EUA vs ONU? Uma “infeliz coincidência”, defende Francisco Seixas da Costa ao i. Para o embaixador, o facto de a “maior potência mundial passar a ser dirigida por alguém que tem uma leitura muito pouco entusiástica sobre o trabalho das Nações Unidas” poderá “limitar” o trabalho do secretário-geral.
“A situação é muito complicada. Há uma atitude negativa dos EUA perante o mundo multilateral e há sinais de que a posição americana pode vir a reverter-se em posições anteriormente assumidas no quadro das Nações Unidas. Isso significará um terreno novo”, afirma Seixas da Costa, referindo-se à abstenção dos americanos face à condenação dos colonatos israelitas em áreas consideradas palestinianas – outro dos acontecimentos que marcaram o primeiro mês de mandato do secretário-geral. “Acho que Guterres está a tentar perceber que tipo de atitude os EUA terão perante grandes questões.”
O embaixador recorda também as declarações da recém-nomeada embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley. No dia da posse, a antiga governadora do estado da Carolina do Sul avisou que os EUA iriam “apontar os nomes” dos aliados dos norte-americanos que não os apoiassem. “É uma espécie de chantagem sobre o funcionamento futuro dos EUA”, acrescenta Seixas da Costa.
Também António Martins da Cruz destaca este episódio, algo que considera mais grave do que o facto de a republicana não ter posto de lado a possibilidade de haver cortes nas quotas dos EUA para a ONU. O embaixador relembra que se trata de uma situação recorrente. “A minha primeira reunião nas Nações Unidas foi em 1972 e, nessa altura, os EUA pagavam quase 50% do total das despesas da ONU. No fim dos anos 70 e início dos anos 80, tomaram a decisão de só pagar até 25%. Até a administração Clinton manifestou o desejo de cortar as quotas”, diz ao i.
Ainda assim, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros considera que Guterres “tem estado a conhecer os cantos à casa”, que caracteriza como “grande” e “difícil”. E elogia a prudência demonstrada em diversas entrevistas. “Tem feito um percurso sem falhas, mas também há que dizer que ainda não apareceu nenhuma crise internacional de dimensão forte.”
Rui Machete sublinha também a crítica “comedida, prudente, mas firme”que o antigo primeiro-ministro português fez às mais recentes medidas anti-imigração implementadas por Trump. “Estas medidas devem ser retiradas o mais depressa possível”, afirmou o secretário–geral na passada quarta-feira, acrescentando que esta não é a melhor forma de proteger o país. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros assume, contudo, que esta questão colocou Guterres numa “posição difícil”, uma vez que teve de criticar “os primeiros dias de mandato” do presidente de “uma superpotência mundial”, que é também o “principal contribuinte das Nações Unidas”, e com uma “influência ímpar a nível internacional”.
Enfrentar a máquina da ONU
Tal como Martins da Cruz, Lívia Franco, professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, ressalva que o português ainda está a dar os primeiros passos no cargo. “O primeiro mês serve para se confrontar diretamente com os desafios e os constrangimentos, quer burocráticos quer políticos, da própria função”, refere a especialista em política internacional ao i, elogiando a “atenção” com que o secretário-geral tem seguido os acontecimentos mundiais.
A burocracia, segundo Viriato Soromenho Marques, tem vindo a ser trabalhada por Guterres desde o primeiro dia de mandato – um trabalho atualmente discreto, mas que dará frutos “no futuro”. “As máquinas ganham vida própria e têm interesses próprios”, considera o especialista em política internacional. O português tem tentado “aumentar a eficácia” da instituição, fazer “uma boa gestão de recursos” e acabar com alguns “vícios de funcionamento”.
Mas há outras medidas concretas: “Fazer com que o secretário-geral tenha acesso rápido a tudo aquilo que se passa, ou seja, aumentar a visibilidade e transparência interna, fazer com que o orçamento da ONU funcione melhor através da desburocratização e acabar com a duplicação de serviços que, numa organização com muitas agências, é perfeitamente natural.”
Os seus dez anos de experiência enquanto alto-comissário da ONU para os Refugiados fizeram com que criasse “muitas cumplicidades e amizades” que o têm ajudado na missão de tornar as Nações Unidas “um organismo mais respeitável”. “Está a tentar mudar métodos e está a fazê-lo com o apoio dos funcionários e dos responsáveis”, acrescenta o professor universitário.