Um investimento inicial de apenas 120 mil euros emprestados por um banco foi quanto terá bastado a Diogo Gaspar Ferreira, administrador do complexo de Vale do Lobo, no Algarve, para adquirir e passar a controlar, em 2007, um dos maiores empreendimentos turísticos do país. É esta a conclusão do Ministério Público, no âmbito da Operação Marquês.
O SOL sabe que autoridades reuniram provas de que os encargos e o risco do negócio, de quase 300 milhões de euros, ficaram todos por conta da CGD. A equipa que investiga o caso estará convencida de que isso só foi possível graças a alegadas decisões políticas e de gestão de José Sócrates e de Armando Vara, que terão recebido, cada um (Sócrates, segundo o MP, através de Carlos Santos Silva), um milhão de euros de ‘luvas’.
Ouvido pelo Ministério Público sobre esta questão, Vara recusou-se a falar. Quando questionado pelo juiz Carlos Alexandre reiterou que não se pronunciaria sobre o tema do dinheiro.
Até hoje, a CGD não terá recuperado um cêntimo do capital investido e Gaspar Ferreira continua à frente do empreendimento, sendo arguido na Operação Marquês, tal como Vara, Sócrates e Santos Silva. Aliás, Vale do Lobo – do qual o banco público se tornou simultaneamente acionista e financiador, contrariando as boas práticas de gestão bancária e passando por cima de alertas internos sobre o risco da operação – é o terceiro maior devedor da Caixa.
O empreendimento representa uma fatia significativa do total de (pelo menos) dois mil milhões de euros de imparidades que o banco público tem para resolver. E as provas reunidas pelo MP apontarão para eventuais responsabilidades de Armando Vara, então vice-presidente da CGD, pela decisão de entrar num negócio duvidoso, e de José Sócrates, na altura primeiro-ministro, pela intervenção política junto da administração do banco.
Primeiro passo para aquisição do resort
Tudo começou em 2005, quando Diogo Gaspar Ferreira – através de uma offshore, a Easyview, e com um empréstimo de cerca de 120 mil euros contraído junto do BES – entrou na compra do Vale de Santo António, um baldio de 8,5 hectares ‘cercado’ por Vale do Lobo.
Esta sociedade-veículo era detida por Diogo Ferreira em apenas 10%, ficando o resto do bolo com os seus parceiros holandeses da MDC, empresa que também adquiriu os terrenos onde estava implantado o antigo estádio do Sporting, em Lisboa, quando Diogo se encontrava ligado à estrutura dirigente do clube leonino.
Para o MP, foi o primeiro passo do plano para a aquisição do maior resort de luxo do país. Este investimento ficou em carteira com o objetivo de vir a ser rentabilizado, pois a sua proximidade a Vale do Lobo tornava-o uma potencial zona de expansão do empreendimento. Em face disto, o MP conclui que o esquema final de apropriação fácil (e pouco transparente) de mais-valias já estava a ser desenhado.
Sociedade com Horta e Costa e Helder Bataglia
Por essa altura, já Vale do Lobo estava com uma débil situação financeira. Foi então que Diogo Gaspar Ferreira e um grupo de gestores que desde sempre giraram na órbita do Grupo Espírito Santo (GES) decidiram adquirir o empreendimento ao seu proprietário, o holandês Sander van Gelder.
Os parceiros de Gaspar Ferreira são Rui Horta e Costa (ex-administrador da EDP, que passou pelo UBS e o Citibank) e o seu irmão Luís Horta e Costa (administrador da Escom, a empresa do GES envolvida na intermediação da compra de submarinos pelo Estado português e que foi o principal instrumento de negócios do grupo em Angola), Pedro Neto (outro administrador da Escom) e Hélder Bataglia (presidente da Escom e arguido na Operação Marquês, detentor das offshores por onde circularam os 20 milhões de euros de alegadas ‘luvas’ que Ricardo Salgado, segundo o MP, terá pago a Sócrates, através de Santos Silva, em troca de decisões na PT favoráveis ao GES).
Os cinco constituíram a Turpart, que, em finais de 2006, com apenas seis milhões de euros, investiu no negócio de Vale do Lobo, através de um veículo denominado Resortpart, ficando com 75% do empreendimento.
