Na primeira viagem a Nova Iorque como Presidente da República, onde discursou na ONU, Marcelo Rebelo de Sousa foi às tantas abordado num espaço público por um jornalista de microfone em riste, que lhe perguntou qual era a sua opinião sobre as eleições americanas. Marcelo respondeu que, por princípio, não dava opiniões sobre questões internas doutros países. Então o jovem jornalista, descontraidamente vestido de t-shirt, perguntou-lhe a que delegação pertencia, ao que Marcelo prontamente respondeu: «Portuguesa. Delegação portuguesa». O jornalista insistiu: «E qual é o seu cargo?». Ao que Marcelo retorquiu, com um sorriso compreensivo pela ignorância do jornalista: «Presidente da República».
A cena está nas redes sociais, com milhões de visualizações. É hilariante. Mostra o lado mais informal de Marcelo Rebelo de Sousa, que circula livremente em locais públicos e se expõe a ser interpelado por um jornalista sem qualquer filtro prévio.
Este episódio recordou-me um outro passado comigo há uns bons 25 anos, no velho edifício do Expresso na R. Duque de Palmela, ao Marquês de Pombal (por sinal, onde Marcelo também trabalhou).
Eu era diretor do jornal há cinco anos ou mais. Entrei no elevador – um elevador lindo, de caixa de madeira e vidro, que penso ser património municipal – onde já estava uma colaboradora externa de nome Amélia (não recordo o apelido), uma rapariga bonita que fazia uma rubrica chamada Cabaz de Compras. A ideia era percorrer alguns supermercados, registar os preços de certos produtos, e compará-los. Era uma coluna bastante original na época, publicada nas páginas de Economia.
Enquanto subíamos no elevador, procurei fazer conversa:
– Então, vem cá trazer a sua crónica desta semana?
– Venho – respondeu a rapariga, hesitante. E olhando-me de frente, questionou: – E você vem cá fazer o quê?
– Eu venho fazer de diretor – respondi, perante a surpresa embaraçada da jovem.
Esta situação é particular. Mas acontece com alguma frequência cruzarmo-nos com pessoas que conhecemos bem mas de que não recordamos o nome.
Eu fazia semanalmente reuniões com os coordenadores do jornal, e por vezes sucedia não me lembrar do nome de algum. Eram momentos aflitivos, pois eles associavam o esquecimento a falta de consideração.
Para resolver o problema, pedi à minha secretária para, antes das reuniões, passar a pôr à frente do meu lugar uma folha com os nomes de todos os participantes e a ordem pela qual deviam falar. A partir daí as ‘brancas’ acabaram.
Entretanto, para mim, o pior de tudo são as sessões de lançamento de livros, quando chega a hora de os assinar.
Sempre que se trata de desconhecidos, não há problema. «O seu nome?», pergunto. A pessoa responde e eu escrevo: «A fulano de tal, este livro etc., etc.», e passo ao seguinte.
Mas quando é uma pessoa conhecida cujo nome não me ocorre, aí é que são elas! Geralmente socorro-me de um truque: perguntar à pessoa em que nome quer que a dedicatória fique. «Ponha só Laura», diz-me uma senhora (as mulheres preferem as dedicatórias apenas com o nome próprio). «Ponha Carlos Martins Santos», diz-me um homem.
Um dia, porém, surgiu-me à frente uma pessoa que eu conhecia perfeitamente mas cujo nome não conseguia recordar, por mais voltas que desse ao cérebro. Pode parecer estranho, mas naquelas situações, debaixo de tensão, com luzes apontadas à cara, no meio de muita gente, há momentos em que a nossa cabeça se esvazia, como se ficasse sem nada dentro.
Lançando mão do referido truque, perguntei à dita pessoa:
– Em que nome quer que ponha?
– Ponha no meu – respondeu-me simplesmente.
– Sim, mas qual? – insisti a ver se pegava.
– No meu – reforçou o indivíduo, sem perceber a minha insistência.
E aí não tive outro remédio senão confessar:
– Desculpe, mas momentaneamente não me lembro do seu nome –. O homem fez um ar de enorme estranheza, disse-me o nome a despachar, eu escrevi a dedicatória, e ele partiu com o livro na mão, lamentando talvez a hora em que decidira ir àquela cerimónia.
Mas enfim, são ossos do ofício. O ideal é conhecermos os nossos defeitos e anteciparmos as situações delicadas, de modo a podermos evitar as mais embaraçosas.
Claro que, por muitas previsões que façamos, há sempre qualquer coisa que nos escapa. E aí há dois tipos de pessoas: as que saem dessas situações com o maior dos à-vontades, e as que ficam embaraçadas. Mário Soares pertencia à primeira categoria: não se atrapalhava com nada. Infelizmente, eu pertenço à segunda.