparou. Um dos rapazes, quase a sufocar, abriu a porta da cozinha, por onde uma grossa e negra nuvem de fumo saiu e chegou à sala de estar, onde se encontravam o anfitrião, primeiro-ministro e um molho de estrelas, acabando talvez o Michael de lhes comunicar que os aguardava uma refeição preparada por um chef com estrelas Michelin. Consegui ver, apesar do fumo, a cara de choque do Michael, que sabia que as mangueiras dos bombeiros não eram suficientemente compridas para chegar à penthouse”.
Sexo no restaurante
A fama de chef brilhante e temperamental atraía ao restaurante de Marco Pierre White clientes esperançados em assistir a uma das suas célebres explosões de fúria. Mas também mulheres que queriam conhecê-lo mais de perto.
“Não me lembro como se chamava, mas conhecemo-nos na escadaria entre a sala de jantar e as casas de banho. Era morena, de corpo bem-feito e devia estar no início dos quarenta, bem aperaltada, num vestido preto curto. Ao cruzarmo-nos nas escadarias, sorriu-me. Tomei a sua simpatia por desejo e perguntei-lhe:
– Posso mostrar-lhe o meu escritório?
– Onde é?
– Ali em cima.
[…] Juntos, galopámos os degraus até lá. Tateámos e apalpámos, abrimos fechos e botões. Os jornais tinham-me descrito como «o Jagger do fogão». Não era difícil fazer por estar à altura da reputação.
Dois andares abaixo do meu escritório tinha ficado um restaurante apinhado, onde os clientes comiam pratos com estrelas Michelin e desfrutavam de boa companhia, como todos queremos que aconteça quando jantamos fora. Algures, numa mesa para dois, havia um homem sozinho”.
“Cacetada da boa”
Marco detestava a decoração do seu restaurante, o Harveys. Em compensação, adorava uma boa cena de pancadaria. Um dia, quando o autor da decoração se recusou a pagar a conta por causa dos serviços prestados, o chef encontrou uma forma de conciliar estes dois sentimentos. “Durante meses, olhando para aquela piroseira, eu tinha pensado: quem me dera conhecer o filho da mãe do responsável. E agora ei-lo à minha frente, prestes a avançar rumo ao meu punho fechado. Cada murro que lhe dei – e foram uns quantos – foi um golpe em nome do bom gosto. […] O tipo saiu do Harveys a coxear, com menos um ou dois dentes e um tímpano perfurado por tratar. E com metade da roupa”.
Quem também não enjeitava uma oportunidade para andar à pancada era Gordon Ramsay, que Marco quase levava ao desespero com as suas “ensaboadelas”. Mais tarde acabariam por zangar-se (Marco diz que Ramsay levou uma equipa de filmagens para o seu casamento às escondidas), mas não sem antes formarem uma dupla temível.
“Como se não houvesse já rixas que chegassem no Harveys, tínhamos de levar com os jovens de Wandsworth, que achavam hilariante ficar junto à janela do restaurante, baixar as calças e mostrar o rabiosque ao léu aos meus clientes. […] Um dia três jovens hooligans abriram a porta de entrada, pegaram numa lata de coca-cola, agitaram-na, abriram-na e lançaram-na para dentro da sala de jantar. Ao que dizem as testemunhas, foi como uma bomba de gás. […] Quando os palermas passaram pela porta, tinham o Gordon e mais dois chefs à sua espera para lhes darem as boas-vindas. De onde eu estava, junto ao fogão, consegui ouvir o som de murros, pancadas, socos – cacetada da boa. A seguir, o Gordon voltou à cozinha, de punho cerrado,. Ao esmurrar a boca de um dos hooligans conseguiu, não sei como, ficar com um dente espetado no nó dos dedos”.
A verdade sobre as batatas fritas
A maioria dos episódios narrados por Bill Buford sobre a lenda de Marco Pierre White são corroborados pelo próprio – que até acrescenta pormenores picantes. Mas há um caso em que Buford exagerou notoriamente: quando escreveu que o chef cobrou 500 euros por uma dose de batatas fritas. Marco repõe a verdade sobre a história.
“Um dia, chegou um tipo e pediu uma dose de batatas fritas, acrescentando: ‘E que seja o Marco a fazê-las’. Deve ter achado que teria um piadão pedir batatas fritas num restaurante de luxo, que nem sequer as tinha na ementa. Pensei: ‘Muito bem. Queres as tuas batatas fritas? Eu dou-tas. Mas se pedes que as faça eu, pagas em conformidade.’ Cobrei-lhe 25£ e pu-lo a fazer figura de urso. Chegou a conta, não quis acreditar e queixou-se ao chefe de sala”. Na realidade, o cliente não sabia a sorte que tinha: doido como era – embora não gostasse que dissessem isso sobre ele… – não espantaria que Marco Pierre White tivesse exigido dez vezes mais pelas batatas fritas, ou seja, qualquer coisa como os 500 dólares de que Buford falou.