A CGD surge no negócio de forma surpreendente, investindo através da Wolfpart (sociedade detida a 100% pelo banco público) os restantes 25%, apesar de suportar a quase totalidade do investimento.
Neste negócio, a Caixa começa por ter de mobilizar capitais no montante de 194 milhões de euros. E, segundo os investigadores, foi até preciso Armando Vara mandar desbloquear mais dois milhões para que se pudesse fazer a escritura, pois os acionistas da Turpart não tinham dinheiro (ou não o quiseram gastar) para pagar os respetivos impostos nem os advogados e consultores envolvidos.
Acresce que aos acionistas da Turpart não terá sido exigida qualquer garantia pessoal nem responsabilidade adicional, apesar de serem os principais beneficiários do projeto, uma vez que detinham o grosso do negócio.
Avaliações empoladas e alertas de risco ignorados
Por outro lado, defende o MP, foram ignorados pareceres internos dos serviços da CGD sobre os riscos da operação, nomeadamente quanto à necessidade de sindicar a dívida de Vale do Lobo, para que não fosse a Caixa a única a assumir os riscos do projeto. Mas o banco público acabou mesmo por assumir sozinho toda a operação, sendo esta descrita internamente por Armando Vara junto do Conselho Alargado de Crédito do banco como um negócio potencialmente muito rentável, não havendo nenhuma vantagem em repartir a dívida, tendo em conta os elevados lucros que iria obter.
Para reforçar este otimismo, consideram os investigadores, havia um business plan dos empreendedores que concluía que o investimento seria uma grande aposta, sendo possível atingir os níveis previstos de vendas de lotes e de casas. Os anos que se seguiram vieram contrariar o cenário traçado: nunca Vale do Lobo conseguiu cumprir o serviço da dívida, tendo sido necessário recorrer a uma restruturação da mesma.
Mais de 60 milhões pelo terreno que custou 120 mil
Mais tarde, em 2007, a CGD ainda financiaria uma segunda operação, aparentemente para expandir a atividade para terrenos contíguos. Segundo a investigação, isto já estava na mesa com a operação de compra feita dois anos antes: cerca de 60 milhões de euros para Vale do Lobo comprar à Easyview, a offshore de Gaspar Ferreira, o Vale de Santo António – o tal baldio de 8,5 hectares onde aquele investira 120 mil euros. Desta forma, passados apenas dois anos, a Easyview multiplicou 500 vezes o seu valor, estando Diogo Gaspar Ferreira simultaneamente na posição de vendedor e comprador – mas a apropriar-se da gigantesca valorização construída num curto período de tempo.
Tudo isto resultou em elevadas imparidades para a CGD: cerca de 260 milhões de euros, para além dos juros não recebidos.
Paralelamente, o MP defende que foram pagos dois milhões de euros em contrapartidas: metade para o decisor político (José Sócrates) e outra para o decisor bancário (Vara).
‘Luvas’ através da conta de Joaquim Barroca
Para arranjar capital para distribuir as ‘luvas’, segundo a acusação, entrou em cena um milionário holandês que comprara um lote de terreno em Vale do Lobo. Em depoimento perante o MP já prestado no processo, Jeroen Van Dooren revelou que, como pretendia construir a casa segundo um projeto de arquitetura próprio e através de uma construtora da sua confiança, o administrador de Vale do Lobo, Gaspar Ferreira, exigiu-lhe que pagasse um valor extra de dois milhões de euros. Isto apesar de já ter pago 4,3 milhões pelo lote, em 2008.
Além disso, foi-lhe indicada uma conta específica para a qual deveria fazer a transferência – pertencendo essa conta a uma pessoa que lhe era desconhecida, mas que o MP diz ser Joaquim Barroca, o vice-presidente do Grupo Lena (do qual fez parte Carlos Santos Silva).
Pelos dados bancários já constantes do processo, o MP verificou que esses dois milhões de euros saíram das contas do cidadão holandês para uma conta na Suíça de Joaquim Barroca, acabando por chegar à esfera de Santos Silva (para o MP, ‘testa de ferro’ de José Sócrates) e a Armando Vara, em partes iguais. No total, as alegadas ‘luvas’ foram pagas em três tranches, entre 2007 e 2008.