Antes de nos fazermos à estrada convém esclarecer que de ciclista, esta dupla tem apenas as memórias de infância feitas de círculos pequenos no quintal da avó. Talvez por isso a ideia de 40 quilómetros de bicicleta nos tenha feito optar pela versão elétrica que, apesar de obrigar na mesma a um pedalar constante, dá um impulso extra à velocidade e não obriga a um esforço contínuo.
Sabíamos que o terreno era plano e que o dia era de sol. Mesmo assim, desenterrámos as luvas, os corta-ventos e os cachecóis do armário – até porque qualquer sol de inverno é ineficaz quando se circula de cara à mostra a uns 25 km/hora.
Antes de ligar o GPS do relógio, confirmamos as horas. São 11h30 e estamos, literalmente, debaixo da ponte Vasco da Gama, em pleno Parque das Nações. Seguimos com a premissa de chegar a Cascais sempre com o rio e o mar do lado esquerdo, tentando fugir à estrada e aos passeios, testando assim a rede de ciclovias que promete ligar no futuro as duas localidades (e até chegar a Vila Franca de Xira).
O primeiro quilómetro e meio acontece sem imprevistos, mas pode bem servir de amostra para o que vamos encontrar: ainda agora começámos e já passámos, contas feitas por alto, por dez corredores. E já que falamos de exercício físico, mesmo antes de chegar à Torre Vasco da Gama, surge o primeiro parque de fitness. “É raro o dia que não venho cá”, admite Rui, que pousou os sacos das compras para se sentar na ‘Leg Press’, a máquina que permite desenvolver o músculo das pernas. Ser o único utilizador deste espaço de fitness ao ar livre é caso raro. “Ao fim de semana quase que se fazem filas”, conta. Não era o caso – fizemos o passeio numa terça-feira – o que deu tempo de sobra a Rui para uma caminhada de ida e volta ao Oceanário, com direito a lugar no circuito de ginástica antes de almoço.
Não querendo interferir com o exercício alheio, voltamos a focar-nos no nosso, que depressa começa a tornar-se mais exigente. Os próximos três quilómetros, ainda no perímetro da Expo, contam com um corredor de árvores cujas raízes são mais fortes que o cimento que as tenta tapar. Consequência: solavancos impróprios para ciclistas de primeira viagem.
Passado o tormento, a estátua do Gil surge quase como uma visão, a lembrar a mística de 1998. Um grupo de miúdos ensaia a pose para a foto que a professora se prepara para tirar. “Melancia” gritam, agarrados às pernas do boneco. “Está bom, vamos embora”. A professora dá o mote e nós também acatamos a ordem.
Já com o Parque das Nações pelas costas, segue-se a primeira prova de fogo, sem ciclovia, nem passeios largos o suficiente para fugirmos à estrada. As obras em Marvila encurtaram o espaço para os carros e as bicicletas também sofrem. Mas não há razão para desespero: a seguir começa a verdadeira passadeira vermelha, com 3 quilómetros de ciclovia quase até Santa Apolónia.
Apesar de sereno para o rolamento da bicicleta, este curto percurso é talvez o mais desinteressante, pelos contentores que tapam a vista para o Tejo do lado esquerdo. É também o mais desconcertante, pela quantidade de pessoas que aproveita o abrigo dado pelos viadutos para construírem casa improvisadas.
Dez quilómetros
Quase como se de um prémio se tratasse, aos dez quilómetros já temos a Sé como ponto de referência, apesar de ser o lado esquerdo da nossa viagem que nos faz desviar o olhar.
Atracado em Santa Apolónia está o Costa Mediterrânea, de onde saem centenas de pessoas cheias de vontade de conhecer Lisboa. Ainda bem que à sua espera têm uma fila de autocarros, porque se tivessem de percorrer os próximos três quilómetros de bicicleta, tinham que escolher entre dois obstáculos: os táxis da faixa de “Bus” ou os turistas que chegaram mais cedo e já andam a aproveitar os passeios à beira-mar – ou não estivéssemos a chegar ao Terreiro do Paço.
Com os pés quase no rio, os turistas aproveitam as escadas que dão acesso à água como mesa, onde espalham a pizza e as garrafas de vinho compradas nas proximidades. Se o cenário não é já por si idílico, juntemos-lhe a banda sonora de Sting, com a “Shape of My Heart” tocada a guitarra e bateria por uma dupla de músicos de rua.
