Há um ano António Costa ia Berlim para a estreia de “Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, que competia pelo Urso de Ouro na Berlinale, este ano o secretário de Estado da Cultura ficou sem convidados para a receção à “impressionante” representação portuguesa no festival, que decorre entre amanhã e 19 de fevereiro na capital alemã, de novo com oito filmes portugueses (dois dos quais em coproduções luso-brasileiras). Um por um, os seis realizadores cujos filmes foram selecionados para a 67.ª edição do Festival de Cinema de Berlim declinaram o convite para o jantar com Miguel Honrado na embaixada portuguesa na capital alemã.
Decisão tomada depois de “esgotadas todas as opções de diálogo” com a atual tutela da Cultura e anunciada ontem numa conferência de imprensa que levou ao São Jorge 11 associações de profissionais do cinema e vários realizadores, num protesto contra a versão final do projeto de revisão ao decreto-lei de 2013, que mantém nas mãos da Secção Especializada de Cinema e do Audiovisual (SECA) do Conselho Nacional de Cultura a competência da aprovação dos júris dos programas de apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual.
“Não queremos um ICA meramente distribuidor de dinheiros numa lógica de empreiteiros”, sublinhou Luís Urbano, produtor e responsável da Associação de Produtores de Cinema Independente, sentado entre os representantes da Associação Portuguesa de Realizadores, à qual pertencem 116 profissionais, da APORDOC – Associação pelo Documentário, da Agência da Curta-Metragem, da Portugal Film, dos festivais Indie Lisboa, Doclisboa e Curtas de Vila do Conde e ainda dos sindicatos dos músicos, dos profissionais do espetáculo e do audiovisual, dos trabalhadores das telecomunicações e do audiovisual e dos técnicos do espetáculo, além de vários realizadores como João Pedro Rodrigues (no ano passado Melhor Realizador no Festival de Locarno) e Salomé Lamas e Diogo Costa Amarante, ambos em competição para o Urso de Ouro das curtas em Berlim este ano.
Questionada pelo i, a tutela não respondeu se Miguel Honrado mantinha a viagem à capital alemã. Prometido ficou ainda um “protesto internacional” em Berlim com uma recolha de assinaturas para endereçar ao Presidente da República e ao primeiro-ministro, com quem já pediram uma audiência antes que seja aprovada em Conselho de Ministros esta revisão do decreto-lei que, sustentam, “em nada vai alterar o status quo imposto pela anterior tutela” e que vai até “mais além na questão dos jurados ao reforçar o papel da SECA, subjugando de forma inaceitável o ICA à vontade de um órgão consultivo”, num mecanismo de indicação de júris que tem promovido “sucessivos conflitos de interesses e críticas públicas” e que veio dividir o setor “abrindo espaço à promiscuidade de interesses e à designação de jurados muitas vezes com perfil desadequado ao exigido pela lei”.
Argumento contestado pelo Ministério da Cultura que, ao i, afirma ter ouvido “os argumentos de quem está contra este modelo” que pretende aprovar da mesma forma que ouviu “muitas associações que estão a favor e que defendem o envolvimento da SECA na seleção e aprovação dos jurados para os concursos”, considerando a solução econtrada para a seleção do júri dos concursos do cinema e do audiovisual “a opção mais integradora, transparente e democrática”.
O mesmo não pensam os representantes dos profissionais do cinema que se juntaram no São Jorge, que prometem avançar para outro tipo de medidas caso o processo não seja revertido – e já têm, aliás, um parecer jurídico que põe em causa esta revisão à regulamentação da Lei do Cinema. “A manter-se esta situação, este vigor a que temos assistido nos últimos anos com múltiplos prémios e presenças em festivais internacionais de cinema pode estar em risco porque a liberdade que os criadores têm tido e a independência que tem caraterizado o cinema português está ameaçada”, diz Filipa Reis, uma vez que entre as associações com assento no SECA estão, por exemplo, as operadoras de televisão e os canais por cabo, que têm “obviamente interesses privados nos resultados destes concursos”.
“Recusámos participar nesse jantar [na embaixada portuguesa em Berlim] e anunciamos aqui a nossa recusa pública em participar em qualquer atividade que pretenda homenagear o cinema português enquanto não for resolvida esta questão”, acrescentou Luís Urbano. Sucesso e reconhecimento que no entender das 11 organizações que se juntam neste protesto estão ameaçados. “O que estamos a exigir aqui é uma política clara, que foi o que permitiu que o cinema português florescesse como floresceu”, diz Cíntia Gil, diretora do Doclisboa. “Portugal tem uma cinematografia rara, todos os anos temos alegrias com o cinema português e essas alegrias estão praticamente todas aqui representadas.”
Notícia atualizada às 17h35