Enquanto temos de dizer que não a três tentativas de venda de “selfie sticks”, avistamos um casal de namorados que, de mapa aberto, escolhe a próxima paragem. De frente para o Tejo, levanta o braço e aponta para a direita. É esse também o nosso caminho.
Quem vê a Ribeira das Naus – onde o difícil é escolher entre sentar na relva ou na escadaria com acesso ao rio (ou, ainda mais difícil, entre a companhia de um Pisco Sour ou de um Tinto de Verano vendidos no quiosque), não está preparado para o rally papper que é atravessar o Cais do Sodré.
Apesar da cara de esforço dos ciclistas em contornar o que resta das obras de requalificação, nada parece incomodar os pele vermelha pouco habituados ao sol das esplanadas, mas que insistem em investir em mais uma “pint” ao invés de num novo protetor 50+.
As esplanadas, assim como os turistas, continuam, desta vez a partilhar mesa com os engravatados que aproveitam as Docas para fazer almoços de negócios.
E aqui surge a primeira grande novidade: um sinal que obriga a saltar do selim (uma boa notícia) e a levar a bicicleta à mão (não tão boa notícia assim). Mas vá, são só 250 metros e o GPS acaba de assinalar que já percorremos 15 quilómetros, mesmo no momento em que passamos debaixo da ponte 25 de Abril. Ali, nem o barulho ensurdecedor de carros e comboios a passar por cima das nossas cabeças parece incomodar a dupla que aproveitar a hora de almoço para usar o Clube de Padel. Afinal, o importante é não perder a bola e, no nosso caso, o equilíbrio.
Da ponte a Belém, a vista é incrível. Ponto final. Nada entre a ciclovia e a margem a não ser bancos de jardim aproveitados como sofá para dormir a sesta, apoio para fazer alongamentos depois da corrida ou mesmo de mesa de trabalho, para quem não larga o computador nem durante a hora de almoço. Alguém disse almoço? Está na hora da pausa, até porque o GPS dá conta de quase meio caminho feito.
Vinte quilómetros
Das quatro rulotes de street food, escolhemos uma de tostas e fruta: a combinação perfeita para dar uma energia que só não esgota mais rápido porque temos um grupo a tocar funaná e a tentar vender os cds da banda. “Doze músicas por dez euros. Bom negócio, não?” Até seria, se não tivéssemos mais vinte quilómetros pela frente.
Do funaná às flautas de pan, agora são os hits dos ABBA a servir de banda sonora às dezenas de chineses que tentam apanhar a Torre de Belém do melhor ângulo. Contornamos meia dúzia deles quase como numa gincana e, como estamos com tempo, decidimos contornar também a Fundação Champalimaud – são mais alguns metros mas que valem a pena pelo passeio bem perto do Tejo.
Ainda bem que o fizemos, porque os quilómetros seguintes são de um vazio de paisagem, onde só podemos imaginar um recinto cheio durante o festival Alive. Por excesso de imaginação ou falta de jeito, a verdade é que nos vemos quase que encurralados e, por isso, obrigados a levantar uma rede que não devia ser levantada – xiu, não digam a ninguém – para passar para o passeio, seguindo assim o caminho indicado por um grupo de companheiros de duas rodas.
Se agora são poucos os ciclistas a acompanhar esta viagem, antecipa-se que, no futuro, venha quase a ser preciso esperar na fila para entrar numa ciclovia. O governo vai pôr em prática um Plano Nacional para a Promoção da Bicicleta para criar uma rede nacional de ciclovias para servir deslocações de casa para a escola ou o trabalho.
Em Lisboa, essa tarefa será facilitada pela rede de partilha de bicicletas que começa a funcionar em Junho, com 1410 bicicletas (940 elétricas e 470 convencionais) distribuídas por 140 estações espalhadas por toda a cidade. Mas enquanto isso não acontece, aproveitemos os mais recentes dois quilómetros de ciclovia – entre a Baía dos Golfinhos, em Caxias, e a praia da Cruz Quebrada – e que às 14 horas de um dia de semana são quase só para nós. Quase, porque Lina e Eduardo não dão tréguas na caminhada rápida que quase já se tornou um ritual diário. “Não é, mas vai passar a ser”, garante Eduardo. Lina confessa que só começaram esta semana mais a sério. “Mas como é que se chama? Marta? Está aqui prometido à Marta que a partir de hoje é todos os dias”.
Cada dupla segue o seu caminho e o nosso já vai em Paço de Arcos, onde damos graças por ser Janeiro e dia de semana, visto que, segundo a sinalização, a circulação de bicicletas é proibida entre as 9h e as 20h, de Abril a Outubro, e entre as 10h e as 17h aos fins de semana de Novembro a Março. Depois deste entrave burocrático, sentimo-nos de novo bem-vindos, já que até no chão está escrito que “O passeio marítimo é para andar” e, no nosso caso, pedalar.
Trinta quilómetros
A viagem sempre à beira mar quase faz esquecer os quilómetros que vão passando no GPS do relógio. Mas já são mais de trinta quando chegamos à Marina de Oeiras.
Há um graffiti que nos recebe e que, em letras garrafais, diz “Tu és a exceção”. No entanto, basta olhar em volta para perceber que, afinal, somos a regra. Não há quem não passe que não tenha um ar saudável ou que, pelo menos, trabalhe para isso. Nós estamos de bicicleta, mas há quem prefira correr, andar de patins, skate tradicional ou mesmo elétrico. Já os que preferem desportos de mar, aglomeram-se na Praia de Carcavelos, onde vemos os primeiro surfistas do dia a sair da água.
À porta do surf center que dá apoio a quem é fã da modalidade, são dois os cartazes amarelos, cujos sinais de proibido destoam de um cenário onde tudo parece funcionar sem regras. “Sete mil beatas por minuto vão parar ao chão em Portugal”, lê-se no primeiro, mesmo em cima do que alerta para a tendência cada vez mais comum de beber ao ar livre. “O botellon não apoia o desporto na praia”, avisam e, de facto, não há ninguém no areal interessado em empilhar garrafas vazias. Aqui o levantamento do copo é trocado pelos passes de volley, os toques de futebol de praia e o vai e vem da bola das raquetes.
Mesmo com tanto desporto à mistura, nada fazia adivinhar que ao ciclismo iríamos ter que juntar exercícios de musculação. Mais uma vez, por falta de jeito ou por distração, vimo-nos encurralados numa saída que nos obrigou a subir um bom lance de escadas com a bicicleta na mão. E estamos a falar de uma elétrica que, apesar de facilitar a velocidade, pesa pelo menos mais cinco quilos do que uma convencional. Valha-nos o senhor que fez uma pausa no passeio e deu uma ajuda a voltar a terra firme.
A partir daqui, seguem-se cinco quilómetros aborrecidos pela falta de ciclovias e consequente caminho entre estrada e passeios. Com o alcatrão e os carros que vão passando, é fácil perder a noção de espaço. Quando vislumbramos praia novamente, somos obrigados a interromper a ida de um surfista para o mar. “Está na Praia da Poça”, avisa-nos. Já orientados, paramos para beber água, numa das fontes disponíveis e preparamos o caminho até ao final.
Continuamos à beira-mar, a fintar esplanadas, turistas e runners até que, já na entrada de Cascais, somos obrigados a voltar à estrada, mas aqui com sinalização para ciclistas.
Assim continuamos até chegar a um cenário para o qual precisamos de uns segundos de habituação. Sim, porque isto de passar de uma manhã a olhar para o Tejo e para o Atlântico para uma Cascais ao fim da tarde, não é automático. Logo à entrada, perto da estação de comboios, é preciso parar para relembrar as aulas de código e saber como se comporta uma bicicleta na rotunda. E quando a memória não vai tão longe, chama-se o instinto, que até agora tem funcionado.
Já quase de braços no ar em sinal de vitória como nos lembramos de ver os camisola amarela a fazer na meta, pedalamos gloriosos pelas ruas da vila até voltar a ver o mar. É na baía de Cascais que tiramos finalmente não as duas, por precaução, mas uma das mãos do volante, para um high five de quem ainda há pouco tempo estava na Expo. E como o GPS marca 42 quilómetros quando nos venderam um passeio de quarenta, decidimos transformar esses dois quilómetros em duas cervejas, já que o champanhe a sair em jato é exclusivo de quem chega ao pódio. Além disso, duas garrafas não conta como botellon, pois não?